“Durante dois anos, quase todos os dias, o músico e cantor dinamarquês Casper Clausen, 39 anos, membro fundador dos influentes Efterklang, uma das mais inventivas bandas do pop-rock alternativo europeu, cruzou o Tejo pra ir trabalhar no estúdio que criou num velho armazém semiabandonado, situado no popular bairro do Olho de Boi, junto a Cacilhas. ‘Há algo que me fascina na água a fluir. Foi o estúdio mais cool que já tive. Esse local ajudou-me a encontrar o caminho certo pra este disco, que tem muito que ver com Lisboa. Não canto propriamente sobre as ruas, mas a vibração da cidade está toda lá'”, escreveu o Diário de Notícias, de Portugal, sobre “Better Way”, primeiro disco solo de Clausen.
“Neste momento estou numa espécie de limbo, por causa da pandemia. Ainda tenho todas as minhas coisas em Lisboa, apesar de já não ter mais casa aí”, ele disse.
Clausen se juntou a Peter Sonic Boom Kember, um Spacemen 3, que também mora em Portugal, pra fazer o disco. Kember produziu a obra. Veja só, uma união um tanto inusitada.
O Efterklang é algo que talvez Kember jamais ouvisse em casa. “Tenho escrúpulos”, ele poderia dizer, no que eu discordo bastante. Os dinamarqueses são uma espécie de Coldplay com culhões e corações – depois de “A Rush Of Blood To The Head”, Chris Martin parece ter trocado o coração por uma caixa registradora e ok, as pessoas precisam ganhar a vida, viva la vida!
“Better Way” parece mais um disco de Kember do que de Clausen e não há qualquer influência portuguesa, mas que bom que o Diário de Notícias se esforçou. Então, “Better Way” é um disco ótimo pra quem ainda está nesse limbo causado pela pandemia, como Clausen, como eu, talvez como você e mais alguém.
Bom, o disco foi lançado em janeiro, então muita coisa mudou no mundo de lá pra cá. No Brasil, de março a maio, as lágrimas correram como nunca, inundando os rostos de quem perdeu os amados (e eram na faixa de três mil pessoas por dia). A inflação de dois dígitos voltou, a luz aumentou com a crise hídrica, a excrescência que habita o Palácio da Alvorada insinuou um golpe de estado e seguiu propagando cloroquina e levando mais gente à morte, a gasolina segue sua escalada, e as duas doses vieram ao meu braço (e de quem sabe-se lá como sobreviveu a essa insanidade toda).
Clausen conseguiu nesse meio tempo voltar a se unir com os companheiros do Efterklang e terminar mais um disco, “Wildflowers”, que se aproxima muito mais do Coldplay, embora saiba apreciar as belezas da vida pós-sobrevivência. Sim, sobreviventes são como flores silvestres, se viram como podem em um ambiente pouco favorável.
O Brasil de Bolsonaro é assim, pouco favorável à vida. Quem viveu é um herói e precisa continuar se virando, sem emprego, sem amor, sem compaixão, sem empatia, sem perspectivas.
As flores silvestres do Efterklang entram em comunhão com “Dark Heart”, do disco solo de Clausen, o que me faz pensar que Kember talvez desse um espaço pro Efterklang. E remete também ao disco de mesmo nome de Tom Petty, de 1994, mas só no nome. Está tudo conectado, afinal das contas?
Não sei dizer e a resposta nem é importante. São discos quase paralelos, há muito pouco em comunhão, a não ser uma ou outra faixa e o fato de que ambos são obras-sobreviventes, porque quem viveu até aqui conseguiu escapar de uma morte inadvertida. Clausen é outro ponto de união. E o saborear da vida também.
Já fui desses que achava que saborear a vida era estar bem próximo da morte. Drogas, vida louca (ops!), sexo sem proteção, atravessar a rua de olhos fechados, beber e dirigir, mandar o chefe à merda: corri muitos riscos pelo prazer imbecil de contornar a morte. Só que as flores silvestres não contornam nada, elas se adaptam, evoluem e vivem. Elas não foram intencionalmente cultivadas. Elas nasceram pela ação caótica da natureza.
Em certa medida, todos somos assim, frutos da aleatoriedade, já que a vida neste inóspito e único planeta é por si só uma aleatoriedade química, física, biológica. E evoluímos (queremos crer que sim) e nos adaptamos, por mais que muita gente se esforce pra que a humanidade ande pra trás, negando a ciência, a lógica e a razão.
Entre “Better Way” e “Wildflowers”, discos do mesmo tempo, parece que o primeiro é uma evolução do segundo. Porque os discos, a arte, também são como flores silvestres, que se adaptam ao ambiente. O Clausen de Lisboa, com Kember, não é o mesmo de Copenhague, junto com outros dinamarqueses da banda. A vida na pandemia não é a mesma no quase-pós-pandemia. Clausen não é o Efterklang, que também não se resume a Clausen.
Se sozinhos nós podemos fazer o que quisermos, por nosso própria conta e nosso próprio risco, em grupo podemos trocar ideias e ser, em tese, mais criativos. Clausen experimentou em um espaço curto de tempo, as duas experiências. Nós também, de uma forma ou de outra. Alguns ficaram sozinhos trabalhando em casa e foram jogados de volta aos escritórios. Outros se isolaram por meses do convívio social e tiveram que se readaptar. E posso ficar linhas e linhas aqui divagando sobre o quanto faz sentido os dois discos com a vida que levamos nesses anos de 2020 e 2021.
Mas o melhor a fazer é simplesmente ouvir e sentir as diferenças. Apreciar nos custa muito pouco.
“Better Way”:
1. Used To Think
2. Feel It Coming
3. Dark Heart
4. Snow White
5. Falling Apart Like You
6. Little Words
7. 8 Bit Human
8. Ocean Wave
Lançamento: 9 de janeiro de 2021 (City Slang)
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“Wildflowers”
1. Alien Arms
2. Beautiful Eclipse
3. Hold Me Close When You Can
4. Lady Of The Rocks
5. Dragonfly
6. Living Other Lives
7. Mindless Center
8. House On A Feather
9. Åbent Sår (com The Field)
Lançamento: 8 de outubro de 2021 (City Slang)