Ia escrever sobre a morte de Tom Verlaine, o homem que fez “Marquee Moon” e que um dia elogiou um texto meu (sério – um orgulho bobo). A gente se sente íntimo dessas figuras lendárias porque ouviu tantas vezes a música ou a obra delas, e acha que tem amplitude moral pra falar delas no hora da morte.
Verlaine tinha completado 73 anos em dezembro último. Não era exatamente um ser humano de superidadade, mas até coça dizer que ele “viveu intensamente cada um desses anos”, porque deve ter sido isso, mas a gente não faz ideia. Devia ser, isso sim, uma vida difícil.
Não era prolífico. Lançou dez discos-solo desde 1979. Com o Television, apenas três álbuns (sem contar os ao vivos). Treze discos em quarenta e cinco anos de carreira. Não quero chutar, mas também coça: ele devia ficar angustiado vendo pares lançando um a cada ano, com longas excursões. Patti Smith, algo como sua alma gêmea, lançou ainda menos. Mas isso pouco importa.
Dias após sua morte, em 28 de janeiro de 2023, deixo as palavras com quem realmente era íntimo dele. Patti Smith escreveu as linhas abaixo a pedido da revista New Yorker, de quem eu barbaramente roubei o texto e traduzi meio porcamente aqui. Poeticamente (e Smith é essencialmente uma poetisa), ela descreve a saudade do amigo.
Na nossa distância de fã, é um relato delicioso de ler. Pra gente, é só tocar alguma música dele e toda saudade é afagada. Pra ela, é uma pessoa, não um ídolo. Então, quem tem que falar sobre ele é ela. Não me atrevo.
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Ele acordou com o som de água pingando em uma pia enferrujada. As ruas abaixo eram banhadas pelo luar medieval, reverberando o silêncio. Ele ficou lá lutando com o terror da beleza, enquanto a noite se desenrolava como uma tela chinesa. Ele ficou tremendo, fascinado por movimentos de alienígenas e anjos enquanto as palavras e melodias de “Marquee Moon” eram formadas, uma a uma, nota por nota, de um estado de excitação calma, mas sinistra. Ele era Tom Verlaine, e esse era o seu processo: uma tortura primorosa.
Nascido Thomas Joseph Miller, criado em Wilmington, Delaware, ele deixou a casa dos pais e trocou seu nome, uma pele descartada enrolada no canto de uma garagem modesta entre pilhas de aparelhos de ar-condicionado usados que exigiam a atenção profissional constante de seu pai. Havia tacos de hóquei, uma bicicleta e pilhas de jornais velhos de Tom espalhados no fundo, cobertos com contornos fantasmagóricos de objetos distorcidos; ele amassava latas até ficarem achatadas, quase irreconhecíveis, e depois borrifava ouro nelas, suas esculturas bidimensionais, cada uma representando uma frase musical arrebatadora. No colégio, ele tocava saxofone, abraçando John Coltrane e Albert Ayler. Ele também jogava hóquei e, quando um disco quebrou seus dentes da frente, foi obrigado a largar o saxofone e se dedicar à guitarra elétrica.
Ele morava a vinte e oito minutos de onde fui criada. Poderíamos ter nos encontrado, duas ovelhas negras, em algum trecho rural, cada um carregando livros de poesia dos simbolistas franceses – mas não o fizemos. Não até 1973, na East Tenth Street, em frente à Igreja de São Marcos, onde ele me parou e disse: “Você é Smith”. Ele tinha cabelo comprido, ambos ecoando o futuro, ambos usando roupas que não se usavam mais. Percebi a maneira como seus longos braços pendiam e suas mãos igualmente longas e bonitas, e então seguimos caminhos separados. Isso foi até a noite de Páscoa, 14 de abril de 1974. Lenny Kaye e eu pegamos um raro táxi do Ziegfeld Theatre depois de assistir à estreia de “Ladies And Gentlemen: The Rolling Stones”, direto pro Bowery pra ver uma nova banda chamada Television.
O clube era o CBGB. Havia apenas um punhado de pessoas presentes, mas Lenny e eu ficamos imediatamente encantados, com sua mesa de sinuca, bar estreito e palco baixo. O que vimos naquela noite foi fraterno, nosso futuro, uma fusão perfeita de poesia e rock and roll. Enquanto observava Tom tocr, pensei: se eu fosse um menino, teria sido ele.
Eu ia ver Television sempre que eles tocavam, principalmente pra ver Tom, com seus olhos azul-claros e pescoço de cisne. Ele abaixou a cabeça, segurando sua Jazzmaster, liberando nuvens ondulantes, estranhos becos povoados por homenzinhos, um assassinato de corvos e os gritos de pássaros azuis correndo por uma réplica do espaço. Tudo transmutado através de seus longos dedos, quase estrangulando o braço de seu violão.
Nas semanas seguintes, nos aproximamos. Enquanto caminhávamos pelas ruas da cidade, improvisaríamos histórias em andamento, nossas próprias “Noites da ArábiaA. Descobrimos que ambos amávamos a obra do compositor armênio-americano Alan Hovhaness, sendo nossa obra favorita “Prayer oOf St. Gregory”. Examinando as estantes uns dos outros, ficamos surpresos ao descobrir que nossos livros eram quase idênticos, mesmo aqueles de autores difíceis de encontrar. Cosseria, Hedayat, Tutuola, Mrabet. Nós dois éramos exploradores literários independentes e passamos a compartilhar nossas fontes secretas.
Ele devorou poesia e rosquinhas Entenmann com cobertura de chocolate amargo, engolido com café e cigarros. Às vezes, ele parecia sonhador e distante, então de repente explodia em gargalhadas. Ele era angelical, mas levemente demoníaco, um personagem de desenho animado com a graça de um dervixe. Eu o conhecia então. Gostávamos de dar as mãos e passar horas folheando as prateleiras do Flying Saucer News e indo pra rua 48 e olhando guitarras que ele nunca poderia comprar e pegando a Staten Island Ferry depois de três sets no CBGB e subindo seis lances de escada até o apartamento na East Eleventh Street e deitados juntos em um colchão olhando pro teto e ouvindo a chuva e ou outra coisa.
Não havia ninguém como Tom. Ele possuía o dom infantil de transformar uma gota d’água em um poema que de alguma forma gerou música. Em seus últimos dias, ele teve o apoio altruísta de amigos dedicados. Não tendo filhos, ele acolheu com agrado o amor que recebeu de minha filha, Jesse, e de meu filho, Jackson.
Em suas últimas horas, vendo-o dormir, viajei no tempo. Estávamos no apartamento e ele cortou meu cabelo, e algumas mechas ficaram espalhadas, então ele me chamou de Winghead. Nos anos seguintes, simplesmente Wing. Mesmo quando ficamos mais velhos, sempre Wing. E ele, o menino que nunca cresceu, no alto do Ômega, um filamento dourado na vibrante luz violeta.