“Na sequência do chuveiro e seus desdobramentos, as anotações do diretor pro compositor Bernard Herrmann e pra Waldon O. Watson e William Russell, responsáveis pelo som, datadas de 8 de janeiro de 1960, são mais enfáticas. De novo, ele parece disposto a causar impacto mais pelos ruídos do que pela música: ‘durante o assassinato, temos que ter o barulho do chuveiro e dos golpes de faca. Precisamos ouvir a água descendo pelo ralo da banheira, especialmente quando a câmera fecha nele… quando Marion é esfaqueada, o som do chuveiro tem que ser contínuo e monótono, quebrado apenas pelos gritos de Marion’.
“Depois de cinco filmes consecutivos com o compositor Bernard Herrmann, Hitchcock respeitava profundamente as contribuições do músico brilhante, e muitas vezes rude, nascido em Nova York e formado pela famosa escola Julliard. Fundador e regente de uma orquestra de câmara aos vinte anos, Herrmann, como Hitchcock, podia às vezes ser um perfeccionista agressivo, briguento e pedante. Embora fosse evidente que o compositor não era o tipo de pessoa que aceita ser dirigida com facilidade, ele seguiu fielmente as instruções de Hitchcock pra música do primeiro terço de ‘Psicose’ – a não ser por uma única e inesquecível exceção.
“‘Hitchcock tinha um excelente relacionamento com Bennie’, comentou o continuísta Marshall Schlom. ‘E a maneira de mantê-lo era dar a Herrmann a liberdade de ação que ele queria. Hitchcock só desejava estar perto de pessoas que sabiam o que estavam fazendo’. O compositor, que morreu em 1975, disse uma vez ao diretor Brian De Palma: ‘Eu me lembro de estar sentado numa sala de projeção depois de ver o corte bruto de ‘Psicose’. Hitch andava nervosamente de um lado pro outro dizendo que estava uma porcaria e que iria cortá-lo pro formato de seu programa de TV. Estava louco. Não sabia o que tinha em mãos. Falei: ‘Espera um pouco, tenho umas ideias. Que tal uma orquestração só com cordas? Eu era violinista, você sabe…’. Ele estava fora de si na época. Tinha bancado o filme com seu próprio dinheiro e temia um fracasso. Nem queria que eu botasse música na cena do chuveiro. Você pode imaginar?’.
“Na verdade, Hitchcock estava determinado que não queria ‘nenhuma música na sequência (do motel)’ entre Marion e Norman. Herrmann desconfiou tanto do estado alterado em que se encontrava o seu colega diretor que ignorou a sugestão dele pra uma agitada trilha musical de jazz pós-bebop. O roteirista Joseph Stefano, ex-músico, se lembrou do compositor dizendo ”vou usar só as cordas’. Achei estranho. Sem bateria? Sem seção rítmica? Na época, não percebi que ele vinha se preparando ao longo de vários filmes – ‘Um Corpo Que Cai’ é um bom exemplo – pra uma trilha musical como aquela. Mas senti que Bernard Herrmann tinha sido a primeira pessoa além de Hitchcock e de mim a entender o filme, a primeira a dizer ‘epa, temos uma coisa diferente aqui””.
“Pra ‘Psicose’, Bernard Herrmann criaria nada menos que uma obra-prima pra violoncelo e violino, música em ‘preto e branco’ que pulsava sonoramente ao mesmo tempo em que corroía as terminações nervosas. A composição provou ser um resumo de todo o trabalho feito por ele pra filmes anteriores do diretor, dada a forma com que transmitia o abismo da psique humana, temor, desejo, arrependimento, enfim, os mananciais do universo hitchcockiano. Segundo Stefano, o cineasta ficou particularmente satisfeito com os ‘violinos que gritavam’ de Herrmann e ‘deu a ele mais reconhecimento do que a qualquer outra pessoa sobre quem já houvesse falado’. O parcimonioso diretor ficou tão satisfeito que fez o inusitado: praticamente dobrou o salário do compositor pra 34.501 dólares”.
O caso acima é contado por Stephen Rebello em seu livro de 1990, “Alfred Hitchcock E Os Bastidores de Psicose” (no Brasil, pela Intrinseca). O livro e esses bastidores viraram filme (“Hitchcock”, de 2012, dirigido por Sacha Gervasi). “Psicose”, de 1960, é um dos grandes clássicos do diretor; pra muitos, o maior clássico. E a cena do assassinato de Marion sempre figura em qualquer citação ou lista das mais sublimes da história do cinema. Mas, como se vê, o planejado pelo diretor não constava música alguma ali. Foi a música de Bernard Herrmann que salvou a cena.
O áudio do tema principal:
A cena completa do assassinato:
Outros livros falam especificamente sobre a importância da música nos filmes de Hitchcock. Um deles é “Hitchcock’s Ear: Music And The Director’s Art”, de David Schroeder, lançado em 2012. Outro é “Hitchcock’ Music”, de Jack Sullivan, de 2008.
Schroeder conta que a paixão de Hitchcock “como ouvinte permaneceu por toda sua vida, embora nos Esteites ele não fosse aos concertos ou à ópera, preferindo ouvir música em seu sistema de som potente que tinha em casa. Ele dividiu seu entusiasmo pela música com amigos enquanto vivia na Inglaterra, tais como o ator Charles Laughton (…). Hitchcock declarou que Wagner era seu compositor favorito”.
O autor reforça o fato de Hitchcock fazer parte da geração de cineastas que teve que fazer a transição do cinema mudo pro cinema sonoro. Pra ele, a transição só solidificou a ideia de que o uso do silêncio e da interpretação vindo do cinema mudo ainda estava presente, que o som, a fala e a música viriam acrescentar à dramatização e não simplesmente substituir tudo o que havia antes.
Em seu livro, Sullivan quer mostrar ao leitor que o diretor não apenas acreditava que o som deveria servir à imagem, mas que a imagem deveria servir ao som, e por isso disseca a relação de seus filmes com a música: o drama pra achar o tema certo, as pegadinhas, as piadas internas, as brigas com os estúdios…
Em “A Dama Oculta” (“The Lady Vanishes”, 1939), por exemplo, a mensagem que envolve a trama é feita em notas musicais. Em “O Homem Que Sabia Demais” (“The Man Who Knew To Much”), na versão de 1956, o assassinato deve ocorrer no momento exato em que o prato da orquestra bater, e o filho do casal é salvo das mãos dos sequestradores porque a mãe Doris Day canta “Que Sera Sera (Whatever Will be Will Be)” o mais alto possível. Às duas versões de “O Homem Que Sabia Demais” (1934 e 1956), Sullivan dá o adjetivo de “thriller sinfônico”. Em “Suspeita” (“Suspicion”, 1941), o personagem de Cary Grant envolve Joan Fontaine em suas danças e valsas sombrias.
A música nos filmes de Hitchcock são tão importantes que o próprio diretor confidenciou a François Truffaut (no famoso livro-entrevista “Hitchcock/Truffaut”): “Tenho a sensação de que sou um maestro de orquestra”.
Sullivan aponta que Hitchcock tinha “instintos musicais acima da média”. Mas também aponta que, como diretor vindo do cinema mudo, com habilidades no uso do silêncio, Hitchcock sabe que “uma pausa pode ser tão significativa como uma nota”, como é o caso de “Intriga Internacional” (“North By Northwest”, 1959), onde a música de Herrmann não aparece na famosa cena do ataque do avião, até o momento da explosão, aumentando o absurdo vivido pelo personagem de Cary Grant.
Franz Waxman era o homem que embalava o diretor nos seus primeiros filmes estadunidenses (além de “Janela Indiscreta”, “Rear Window”, de 1954). Também trabalharam com ele: Miklos Rosza, Lyn Murray, Dimitri Tiomkin, Arthur Benjamin, Henry Stafford, Maurice Jarre e até mesmo o gênio das superproduções da nova era, John Williams, que fez “Trama Macabra” (“Family Plot”, 1976). Mas foi Herrmann que apareceu em sua vida e mudou tudo. Ele foi o autor das trilhas dos seus mais reconhecidos filmes.
Sua estreia foi com “O Terceiro Tiro” (“The Trouble With Harry”, 1955), e daí vieram “O Homem Que Sabia Demais”, “O Homem Errado” (“Thw Wrong Man”, 1956), “Um Corpo Que Cai” (“Vertigo”, 1958), “Intriga Internacional”, “Psicose” e “Marnie, Confissões De Uma Ladra” (“Mernie”, 1964).
Herrmann deu recheio às tramas do diretor, como é o caso relatado de “Psicose”. Sullivan relata o rompimento da dupla, por conta de “Cortina Rasgada” (“Torn Courtain”, 1966). Hitchcock era pressionado pelo estúdio a usar uma trilha mais pop, bem anos sessenta. O lance era atrair mais jovens às salas. Herrmann, sabendo do projeto, disse que ficaria “encantado pra compor uma trilha sonora ‘vigorosa’ pro filme”, e chegou a escrever uma peça que incluía doze flautas, que chamou de “aterradoras”, e um “massacre de cordas”. Hitchcock já não tinha o mesmo vigor de seis anos antes, na época em que arriscava tudo em “Psicose”, e cedeu aos pedidos do estúdio, demitindo Herrmann. O último grande filme do diretor a ganhar a estampa de “clássico” foi “Os Pássaros” (“Birds”, 1963), no qual o compositor atua apenas como consultor.
No final das contas, o senso de ritmo que um cineasta precisa impor ao contar sua história (e o mesmo vale, claro pra um escritor) soa como se fosse uma sinfonia, com crescendos, pausas, explosões, tensões, clímax e epílogo. O cineasta, como a música em geral, precisa abraçar o consumidor da obra, fazer com que ele se interesse do começo ao fim. No filme, a música pode ser só mais uma ferramenta (como o são os atores, o roteiro, a montagem, as trucagens), mas é ela a responsável por prender a atenção em comunhão com o que está sendo visto.
Olhos e ouvidos trabalhando juntos. Hitchcock sabia como poucos unir os dois sentidos.