A EFERVESCÊNCIA BIELORRUSSA: UM DIA, O GOVERNO MUDA

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São vinte e seis anos e cinco mandatos no poder. No dia 7 de agosto de 2020, Aleksandr Lukachenko, foi eleito pro seu sexto exercício, fazendo explodir a Bielorrússia em insatisfação. Teriam as eleições sido fraudadas? É o que acredita a comunidade internacional e o povo que foi às ruas, especialmente em Minski, a capital, acabando por ser brutalmente reprimido pelas forças de segurança de Lukachenko.

Ele é tido como o “último ditador da Europa” e diz que não haverá novas eleições no país “até que ele esteja morto”.

Ele tinha 39 anos quando foi eleito pela primeira vez, no embalo da ruína da União Soviética. Hoje, com 65, enfrentou na urnas Svetlana Tikhanovskaia, de 37 anos, que nunca achou que pudesse ter essa força.

A líder da oposição sempre se considerou “uma mulher fraca capaz apenas de cuidar dos filhos e cozinhar”, segundo ela mesma disse em entrevista antes do pleito.

Mas quase ganhou. Ou… ganhou, mas não levou.

Oficialmente, Lukachenko venceu com mais de 80% dos votos. De acordo com pesquisas independentes, bem como com os resultados dos comitês eleitorais que contaram os votos, ele obteve apenas de 3 a 10% dos votos. Organismos internacionais questionam o resultado. O povo nas ruas também.

Tikhanovskaia foi elevada à líder da oposição depois que seu marido, o candidato presidencial Siarhei Tikhanovski, ser preso pelo regime de Lukachenko.

O ditador já havia tirado da corrida outros dois opositores: prendeu também o ex-banqueiro Viktor Babariko e negou ao ex-embaixador em Washington Valeri Tsepkalo o registro como candidato, fazendo-o fugir pra Rússia, pra escapar da prisão.

Os brasileiros sabem exatamente o que isso quer dizer, quando o ex-juiz Sergio Moro tirou da disputa o forte candidato e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do pleito de 2018, com sentenças condenatórias ainda envoltas em polêmicas – que aparentemente podem ser suspensas pelo Supremo Tribunal Federal.

Mas Lukachenko não tem intermediários, como a direita brasileira precisou.

Além disso, como o próprio Jair Bolsonaro, que virou presidente a quem Moro se juntou como ministro, Lukachenko é homofóbio, racista, misógino e anti-ciência.

Há muito de Bolsonaro no jeito truculento de Lukachenko. O presidente bielorrusso acha que pior que a pandemia é ficar sem trabalhar. Ele prefere que as pessoas morram de covid-19 e não de fome. O problema não é morrer, mas como elas morrem.

Mas Tikhanovskaia não é uma revolucionária. Longe disso. Ela só quer transição legal de poder. “Ficamos tanto tempo sob uma ditadura que nos esquecemos de como era o sentimento de ser livre, falar francamente, lutar por aquilo em que acreditamos”, disse.

“Não sabemos como o poder é transferido de um presidente para outro, porque nunca vimos isso acontecer em nosso país”, lembrou.

Sem nenhuma experiência prévia na política, ela juntou-se a outras duas fortes mulheres pra essa batalha. Veronika Tsepkalo, esposa do exilado Valeri, é uma delas. A outra é Maria Kalesnikava, de apenas 38 anos, a única das três que já estava na política e não pediu asilo em nenhum outro país.

Após a eleição, a própria Tikhanovskaia teve que fugir pra Vilnius, capital da Lituânia.

Ela foi clara sobre suas intenções, caso vencesse as eleições: “como não tenho nenhuma experiência prévia em política, tenho um time que me apoia agora e continuará comigo no futuro. Mas existe uma administração hoje que será mantida. Não pensamos em demitir todos e construir um novo governo do zero. A polícia continuará onde está, os economistas, os administradores vão ficar, o país precisa deles. Nossa ideia não é arruinar tudo e recomeçar do zero, mas manter tudo funcionando como está agora. Qualquer futura decisão ficará a cargo do novo presidente. Não pretendo conduzir mudanças”.

Apesar do ímpeto visto nas ruas, após a eleição tida como fraudulenta, ela dizer que não pretende fazer mudanças pode parecer um tanto frustrante. Mas o nível de cenário não-democrático dos bielorrussos e tal que só a ideia de transição de poder já é uma baita mudança.

Entretanto, há uma outra questão: tanto tempo com direitos de fala restringidos cria gerações de cidadãos sem alcance de compreensão dos seus direitos políticos.

Um bom termômetro está na cultura subterrânea.

Minsk, a capital, pode não ser uma cidade que frequentemente aparece no radar da imprensa internacional de música eletrônica, muito menos um destino para baladas com o apelo massivo de seus vizinhos Rússia, Polônia e Ucrânia, explica Rory Jones, pro Calvert Journal.

“Mas faça um pouco de pesquisa e você descobrirá uma cultura de clube única e próspera que está em ebulição há décadas, com grande parte de sua atividade agora centrada em torno do movimentado bairro cultural de Kastryčnickaja / Oktyabrskaya”, diz. “Há novos artistas, promotores, locais e noites surgindo o tempo todo, e com as regulamentações de fronteira recentemente relaxadas, o que significa que os turistas podem visitar o país por até trinta dias sem visto, pode significar que eles estão prontos pra receber um novo público”.

Segundo Jones, a economia estagnada fez com que se criasse um êxodo de jovens talentos pra países com mais oportunidades.

“Embora muitos artistas prefiram manter a política à distância, ainda parece que dançar é uma forma vital de escapismo pra muitos no país”, ele alerta, em seu artigo.

Como diz Mustelide, uma artista de música eletrônica, “as pessoas dançam como se fossem a última vez que vão dançar em suas vidas, deixando seus demônios irem, finalmente ficando loucos de liberdade – essa é uma bela imagem de se observar”.

Ela recebeu a alcunha de “princesa eletrônica” de Minsk. Mustelide é um dos projetos pop mais interessantes do país nos últimos anos.

O uso inovador de sintetizadores analógicos, samples experimentais e canto em russo fez Natallia Kunitskaya, seu nome verdadeiro, ser conhecida no Ocidente. É uma marca peculiar de synthpop oriental e ocidental que ganhou uma certa popularidade em toda a Europa. Agora está morando entre Minsk e Berlim, onde tem mais palco.

“Quando eu estava crescendo, a cena underground que conhecia era principalmente na forma de rock de oposição na língua bielorrussa. Quando comecei, cinco anos atrás, não conhecia tantos produtores na Bielorússia que faziam música sozinhos e também cantavam. Eu sinto que comecei o clube das produtoras eletrônicas aqui”, disse, em entrtevista.

“A Bielorrússia é um campo um pouco mais nivelado, é uma tela em branco onde você pode começar algo original e se destacar. Quando os eventos acontecem, você vai lá e encontra todos os seus amigos, esta comunidade contracultural que é estreita e separada da sociedade em geral”, seguiu.

Já Berlim pode ser uma das mecas das discotecas da Europa, mas para Kunitskaya há um charme a ser encontrado em Minsk que não pode ser reproduzido em nenhum outro lugar: “depois de caminhar por enormes edifícios soviéticos cinzentos e desviar de babushkas a torto e a direito, sempre parece que você está em algum tipo de outra dimensão. Essa é uma sensação muito especial que você não pode necessariamente sentir em Berlim”.

O sentimento exposto por Mustelide é basicamente o nacionalismo que existe em todos nós. Não o nacionalismo cruel, xenófobo, mas aquele de se sentir em casa “na sua terra” e de querer que as coisas funcionem como funcionam nos outros lugares que a gente admira.

E não é só de música eletrônica que vive os subterrâneos bielorrussos. Há ainda metal, indie, punk e toda sorte de estilo musical ocidental que impactou essa juventude destinada à negação política, do direito de expressão política, pelo ditador Lukachenko.

Se a oposicionista de plantão Tikhanovskaia não pretende fazer nenhuma mudança radical, esses jovens talvez gostariam, mesmo que fosse apenas nos costumes.

Um bom exemplo é a indie-dance-punk Zarnitsa, uma banda que não é inteiramente bielorrussa, mas uma conexão Moscou-Minsk.

A banda toca o que ela chama de “punk hormonal” com todas as consequências.

Os músicos se apresentam com vestidos, promovem as ideias de igualdade e tolerância e permitem que caras usando roupas queer vejam os shows de graça.

O vocal Artem canta gritando-declamando, como um manifesto. Enquanto a banda cria melodias de fácil compreensão, mas minimamente sujas, como “Современник” (“Sovremennik”, que quer dizer apropriadamente “Contemporâneo”), do EP “В доме престарелых” (“V dome prestarelykh”, ou “Numa Enfermaria”), de 2017.

Segundo a banda, ela “dedica suas canções a esforços constantes de permanecer românticos em um mundo de desperdício pós-apocalíptico e pós-consumo. Produzindo sua interpretação particular de dance-punk-rock com refrões catárticos conduzidos por passagens de bateria pré-adolescentes, está entregando uma forte mensagem anti-preconceito”.

O trabalho mais recente é o single lançado em fevereiro de 2020, “Эмо​-​ревайвал” (“Emo​-​revayval” ou “Emo-revival”):

Lukachenko conseguiu a proeza de fazer os jovens terem saudades de Moscou.

Mesmo com outro maluco na presidência, Vladimir Putin, igualmente mexendo nas leis pra se perpetuar no poder, a truculência de Lukachenko faz parecer Moscou um jardim de liberdades perto de Misnki.

Isso pra uma geração cujos pais sofreram o pior que o comunismo soviético pôde oferecer.

É o caso de Dlina Volny, banda também com um pé em Minski e outra em Moscou.

Sem se preocupar com escrever em cirílico, pensando no mercado europeu ocidental, o trio oferece um synthpop duro e oitentista que leva a crer numa certa “saudade soviética”.

O single mais recente, de 1º de maio de 2020, “I’m Not Allowed”, dá uma pista.

Os músicos são inspirados no legado soviético, até as janelas de seu estúdio parecem com o exemplo brilhante do monumentalismo soviético – o Palácio de Governo Bielorrussia.

Outro single deste ano (de 20 de março), “Do It”, é sobre “um personagem que conseguiu entrar no mundo ao qual não pertence. Eles conseguiram levar uma vida inteira e inspirar outras pessoas a fazerem coisas que sempre tiveram medo. Amor e rebelião são parte integrante desta jornada”.

Em resumo, um apelo por mudança.

Ainda há o Another Lips, quarteto de pós-punk de Minski, cantando em bielorrusso. Uma banda como expressão da juventude “triste”, mas não exatamente (as fotos do grupo mostram os rapazes sorridentes, quase sempre).

O lançamento mais recente no Bandcamp é “Оттепель” (“Ottepel'” ou “Degelo”), que a banda chama de “música pra aquecer os corações”.

Outra que parte pro pós-punk é a Молчат дома, ou Molchat Doma (ou “Casas São Silenciosas”).

Mais conhecida que todas as outras, teve um disco lançado em 2017 (mesmo ano em que a banda nasceu) pela renomada Sacred Bones Records, “S Krish Nashih Domov” – é a foto da banda que abre este artigo.

Eles se descrevem como “uma banda que opera na fronteira do pós-punk, new wave e dark end do synth-pop, tocando música dark e dançante ao mesmo tempo. É uma emulação perfeita do gênero, mas instantaneamente reconhecível como bem particular, com letras cantadas em russo. Além disso, soa como uma mistura de tudo que um gótico contemporâneo pode desejar”.

O trio é formado por Yegor Shkutko (vocais), Roman Komogortsev (guitarra, sintetizadores e bateria eletrônica) e Pavel Kozlov (baixo e sintetizadores). Shkutko é meio um Ian Curtis em cima do palco, pra se ter ideia do que se trata.

Seu segundo LP, “Этажи” (pronuncia-se “Etazhi”, e significa “Andares”) foi lançado em 2018. Apesar de tocar em clubes lotados em Varsóvia, Londres, Helsinque, Madri e Berlim, eles ainda estão voando sob o radar em sua Bielorrússia natal.

A aparente tristeza refletida no estilo musical dos artistas citados neste artigo não é uma regra. A juventude se adapta a qualquer ambiente político. Na Bielorrússia, não é diferente.

Mas os recentes protestos sugerem que há uma insatisfação latente, esperando uma brecha pra explodir.

Há muitos combustíveis pra essa explosão: direito político, liberdade de expressão, direitos de minorias, economia sufocada, ou simplesmente a vontade de se divertir.

Como é o caso de Lisa Kostenko, uma jovem cantora de música essencialmente pop juvenil de Minski.

Quando ela lançou, em 2018, seu primeiro EP, “Velvet”, se apresentava assim: “tenho 18 anos. Sou um caloura em jornalismo. Na escola eu cantei no coral, na décima série comecei a tocar violão, escrevendo minhas músicas. Então, percebi que era hora de me desenvolver e atingir um novo patamar. Imediatamente, tive a ideia de gravar um ótimo álbum com algum tipo de história, comecei a inventar, mas nada estava incluído no EP de estreia. Então, essas são apenas faixas separadas, cada uma com sua própria atmosfera, que ficam lindamente juntas”.

Nem todo mundo tem uma rebelião dentro de si pra mostrar ao mundo.

As imagens neste outro artigo mostram jovens carregando bandeiras, enfrentando as forças repressoras e vestindo branco, a cor que Tikhanovskaia, a candidata não-revolucionária, assumiu como símbolo de sua caminhada política.

Toda essa efervescência bielorrussa mostra que um dia esse governo vai mudar. E, então, a molecada nos subterrâneos da arte, da música, poderá dar seu recado pra além da própria arte. Poderá falar sobre o que quiser, como quiser e pra quem quiser.

A verdadeira revolução ainda está por vir.

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