A MTV já vislumbrava uma decadência em 2001, quando o REM lançou “Reveal”, seu décimo-segundo álbum de estúdio. Nem mesmo a banda poderia supor que mantivesse o nível de apreciação da crítica que alcançou nos anos 1980 ou de público e vendas dos anos 1990. O novo século oferecia muitas incertezas.
Dez anos e três discos depois, o REM chegava ao fim oficialmente (leia aqui) e os quatro discos lançados nessa reta final – além de “Reveal”, foram “Around The Sun” (2004), “Accelerate” (2008), “Collapse Into Now” (2011) – oferecem algumas boas canções, mas não são obras exatamente consistentes como um todo.
A MTV acabou no Brasil dois anos mais tarde (leia aqui) e hoje se sustenta como marca de programas de costumes adolescentes-juvenis.
Mas em 2001 ainda havia lenha pra queimar e quem assinava os cheques nas gravadoras ainda apostava que videoclipes podiam ser uma boa ferramenta não só de divulgação e promoção de um álbum, como um outro veículo de criação.
Dois anos antes, o mundo caiu de joelhos de encantamento com a caixa de leite que parte em busca de Graham Coxon, no vídeo de “Coffee & TV”, do Blur. Quem assinava a produção era Nick Goldsmith e o diretor Garth Jennings, sob o nome de Hammer & Tongs. A dupla também foi responsável pelo vídeo de “Pumping On Your Stereo”, do Supergrass, no mesmo 1999.
As inovações e a criatividade de Goldsmith e Jennings chamaram atenção de Micheal Stipe, que tinha uma ideia vaga pro clipe de “Imitation Of Life”, a primeira música de trabalho de “Reveal”. Na verdade, era a variação de um “mesmo tema” já visto em produções anteriores do REM, “Shiny Happy People” (1991, com direção de Katharine Dieckmann) e “Everybody Hurts” (1992, com direção de Jake Scott): as pessoas comuns em sua diversidade formando um quadro complexo e nem sempre visível ao qual chamamos de “sociedade”. A isso Stipe chama de “vida”.
No vídeo de 1991, esse quadro é formado pelas imagens atrás da banda e, na parte final da música, pela pessoas felizes dançando e cantando a canção – a variedade de formas, idades e cores encantaram a diretora e a banda. Já no de 1992, as pessoas presas no engarrafamento é que fazem a composição do quadro.
Em “Imitation Of Life”, o REM partiu pra mesma ideia, mas Jennings pensou em algo ousado, ao mesmo tempo que simplório de ser executado. Mais uma vez, diversas pessoas, diversas situações, diversos dramas acontecendo ao mesmo tempo formam o que Stipe chamou de “quebra-cabeças da vida”.
Muita gente ainda acha que o vídeo é uma variação do jogo “Onde Está Wally?”, mas suas inspirações são bem mais distintas. A premissa técnica parte um tanto de “Blow-Up – Depois Daquele Beijo”, filme que elevou a carreira internacional de Michelangelo Antonioni, em 1966. No filme, um fotógrafo descobre acidentalmente um assassinato graças a um processo chamado “blowups” (ou ampliações de partes de uma fotografia). E a premissa artística veio do curta premiado com o Oscar em 1983, “Tango”, do polonês Zbigniew Rybczynski.
O curta usa das técnicas de colagem que marcaram esse período do cineasta, ao mesmo tempo que as curtíssimas situações se repetem em looping. Garth Jennings tirou sua ideia daqui. A tática é de apreciação e reapreciação de uma sequência específica. Às vezes, durante a exibição, o cérebro humano deixa passar algo. A estratégia de Rybczynski faz com que o espectador possa ver e rever as situações apresentadas à exaustão, de modo a sempre descobrir algo não percebido anteriormente.
A “imitação da vida” aludida pelo REM, porém, é um tanto mais complexa. E modernizada. Até porque Jennings tinha muito mais tecnologia à disposição, embora ainda assim tenha utilizado de uma forma bem simples de junção das cenas.
São cenas curtas, como em “Tango”. Cada uma tem vinte segundos no máximo. O vídeo foi gravado na pequena cidade de Calabasas, na Califórnia, dia 28 de fevereiro de 2001. O diretor usou doze câmeras super 8 pra captar as sequências (embora Michael Stipe tenha afirmado à MTV que foi apenas uma câmera, o que não é verdade). Elas foram gravadas em três etapas: todas juntas, em separado e algumas em blocos do que seria aproximado na ilha.
A junção foi feita numa ilha de edição computadorizada em Londres, sob os olhos de Matt Hanson, que escreveu em 2006 o livro “Reinventing Music Video: Next-Generation Directors, Their Inspiration, And Work”. O escritor chamou o vídeo de “Imitation Of Life” de “uma das mais impressionantes peças conceituais da arte do vídeo que eu já vi”.
Os ensaios de todas as cenas duraram apenas um dia – afinal cada elenco deveria atuar por apenas vinte segundos e decorar vinte segundos não é lá de grande dificuldade. Porém, a preparação e pré-produção levaram meses. A partir da captação, durante os quatro minutos da música, o que o diretor fez foi avançar todas as cenas juntas até o final delas e depois retrocedê-las até o início, avançar de novo e retroceder de novo. Então, com o artifício conhecido como “pan e scan” (movimento de destaque dentro do quadro e aproximação), compôs a obra final.
Cada pequeno ato sugere uma subversão caleidoscópica do comportamento normal, peculiar. Há furtividade, crueldade, romance, surpresa, uma cadeia de idiossincrasias que são expostas ao espectador. Nem sempre é possível acompanhar tudo e essa é grande graça do vídeo, que faz o espectador ver e rever várias vezes na esperança de captar alguma coisa que tenha deixado pra trás, mesmo que os loopings estejam lá justamente pra isso, como em “Tango”.
O autor do vídeo abaixo fez um esforço pra facilitar esse processo e mostrar como é o quadro geral de “Imitation Of Life”, sem os “pan e scan” (viagem da câmera e aproximação). Do lado esquerdo, vemos em preto e branco o quadro geral. Do lado direito, o vídeo original. Não há áudio.
Vale muito também ler a descrição do vídeo no YouTube.
Já este vídeo abaixo tenta provar que nem todas as cenas foram usadas na plenitude dos vinte segundos. Com a imagem congelada, ele usa um simples retângulo pra seguir o roteiro “pan e scan” original de Jennings – sim, Jennings tinha um roteiro tradicional em mãos pra editar o vídeo.
Aqui, a edição oficial e final do vídeo:
Jennings fez a transição dos vídeos pro mundo do cinema, como é de praxe. Em 2005, estreou na direção em grande estilo, com “O Guia Do Mochileiro Das Galáxias” (The Hitchhiker’s Guide To the Galaxy). Depois, fez “O Filho de Rambow” (Son Of Rambow, 2007) e mais recentemente a animação sucesso de bilheteria “Sing: Quem Canta Seus Males Espanta” (Sing, 2016).
Ele se aproximou também do Radiohead, fazendo os clipes de “Nude”, “Lotus Flower” (um dos ícones da banda) e “Jigsaw Falling Into Place”, o que é uma escolha bem interessante, já que o clipe de “Imitation Of Life” é tido como um “jigsaw puzzle”.
Ainda hoje, anos e anos depois, o vídeo espanta pela sua aparente complexidade e é uma das obras mais intrigantes do tempo em que o videoclipe ainda tinha uma significativa relevância.