Você já se apaixonou por alguém que nunca irá conhecer, que nem sabe que você existe e que provavelmente seus caminhos nunca se cruzarão por maior que seja o seu esforço pra isso? Comigo acontece todos os dias, desde a mais inocente infância. No começo eram professoras, embora elas fizessem parte da minha vida, estivessem no meu caminho. Mas, é óbvio, professoras são impensáveis em todos os aspectos.
Na adolescência, vieram as colegas de classe, de colégio, de praia, as vizinhas, as primas, todas intocáveis, cegas à minha existência. Apareceram, então, as capas de revistas, as atrizes das novelas e do cinema (fui perdidamente apaixonado por Molly Ringwald, por Tássia Camargo e por Danica McKellar).
Com uns quinze anos, fiquei tremendo por dias ao me deparar com uma dançarina de forró no interior do Rio Grande do Norte, quando fui visitar um ramo da família que se aconchegou por lá. A mulher, uns trinta anos mais velha que eu, acima do peso definido pelo mercado de moda como “ideal”, dançava como poesia pelo chão de concreto malfeito. Seus pés se arrastavam como pincéis numa tela em branco. A microssaia oferecia uma visão vantajosa de suas coxas tão apetitosas pra um adolescente virgem quanto, talvez, seriam até hoje. Os homens babavam mesmo era pra outra moça: essa faceira, vinte anos no máximo, seios duros marcando no vestido. A quarentona, porém, era puro delírio pra mim. Incrustou-me por um tempo na mente como o tipo de mulher ideal. Não quis dançar com um “meninote” como eu, ela me disse, depois de séculos tentando tomar coragem, naquela noite.
Tive homens pelos quais me apaixonei também. Nenhum famoso, porque homem famoso é como um bibelô pra colocar em estante. Não: homens desse tipo e daquele. Tive alguns homens na minha vida, mas nenhum deles eram paixões. As paixões mesmo foram inviáveis.
Já adulto cheguei até a me apaixonar pela minha chefe em uma das agências onde trabalhei. Ela era casada, tinha quase sessenta anos e, reclamavam os detratores, era chata e tinha os cabelos mais sebosos da nossa era. Mas nunca fui de ligar pra isso. Quem manda é o meu coração e meu coração não vê cabelos, cor da pele, gênero, idade, peso ou pelos – talvez só hálito. E não, não é tesão, que isso se resolve fácil – é paixão mesmo.
Não é uma novidade, mas agora estou apaixonado por uma voz. E, depois descobri, a voz vem de uma moça muito bonita, rosto e corpo, e da qual será impossível atestar algo mais: ela é de uma cidadezinha na Nova Zelândia, chamada Ōhinehou, no dialeto local, ou Lyttelton, em inglês.
Ela tem uma voz que é… aterrorizante. Não no sentido de meter medo, veja bem, mas de me deixar apavorado pelo fato de que eu nunca poderei ser o alvo dos sentimentos, bons ou ruins, que se extrai daquelas cordas vocais. Dói, sinceramente, saber que uma voz como aquela – e seu corpo, a pessoa, a alma que a carregam – talvez esteja prometida pra algum outro coração e será feliz sem a minha presença.
É uma voz sofrida; angustiada, por vezes. É uma voz sem o menor pudor de se entregar. Voz que arrebata de longe, como uma lança aguda no peito. Pobre coração. Ela é um instrumento, entre bateria, violão, guitarra e baixo que talvez a acompanhem. Não à toa, tal voz cruzou o mundo e foi parar em ouvidos ingleses, que a tratam agora com o destaque que merece.
Quando em 2014 ela lançou seu primeiro disco, homônimo, foi confundida com um folkzinho como tantos outros que o mundo ouve por aí. Mas alguém ouviu e talvez tenha se apaixonado como eu. Sorte: esse alguém era da mesma gravadora do Cocteaus Twins, do Pixies, do National e tantos e tantos outros. Na 4AD, deve haver alguém como eu, que se apaixona todos os dias, sem se importar com o tipo ou se é de fato um tipo, ou se é só uma voz. Com essa voz.
Não, não, sua voz não é impactante como uma Beth Carvalho ou Frank Sinatra ou Ella Fitzgerald (ou qualquer uma aveludada que você possa vir à mente quando pensa em alguém que canta encantando). Há simplesmente algo na voz dela que me acende a imaginação.
Ouça o primeiro disco, homônimo:
O tempo passou. Falei sobre essa minha paixão a um amigo, uns dois anos atrás, assim que o primeiro disco chegou não sei como aos meus ouvidos, e como essa voz me pegou de jeito e como eu não fazia ideia de quem era a Aldous Harding.
Ele não se esqueceu disso. Fui pra seu sítio no interior há pouco. É no caminho pra Minas Gerais, quase divisa. É silencioso lá. As noites são como aquelas que não se vê em qualquer cidade, muito menos em metrópoles: estrelas, algumas cadente, com sorte, um preto-quase-azul-escuro, a lua mais redonda que uma moeda. A esposa desse meu amigo, me deu o iPod dela. “Ouça isso”, ela disse. Na rede da varanda, enquanto todos já dormiam, naquela madrugada meio fria, vento gelado saindo sabe-se lá de qual direção, uma cerveja escura, um baseado em fim de carreira, coloquei o fone. O iPod levou-me a Aldous Harding e seu novo “Party”, de 2017 (de 19 de maio!), à voz pela qual um dia eu havia me apaixonado e deixado pra lá. Ela estava ali de novo.
Foi uma das noites mais emocionantes deste ano. A mais, sei lá, não lembro de ter me transportado tão longe, com tanta felicidade. Não sei se o casal de amigos transou naquela noite, no calor do quarto deles. Mas eu sim. Aldous não sabe disso, mas quando ela cantava “You were right, love takes time, hey, hey” (em “Imagining My Man”), tive uma ereção implacável. E transformei gozo em lágrimas com sua melhor interpretação, em “I’m So Sorry”, uma quase-bossa-nova.
Como acontece comigo, o amor pra Aldous é algo às vezes distante e impossível. Intocável. Ela, como eu e muitos outros, não consegue o amor que quer, o homem perfeito – em “Blend”, ela canta isso com uma poesia objetiva irretocável; e na faixa-título, ela entrega como uma boneca, sua voz acima de um violão dedilhado, coração destroçado pra voltar no tempo.
No dia seguinte, sorriso no rosto, minha amiga entendeu que a noite valeu a pena. Aldous é certeira. “I was as happy as I will ever be / Believe in me”, cantei.
Depois, vi o rosto e o corpo dela no vídeo – não sei o porquê de nunca ter feito esse exercício! A voz ganhou uma dimensão física (no caso do vídeo de “Blend”, que corpo, que boca, que bunda, que peitos, que senso de humor! – é impossível não rir com ela dançando desajeitadamente).
Mesmo assim ela sempre vai ser a voz cuja figura é inalcançável. Uma paixão com treze horas de fuso-horário. Tão longe, tão perto pela arte. Se Aldous é mais uma das minhas paixões frustradas pela incapacidade de ser correspondida, pelo menos ganhei um dos melhores discos desse ano. É isso o que “Party” é: pra muitos, só um disco; pra mim, uma carta de amor pela qual nunca poderei agradecê-la ao vivo.
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Você pode ouvir o disco na íntegra aqui:
1 Blend
2 Imagining My Man
3 Living The Classics
4 Party
5 I’m So Sorry
6 Horizon
7 What If Birds
8 The World Is Looking
9 Swell Does The Skull
O texto mais bizarro que vc vai ler hj…