Vivo dizendo que sou um privilegiado. Não tem como lutar contra essa constatação num país com mais de uma dezena de milhões de desempregados e outras dezenas de milhões sem oportunidades de estudo pra se desenvolver e conseguir ser mais do que simples estatística. Se outros milhões nem acesso a comida e saneamento básico têm, como podem sequer estudar, se estudo lhes fossem permitido ter?
Já eu tive acesso a um bom colégio e faculdade. Tive farta comida e boa moradia a vida toda. Tive acesso a cultura e lazer. Saí na frente desses milhões de sem-oportunidades, que têm que se virar como podem pra sonhar com algo diferente. Meus pais me deram essa estrutura. Tento fazer o meu melhor por tal exclusividade. Num mundo metido a meritocrático, a balança tá mais pra mim com relação a tantos desassistidos e mais pra sobrenomes abastados do que pra mim. É um jogo claramente injusto e tem gente que ainda acredita em mérito e igualdade.
Trabalho há décadas com publicidade e marketing e sei bem que a turma é quase sempre de jovens bem nascidos, com oportunidades e que passaram quase nenhuma necessidade na vida. Normalmente, são brancos. Por isso, quando conheci Clichê, me deu um certo calor no coração. Quer dizer, não só por isso. Clichê é um diretor de arte dos bons, criativo e inteligente, acima de tudo bem humorado e engraçado. Tenho uma tese sobre pessoas naturalmente engraçadas: elas são as mais inteligentes; é preciso perspicácia pra encaixar a piada certa no momento certo e isso só gente inteligente consegue. Eu sou péssimo nisso, Clichê não, ele é o centro natural das atenções e mais ainda quando faz alguma graça.
Não são piadas gratuitas, ele não busca ser engraçado a qualquer custo. A bem da verdade, na primeira vez que o vi, achei-o carrancudo, com cara de mal humorado. Bastaram cinco minutos pra ele fazer uma piada qualquer sobre minha camiseta, uma do The Cure – ele estava, veja só a coincidência, com uma do Cramps.
Ele já se apresentou como Clichê. Não ousei perguntar o nome, embora minha cara de interrogação fizesse o trabalho. Mas ele se diverte dizendo só Clichê nas apresentações, até mesmo pra clientes. Ninguém entende, a não ser, claro, quem conhece sua história.
A vida de Clichê é exatamente isso, um clichê brasileiro: não conheceu o pai, a mãe sustentou ele e o irmão costurando pra fora e principalmente pra uma escola de samba. Viviam numa comunidade bem pobre, esgoto a céu aberto durante toda a infância, amigos morrendo pela violência ou pela falta de comida. É negro, claro. A mãe fez os dois filhos estudarem. Se virou como pôde e conseguiu. Ambos se formaram. O irmão mais velho, porém, não teve a sorte que Clichê teve: trabalhava numa lanchonete na Tijuca de dia e à noite, ao voltar da faculdade de direito, foi morto com cinco tiros, nem sem antes tomar um monte de porrada.
Clichê nunca soube quem matou. Nunca houve investigação. Mas a mãe conseguiu testemunhas de que a polícia o confundiu com traficante. Clichê a convenceu de que não haveria Justiça nesse caso. Seu irmão era mais um nessa guerra insana e era outro a engrossar estatística.
Nem essa tragédia tirou o rumo de Clichê. Ele se formou em publicidade, estagiou e trabalhou em várias pequenas agências, até parar na que eu acabei me juntando também, tempos depois. Não é uma baita agência, mas o salário é razoável a ponto dele conseguir tirar a mãe dele da comunidade e alugar um apartamento bacana no Catete. Faz tudo por ela. E segue fazendo graça.
Clichê ficou puto quando recebeu esse apelido. Depois, viu o quão irônico e certeiro era tal alcunha, aplicada por um filho da mãe qualquer de uma das agências por onde passou: “tá chorando aumento? Não me venha com sua vida sofrida clichê, não, que aqui todo mundo tem sofrimento pra curar”, disse um ex-chefe, que passou a chamá-lo assim, pra alfinetar mesmo: Clichê. Ao invés de se abater, lembrou do irmão, que sofreu violência fatal de uma sociedade que não liga pra vida nenhuma, matou a bola no peito e assumiu a desonra como força-motriz. E contava pra todo mundo de onde saíra o apelido: “foi o fulano-de-tal que me chamou assim e é assim que eu vou ser chamado”. O tal fulano, um dos donos da agência, ficou com pecha de preconceituoso, insensível. Até a noiva deu um presta-atenção nele na frente de toda a agência numa dessas festas de final de ano. Na primeira oportunidade, Clichê pulou fora e levou consigo o apelido que é combustível de sua luta diária.
“Otário a gente derruba empurrando pro passado”, ele sempre me diz. Aprendi essa com ele, mas é difícil levar a ferro e fogo. Sou rancoroso. Ele, não – talvez não ser rancoroso também seja uma virtude das pessoas inteligentes, não sei.
Todo ano, no aniversário do irmão, no começo de agosto, Clichê, que hoje namora uma prima minha, comemora. Junta uns amigos que conhecem sua história, vamos todos pra um bar e bebemos à memória do advogado que esse país não permitiu que chegasse a ser. Ele morreu bem perto do aniversário e lá se vão vinte anos, de modo que a deste 2017 é uma efeméride especial. Fomos a bar tradicional na Lapa.
Entre os muitos chopes que tomamos, Clichê fazia brindes ao irmão. Um deles, com classe mas compreensível amargor, disse: “esse é o genocídio do povo preto, e o racismo tá para acabar assim que o último preto da terra a polícia executar”. A rima seguiu-se do tilintar tradicional dos copos.
Mais pra frente, “o sistema é uma maquina e nós somos energia, consumidos pela elite vinte e quatro horas por dia, centro periferia, periferia centro, ônibus lotado, vazio de amor por dentro, espero um momento, quero descer, tô atrasado, pra conhecer a paz de espírito que só quem é livre pode ter, paz que da força pra combater”.
Clichê declamava essas palavras num tom mais alto e ecumênico do que o normal. Não se via ódio no olhar dele, nem lágrimas escorriam. Mas havia certa tristeza, emoção e um tanto de busca por alívio. Eu não conseguia imaginar que entre todas aquelas emoções, Clichê pudesse se mostrar também um “repentista” nato, que inventa versos e rimas de improviso.
“Outro brinde”, eu propunha. “Me identificado com o povo índio e preto, que morre na mata e no gueto, digita na Wikipedia, massacre de Soweto, pra entender qual é o efeito de passar dos trinta pra nós, quando quem era pra proteger veste farda e vira o algoz”, ele clamou.
Nessa hora, um dos três rapazes que estavam na mesa atrás de Clichê bateu o copo na mesa e resmungou alto o suficiente pra que a gente pudesse ouvir: “fala mal da polícia só quem deve pra ela, na hora do terror vai chamar o Batman?”. O clima pesou. Clichê olhou pra trás, virando-se com calma, e respondeu: “Filho de mãe solteira fadado a vender bagulho, sempre o mais feio da festa, nenhum motivo de orgulho, carregando na alma toneladas de entulho, com menos de dez anos eu vi cabeças no embrulho”.
O cara virou pro outros dois amigos: “olha aí, mais um vitimista, uma vítima da sociedade cruel, ó, com celular caro na mão”. E riram sem muito convicção. “Tudo ao meu redor era esgoto a céu aberto, droga, miséria, arma e o futuro incerto, desse lado de cá tudo é cômico”, e levantou o chope, num brinde. O mais alto se levantou, exaltado. Levantamos também, ato contínuo.
“Seres sem face, massa de manobra, guerra de classe, matéria-prima mão-de-obra, pretos sem base, ódio e disposição de sobra, pra se armar contra os seus o apetite dobra”, Clichê continuava, agora também em pé e meio que declamando pra todo o bar, copo na altura da cabeça, como pedindo a atenção de todos. “Vida hostilizada pela localização geográfica, as peças da ROTAM controlam a densidade demográfica, e é preto contra preto, lutam por medo da sorte, irmão que mata irmão suja as mãos com a própria morte”, ele engrenou.
“Pretos, quem são os inimigos, preto contra preto não representa razão, pretos, quem são os inimigos, homens que matam pretos não me representarão, mais uma estrela que deixou de brilhar, não sei se era mais um Silva, mas vivia aqui nesse mesmo lugar, onde sobrenomes registram o histórico da desgraça, que de geração em geração, de família em família passa”: Clichê parecia um político em palanque. Falava com ritmo, emoção, nem olhava pros provocadores, que agora estavam mudos, perplexos como todos no bar. Minha prima até tentou contê-lo, mas ele, sorrindo, seguia declamando versos que rimam – “as historias da maloca tão virando filme, cada um com seu revólver tiro a gente troca, e quem lucra com essa guerra segue sempre firme, assistindo tudo isso comendo pipoca”.
Por uns poucos minutos, recitou mais alguns versos, até que os três provocadores desistiram de levar ao cabo suas intenções e foram embora, sem que ninguém desse bola. Clichê encerrou, sorriu e curvou-se aos poucos aplausos que surgiram. Voltou a sentar e eu, espantado, perguntei: “você é repentista também, cara, arrumando versos assim, de repente?”.
“Quem disse que são de improviso, Tomas, que disse?”, perguntou enigmático, rindo e pedindo mais uma rodada. “Esse é o Thiago Elniño”, completou, mostrando todos os branquíssimos dentes da frente.
Eu confesso que rap nunca foi minha praia. Ouvi Thaíde com certa frequência ainda quando morava em São Paulo e talvez um tanto de Marcelo D2, informação que carrego com um tanto de vergonha. Dos gringos, quase nada. Mas aqueles versos fortes que Clichê declamou, talvez pela situação, talvez pela eloquência proferida, me fizeram querer saber quem seria Thiago Elniño.
Pois bem, fui ao novo disco do rapper de Volta Redonda, chamado “A Rotina Do Pombo” (é o seu segundo, o primeiro foi “Fundamento”, de 2015) e foi como uma explosão de realidade e sutileza. Quer dizer, se tem algo que um rapper não precisa ter ou não se espera dele é sutileza. Elniño, como bem mostram os versos ditos por Clichê no bar, vai direto ao ponto – há uma luta de classes e os pobres, desde sempre, estão perdendo, seja pelas políticas públicas, seja por preconceito, seja por violência do Estado – mas o som carrega essa sutileza, não é pesado, agressivo. Tem até um delicioso dub, em “Não Conforme”, poderosa canção que afirma de maneira angustiante: “tamo aí na missão, tô junto com os irmãos, nós sabemos quem são, o inimigo não dorme”.
Cheio de participações especiais, do Rio, de São Paulo, de Belo Horizonte, o disco mostra que o problema não é de uma cidade específica, é tão nacional como histórico de um país que parece ter como missão perpetuar essas diferenças e concentrar cada vez mais riquezas e oportunidades com os ricos, fazendo com que cidadãos como Clichê, que vencem o preconceito e se estabelecem em nichos que historicamente não se espera deles, sejam raríssimas exceções.
“Pedagoginga” é clara: “pra superação, tanta humilhação, atravessar o oceano pra trampar na sua plantação, café, algodão, cana, escravidão, alforriaram o nosso corpo mas deixaram as mente na prisão! Não! Abre logo a porra do cofre, não tô falando de dinheiro eu falo de conhecimento, eu não quero mais estudar na sua escola, que não conta a minha história, (que) na verdade me mata por dentro”.
“Eu não quero mais estudar na sua escola, que não conta a minha história, (que) na verdade me mata por dentro”… Esses versos são tão fortes e me abalam de tal maneira, que eu precisava contar a história de Clichê.
Todas as letras de “A Rotina Do Pombo”, lançado em fevereiro de 2017 e tão atuais como válidas historicamente, merecem destaque e foi isso que meu amigo fez pra todo bar ouvir, mesmo que, como eu, ninguém fizesse ideia de onde elas vinham. Quando você ouvir, acompanhe com as letras (baixe o disco clicando aqui, que as letras vêm junto)
Clichê sabe bem quem é o inimigo. Talvez ele tenha a clareza que ele “não dorme” porque ele é qualquer um, é a sociedade, é a história, é o país, é a própria pessoa. Está em todo lugar. Lutar é preciso, a todo momento. As armas que Clichê escolheu foram a inteligência, a cultura e o bom humor. Ele venceu, por ele e pelo irmão dele.
Thiago Elniño dá voz a tantos outros que seguem na batalha.
Ouça na íntegra: