A LOJA DE DISCOS MAIS ANTIGA DO MUNDO

Lá se vão mais de cento e vinte anos. A Spillers Records nasceu em 1894, em Cardiff, País de Gales, e sobrevive até hoje, apesar dos pesares. É a loja de discos mais antiga, ainda em funcionamento, do mundo.

A loja surgiu no centro de Cardiff, na Queen’s Arcade (onde hoje fica um shopping center de mesmo nome), bem próximo de duas ruas de pedestres conhecidas da cidade, por suas lojas que atraem turistas – a Queens e a The Hayes – além de ser ao lado do Castelo de Cardiff, da universidade e do Parc Bute Parque (um dos mais de trezentos parques da cidade).

O criador foi Henry Spiller. No começo, a loja vendia fonógrafos, cilindros fonográficos de cera e discos fonográficos feitos de resina (goma-laca). O fonógrafo executava os cilindros. E o consumidor comprava os cilindros ou discos pra fazer sua própria gravação. Durante quarenta e seis anos, o estabelecimento se manteve no mesmo endereço, até que o filho de Henry, Edward, já tendo herdado o local e expandido também pra venda de instrumentos musicais e discos pré-gravados e comerciais, teve que levar a loja até a The Hayes.

Ali, a Spillers Records conheceu seu auge: ficou de 1940 até 2010, quando sustentar a loja em um dos mais caros endereços da capital galesa ficou impraticável. A solução foi se mudar pro interior de um complexo comercial ali mesmo na rua, o Royal Arcade, cortado pela The Morgan Arcade, rua que ofereceu o endereço definitivo da loja, primeiro no número 31 e agora no 27. É ali que o curioso visitante da cidade pode encontrar a mais antiga loja de discos do mundo.

Fachada original, da primeira loja:

A loja na The Haynes:

A Spillers hoje:

Por esse período, por conta da crise do mercado de discos e do alto custo de sua localização, a Spillers quase fechou. Agora, na The Morgan Arcade, consegue se manter, graças a uma enorme variedade de oferta de música e títulos. Em 2012, o Guardian apontou que nos últimos seis anos, mais de seiscentas lojas e pequenas vendas de discos no Reino Unido foram fechadas pela crise causada pela pirataria e pela venda online e streaming (àquele momento ainda engatinhando). É um movimento que se seguiu ativo nos anos sequentes, e que provavelmente continuará no futuro. O vinil virou artigo de colecionador e há indicações de que o CD e as fitas cassetes voltariam na mesma medida, dentro de um nicho específico.

A Spillers não pode, entretanto, viver de colecionadores. E não vive. Apesar de ter consumidores fiéis e receber muitos curiosos sobre sua condição centenária, são os consumidores comuns que a mantém viva.

Hoje, como de praxe há muito tempo, em muitas lojas ao redor do mundo, a Spillers promove pequenas apresentações pra marcar lançamentos que julga importantes. O estabelecimento funciona de segunda a sábado, das dez da manhã às seis da tarde, quando a loja se apronta pra tais apresentações agendadas (no Facebook, é possível acompanhar essa agenda).

Normalmente, as descrições na rede social sobre a Spillers transitam entre a tríade bons preços-boa atmosfera-atendimento atencioso. A equipe é um ponto central no sucesso da Spillers pra com seus clientes: a gerente Ashli Todd lidera uma enxuta turma de três atendentes que sabem tudo de música e o fazem com uma paixão aflorada e encantadora pros ouvidos iniciados. Camisetas, CDs, vinis e utilidades fazendo referências a artistas que eles consideram legais preenchem a vitrine, numa espécie de chamariz. Mas o convite no site oficial é ainda mais acolhedor: “nós adoramos discos, showzinhos e chá e se nos você trouxer uns biscotinhos da Wally (na rua aqui ao lado), vamos gostar de você um bocado”.

É o clima usual de lojas de discos – a Nuvem Nove, a Baratos Afins, a Wop Bop, a Locomotiva, em São Paulo; a Tropicália, a Supernut, a Modern Sound, no Rio de Janeiro; e tantas e tantas outras Brasil afora possuem (ou possuíam) mais ou menos o mesmo estilo: clientes regulares que os vendedores conhecem pelo nome, clientes que chegam por indicação, atendimento altamente especializado etc. É como se você entrasse na casa de um amigo que tivesse muitos, muitos, muitos discos e ele passasse a contar a história de algumas dessas obras com tal paixão que você acaba decidindo comprá-las.

Pela loja ser o que é, os produtos que puxam as vendas são também camisetas, canecas, bolsas, adesivos e outras lembranças que o visitante pode levar com a própria marca da Spillers.

Mas não são produtos meramente de merchandising. Os atendentes usavam as camisetas e os clientes pediam pra que elas fossem vendidas. Uma coisa levou à outra. Hoje, porém, a loja usa tais produtos como forma de competição. Quando seus discos estão mais caros que a concorrência massacrante de uma Amazon, por exemplo, ela mantém o preço do disco, mas dá uma camiseta junto, o que deixa o cliente bastante feliz.

A Spillers também vende ingressos pra shows locais.

A recomendação é o ponto nevrálgico da Spillers. Os funcionários gostam de dizer aos clientes o que devem ouvir, e gostam de receber em retorno o que devem ter no estoque. Todo Natal, funcionários e frequentadores escrevem as listas de melhores do ano, que são coladas nas paredes ao lado dos pôsteres de bandas e das capas dos discos escolhidos.

Além de gerenciar a loja, Todd é co-proprietária da Spillers com sua irmã, Grace, que trabalha num museu local e administra a loja fora do expediente. As duas compraram a loja há dois anos de seu pai, Nick, depois de um período complicado na história de Spillers. Nos anos 80 e 90, a Spillers vivia lotada, não apenas com clientes regulares e clientes que passavam, mas com representantes de vendas de distribuidores em todo o país. “Uma fila constante deles, como a sala de espera de um médico”, lembra ela, numa interessante matéria pro Guardian, publicada em 2012, mostrando o cotidiano do estabelecimento. A indústria fonográfica era saudável naquele tempo.

Quando a indústria começou a decair, coincidiu com outros problemas graves pra Spillers. Os novos proprietários do imóvel na Hayes triplicaram o aluguel. Uma cara reforma pra transformar a Hayes no que é hoje significou que durante meses a loja teve que negociar no meio de um canteiro de obras, a poeira da construção embaçando as janelas. Nick Todd queria vender e por um tempo parecia certo que a Spillers iria fechar… Então suas filhas propuseram assumir a frente dos negócios. Ambas trabalharam na loja e pensaram que poderiam fazê-la funcionar num novo local, numa galeria que dá fundos à Hayes. Logo após a mudança, em 2010, os descendentes de Henry Spiller, o criador da loja, apareceram pra dar um sinal positivo ao novo local – eles haviam vendido a marca a Todd.

Como qualquer loja de discos no mundo, a Spillers luta pra sobreviver. E como qualquer loja de discos no mundo, não tem sido nada fácil. Não há garantias que a marca consiga chegar sequer a outra década de vida, quanto mais a um novo século. “É difícil pacas manter esse lugar funcionando”, disse Todd ao Guardian. “Se vai dar certo? Não somos idiotas. Não vamos sacrificar nossas vidas pra manter a loja funcionando pra sempre. Se não rolar, não rolou. Vamos até onde der, e vamos ficar realmente orgulhosas de ter tentado. Adoramos isso aqui. Amamos”.

Cardiff seguirá com seu castelo milenar e seus muitos parques, por onde os turistas rondam com seus celulares em busca da melhor fotografia. As ruas comerciais seguirão com seu grande fluxo, tentando atrair a atenção pras marcas famosas e promoções indiscretas. Na Morgan Arcade, essa pequena preciosidade dependerá de um pouco de sorte. Se ela deixar de existir, uma singular parte da história da cidade terá se silenciado.

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