Dia 31 de julho de 2015, o New York Times publicou um artigo curto escrito por David Byrne sobre a problemática da remuneração e distribuição dos direitos autorais nos dias de hoje. Os serviços de streaming, a banda larga, os 3G e 4G da telefonia móvel e os modernos aparelhos mudaram a forma como as pessoas consomem música. As vendas de vinis e CDs não representam mais o grande pedaço do bolo da indústria musical, que teve que se agilizar pra se adaptar.
Isso resultou no apoio total e irrestrito das grandes gravadoras aos serviços de streaming, tornando o que era “inimigo” um forte aliado. No fim das contas, pros artistas, pouco mudou: eles continuam dependentes de contratos com as majors e dançam conforme a música que elas tocam.
Byrne está preocupado. Ele também é dono de um selo, como se sabe, e, por ser pequeno, sente na pele os problemas enfrentados pelos iniciantes – embora, como ele mesmo admite, em menor peso: “estou indo bem, mas minha preocupação é com os artistas novos: como eles viverão de música?”.
A pergunta não quer calar, seja aqui no Brasil, seja lá nos Esteites, seja em qualquer canto do mundo cada vez menor, sem fronteiras e cada vez mais dominado por corporações e pela força do capital.
O tema é recorrente aqui no Floga-se, como você, leitor assíduo (há algum?), tá cansado de saber. Falamos sobre a distribuição equivocada pelo Spotify aqui, falamos sobre como poderia ser uma divisão mais justa e falamos sobre como esses serviços se nutrem de uma prática publicitária predadora.
Não há resposta. Por ora, só discussão, debate, análise. Byrne também não tem uma resposta. Ele nem ousa. Mas aponta que há esperança. Joga várias cartas na mesa, fala sobre muito do que a gente mesmo já discutiu – e até com mais profundidade – mas ele é a voz de alguém consagrado, no miolo da indústria, que conhece os processos, e que emitiu uma opinião sem a desconfiança de estar procurando um quinhão a mais (como Taylor Swift vem sendo “acusada” ultimamente, nas suas constantes batalhas com esses serviços). Ele, como a gente, quer só entender como esse novo mercado funciona.
Byrne é autor do livro “Como Funciona A Música” (“How Music Works”, 2014; no Brasil, editado pela Amarilys), onde aborda “aspectos históricos, técnicos, culturais e mercadológicos, bebendo de sua experiência pessoal ao lado do Talking Heads, de Brian Eno e de vários outros parceiros criativos – bem como em suas viagens por casas de ópera, vilarejos africanos, favelas brasileiras e basicamente qualquer outro lugar onde se faça música – pra demonstrar que a criação musical não é algo exclusivo de compositores solitários trancados num estúdio, mas sim o resultado de uma série de circunstâncias naturais e sociais”.
Ele sabe do que tá falando.
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Texto: David Byrne
Tradução Floga-se
Original: clique aqui
Esse deveria ser a melhor época pra música na história – nunca se produziu, distribuiu e escutou tanta música. Ter pessoas que estão dispostas a pagar por streaming digital é uma boa notícia. Na Suécia, onde foi criado, o Spotify salvou a indústria musical que a pirataria havia estripado.
Todo mundo deveria estar comemorando – mas muitos de nós que criam, apresentam e gravam música não estão. Casos de artistas populares (tão populares quanto Pharrell Williams) que recebem insignificantes cheques de direitos autorais por canções que foram executadas milhares ou até mesmo milhões de vezes (como “Happy”), no Pandora ou Spotify, são comuns. Obviamente, a situação pros artistas menos conhecidos é muito pior. Pra eles, fazer a vida nesse novo cenário musical parece impossível. Eu, por minha vez, estou indo bem, mas minha preocupação é com os artistas novos: como eles viverão de música?
É fácil culpar as novas tecnologias, como os serviços de streaming, pela drástica redução dos ganhos dos músicos. Mas olhando mais de perto, vemos que é um tanto mais complicado. Apesar do público ter crescido, maneiras foram encontradas pra desviar uma porcentagem ainda maior do que os fãs e consumidores pagam pela música gravada. Muitos serviços de streaming estão à mercê das gravadoras (especialmente as três grandes: Sony, Universal e Warner), e acordos de não-confidencialidade fazem com que tudo não seja mais transparente.
Talvez o maior dos problemas que os artistas encaram hoje seja a falta de transparência. Fiz perguntas básicas pros serviços digitais e gravadoras e só encontrei obstáculos. Por exemplo, perguntei ao YouTube como a receita dos anúncios de vídeos que contenham música é dividida (uma questão incrivelmente básica). Responderam que eles não informam os números exatos, mas disseram que a parte do YouTube é “menos que a metade”. Uma fonte da indústria (que pediu pra não ser identificada por causa do teor da informação) me contou que a partilha é de aproximadamente 50% pro YouTube, 35% pro dono da master e 15% pro editor da obra.
Antes que os músicos e seus advogados possam se mover pra decretar um sistema mais justo de remuneração, precisamos saber exatamente o que tá rolando. Precisamos de informações dos dois lados, das gravadoras e dos serviços de streaming, sobre como eles partilham a riqueza gerada pela música. Taylor Swift, quando forçou a Apple a recuar do plano de não pagar direitos no período de testes do seu novo serviço, a Apple Music, fez alguns pequenos progressos nesse processo – mas nós ainda não sabemos o quanto a Apple concordou em pagar, ou como eles irão determinar a taxa por execução.
Ter uma ideia de pra onde vai o dinheiro que pagamos pela assinatura de um serviço de streaming é notoriamente complicado. Eis o que sabemos sobre isso: algo em torno de 70% do dinheiro que os ouvintes pagam ao Spotify (que, pelo menos, tentou jogar luz nesse opaco sistema de pagamento) vai pro donos dos direitos, normalmente as gravadoras, que desempenham o mais importante papel de determinar o quanto os artistas são pagos (um contrato de 2011 entre Sony e Spotify, recentemente vazado, mostrou que o serviço concordou em pagar pra gravadora mais de quarenta milhões de dólares em adiantamento pelas execuções dos três anos seguintes, mas não diz o que a Sony fez com o dinheiro).
As gravadoras então pagam os artistas uma porcentagem (normalmente, 15% ou mais) da sua parte. Isso poderia fazer sentido se a música executada incluísse fabricação e outros custos físicos pra gravadora recuperar, mas não é o que acontece. Quando comparado com a produção do vinil e do CD, o streaming dá às gravadoras margens incrivelmente altas, mas as gravadoras agem como nada tivesse mudado.
Considere as questões não respondidas na disputa Swift-Apple. Por que as grandes gravadoras não vêem problema com o período de teste do novo serviço da Apple? Será que é porque lhes foi oferecido um acordo melhor do que o oferecido aos selos pequenos, independentes? Será que é porque eles detém os direitos de uma vasta biblioteca sem custos de produção ou distribuição, e sem essa biblioteca nenhum serviço de streaming poderia operar?
A resposta, ao que parece, está principalmente a última questão – as grandes gravadoras têm seus parrudos catálogos e elas podem enfrentar a estiagem de três meses sem receber (as grandes gravadores estão focadas no jogo a longo prazo: entre 40% e 60% dos clientes “freemium” aderem à versão paga após o período de testes).
Pedi à Apple Music pra explicar o cálculo dos direitos pro período de testes, período que é gratuito ao consumidor. Eles disseram que revelam tal informação apenas aos donos dos direitos (ou seja, as gravadoras). Tenho meu próprio selo (N.E.: o Luaka Bop) e possuo os direitos autorais sobre alguns dos meus discos, mas quando fui falar com meu distribuidor, a resposta foi: “você não pode ver o acordo, mas você pode acionar seu advogado pra falar com o nosso e responderemos algumas dessas questões”.
E piora. Uma fonte na indústria me disse que as grandes gravadoras fazem o que quiserem com a grana que recebem dos serviços de streaming, numa base aparentemente arbitrária pros astistas do seu catálogo. Aqui vai um exemplo hipotético: vamos dizer que em janeiro, “Stay With Me”, de Sam Smith, foi responsável por 5% do total pago pelo Spotify à Universal Music por todo seu catálogo. A Universal não é obrigada a pegar 5% da grana que recebeu e colocar na conta de Sam Smith. Ela pode dar 3% – ou 10%. O que vai impedi-la?
As gravadoras também pegam dinheiro de outras três fontes, todas escondidas dos seus artistas: eles recebem adiantamento dos serviços de streaming, pagamentos pelo catálogo de velhas canções e igualmente das execuções nos serviços.
Músicos são empresários. Somos essencialmente parceiros das gravadoras, e devíamos ser tratados dessa maneira. Artistas e gravadoras têm muitos interesses em comum – ambos estão revoltados, por exemplo, com os pífios pagamentos do YouTube (mais gente ouve música de graça no YouTube do que em qualquer outro lugar). Com dados compartilhados sobre como, onde, porquê e onde somos ouvidos, podemos expandir nosso alcance. Isso deveria beneficiar o YouTube, as gravadoras e os músicos na mesma medida. Com cooperação e transparência, a indústria pode triplicar o tamanho com relação ao que é hoje, disse-me Willard Ahdritz, chefe da Kobalt, uma editora e consultora de música independente.
Há esperança. Recentemente, passei dois dias em Capitol Hill (um bairro de Washington DC), com a ajuda da Sound Exchange, uma organização sem fins lucrativos pra organização, distribuição e coleta de direitos autorais, pra discutir uma compensação mais justa pra artistas, através do Fair Play Fair Pay Act, uma lei que forçaria as estações AM e FM a pagar os músicos toda vez que são executados, como a maioria do mundo faz.
“Atualmente, apenas os compositores e editores são pagos quando a música toca nas rádios. Estações não são legalmente obrigadas a pagar um centavo aos artistas que gravam tais canções e aos detentores dos direitos autorais (normalmente, a gravadora, mas às vezes o artista)”, diz o texto do Fair Play Fair Pay Act.
A Rethink Music, uma iniciativa do Berklee Institute For Creative Entrepreneurship (Instituto Berklee pro Empreendedorismo Criativo), divulgou um relatório mês passado que recomenda que os acordos e transações na indústria sejam mais transparentes; simplificando o fluxo de dinheiro e melhorando o uso compartilhado da tecnologia pra se conectar com os fãs.
Algumas dessas ideias em matéria de transparência são radicais – “perturbador” é a palavra que o Vale do Silício usaria – mas é o que é preciso fazer. Também não é só sobre gravadoras. Abrindo a Caixa Preta, toda a indústria da música, tudo isso, pode florescer. Há uma crescente onda de insatisfação, mas podemos trabalhar juntos pra fazer as mudanças fundamentais que farão bem a todos.