ÁCIDAS: MEU PARAÍSO NA TERRA

Eu devia ter uns vinte anos e me amarrava andar pelas ruas ouvindo um disco escolhido a dedo. Era uma época curiosa. Tínhamos duas opções de “carregar” música conosco: fitas-cassete, em pleno declínio, e CD players, que eram práticos demais, só que tinham o inconveniente de balançar um bocado se a gente caminhasse rápido ou corresse. Eu preferia as cassetes.

Meu walkman parecia que já tinha saído de fábrica surrado de tão surrado que era, mas de imediato ganhou o título de meu inseparável companheiro. Quando eu queria ficar sozinho, era com ele que ficava. Bastava escolher um disco e pronto. E uma das minhas grandes diversões na época era gravar meus LPs e CDs em cassete pra poder andar com eles. Tinha todos nas mídias originais e em cassete. Cheguei a ter mais de duas mil fitas-cassete empilhadas num canto da casa, o que era uma visão um tanto bruta do meu ócio.

Mesmo com esse montante eu elegia um único disco toda vez que saía e ele seria meu companheiro por todo aquele dia. Faculdade, trabalho, ônibus, caminhada, sempre com a mesma obra. Era preciso escolher com cautela. Uma escolha ruim podia arruinar o dia, fazer eu passar horas em silêncio sem ouvir nada, já que eu simplesmente não queria ouvir aquele disco. Era uma tarefa cruel escolher.

Em 1994, essa tarefa se mostrou cirúrgica. Estava no sítio de uma tia no interior de Minas Gerais. É um lugar bem afastado da cidade e bom pra caminhar e ficar sem fazer rigorosamente nada, a não ser, claro, ouvir uns discos no walkman. Há umas montanhas por ali, com trilhas abertas por aventureiros, mas não demarcadas, de modo que é bem fácil se perder. Mas você sabe como é o ser humano, bicho que se acha imune a erros e que as merdas só acontecem ao outros.

Naquele dia, escolhi o “Little Creatures”, do Talking Heads, e fui caminhar numa das trilhas. Era uma trilha um tanto sinistra porque tinha partes bem íngremes, passava por dois córregos e tinha partes que era mata pura. Como quase ninguém se arrisca por ali, é por ali que eu queria ir. Às vezes, o distanciamento de quaisquer outras pessoas é o cenário mais próximo que a gente por ter o paraíso na Terra. Era isso que eu queria. E o disco escolhido me pareceu perfeito, embora eu não saiba exatamente o motivo da escolha.

Andei, subi, afastei galhos, chutei pedras, tropecei, enquanto David Byrne indicava a “estrada pra lugar nenhum”. Uma trilha pra trilha. A ideia era uma caminhada breve, de duas horas no máximo, repete o disco duas vezes se muito. Só que nada acontece como a gente planeja – ou, no caso, quando simplesmente não planeja nada.

Lá pelas tantas, me dei oficialmente como perdido. Não sabia qual caminho seguir pra voltar. Sabe-se lá como consegui a proeza e já caminhava há umas quatro horas sem saber se ia pra algum lugar. E David Byrne cantando as “criaturas do amor”, eu entre pássaros e insetos do cair da tarde. Não fosse Byrne e sua turma, talvez meu desespero tivesse sido elevado o suficiente pra eu me atirar de algum penhasco. Mas eu estava me sentido como aquele sujeito da ilha deserta: “qual disco você levaria pra uma ilha deserta?”. Pois eu, involuntariamente, sem saber que estava indo pra uma, escolhi um do Talking Heads.

Mais de vinte anos depois (nem preciso dizer que voltei são e salvo ao sítio, após umas horas de desencontros e desacertos com os caminhos), me deparo mais uma vez com esse infeliz desafio. Em tempos em que ninguém mais ouve um disco inteiro, quanto mais um disco só durante o dia, me impus o desafio de escolher qual disco afinal, lançado em 2018, merecia ficar perdido comigo. De todos aqueles que baixei e ouvi displicentemente, muitos poderiam ser eleitos, mas é bem provável que eu escolheria com grande satisfação o novo das Breeders, “All Nerve”.

Explico. Eu andava frustradíssimo com Kim Deal. Os discos anteriores (“Title TK”, de 2002, e “Mountain Battles”, de 2008) me deram uma preguiça danada. Eu me enforcaria numa ilha deserta se só esses discos estivessem à disposição, ao mesmo tempo em que recusaria qualquer tipo de socorro se eu tivesse o “Pod” ou o “Last Splash” comigo, morreria feliz. “All Nerve” fica mais próximo da força desses e não teria nenhum arrependimento de meus últimos dias se darem com ele, sozinho de uma forma que suas notas nunca me deixariam de fato sozinho.

Eu não sei em que ponto Deal e sua irmã se recompuseram, mas “Nervous Mary” e “Wait In The Car” estão entre as melhores e mais enérgicas músicas que as duas fizeram. “Walking With A Killer” tem uma doçura irônica e melancólica que fazem a solidão ter um outro significado. Não sei se são as guitarras cruas, que ora se derretem, ou a voz ainda infantil das irmãs. Não sei se é a velocidade e objetividade com que as músicas atingem o cérebro, como alguma droga potente que faz o usuário ficar alheio aos problemas e à realidade. Não sei se é a bateria dispersa de “Howl At The Summit”, nem sei se é a versão de “Archangel’s Thunderbird”, do Amon Düül II (ouça aqui a original). Há algo em “All Nerve” que faz a gente se encontrar.

E vou arriscar aqui uma forçação poética de breve lugar-comum: eu talvez me encontrei com a minha própria juventude. “All Nerve” é como se as Breeders jamais tivessem acabado e voltado e acabado e voltado, e se enfiado nas mais obscuras aventuras de auto-destruição. É como se “Pod” estivesse nascendo, logo depois de “Safari”, nesse momento, enquanto eu reencontro meus caminhos. É um disco pra você ficar com ele perdido, porque cada audição indica novas descobertas: há uma música que você não gostou de cara e passa a gostar logo depois (olá, “Blues At The Acropolis”).

É curioso como a banda consegue ficar lá parada no tempo e parecer tão mais vigorosa e moderna e atual que um punhado de bandinhas modernosas que emulam o Pixies, o Pavement, o Sonic Youth e as próprias Breeders, parecendo velhos senhores nostálgicos de olho num passado que não faz questão de voltar. É realmente engraçado como depois de tanto tempo há vigor saindo de guitarras até bem pouco desligadas sem parecer um mero auto-revivalismo, enquanto seus filhotes seguem procurando um caminho pra sair do labirinto da falta de criatividade onde se enfiaram.

“All Nerve” pode não ser o único disco de 2018 que eu levaria pra uma ilha deserta hoje. Veja, eu nem gravo mais fitas (ah, a falta de tempo!), num tocador de MP3 cabem tantos mais discos, o que faz a proposta se perder por completo. Então, eu gravaria e eu parecia o único nostálgico aqui. Perdido, mas reencontrado num período da vida mais fácil, onde os tropeços e topadas nas pedras indicam que estou no caminho certo pro meu paraíso na Terra.

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