“Esconjuro azul claro / duma força sem fatos / ultrapassa os corpos e / memoriza os apóstolos / do pecado. ignoro / o procedimento calmo / e mudo / da culpa / por falta de outro nome / que filtrou-me as palavras / ofertando com murmúrios / grunhidos desavisados/ voz que quebra em delírio / incinera-me a fala / e inventário espúrio / é como me escreve”.
Fiquei com essa música do novo EP do Cãos, “Escorregadio”, na cabeça. O vocal gutural, o instrumental punk acelerado, pouco maios de dois minutos de uma nostradâmica canção. A premonição do que viveríamos dali a algum tempo, pouco tempo, dois meses, três meses.
O mundo atravessa o pior dos seus mundos. A pandemia, corpos sendo encaixotados ao montes, sem despedidas, sem velório, lágrimas à distância. Estupefação. Indignação.
Os governos fazem o que podem, dentro do que conhecem. A sociedade conhece quase nada daquele ser invisível que nos ataca e nos aprisiona. Mas aqui no nosso cantinho, encurralados, temos uma crise pior: a de consciência social e a de liderança.
O presidente, ah, esse energúmeno que as pessoas elegeram em 2018, na base do ódio contra um pensamento, e não como uma alternativa de pensamento, ele é o nosso “mastigador de crises”, aquele que quebra a casca e, sem olhar o que está dentro, engole e regurgita para os outros consumirem. Outros como ele, violentos, febris, indignos.
“Confusão de corpos / mastigador de crises / viajante, espectro / apóstolo escuro”: não há definição melhor pra Bolsonaro, o ignóbil. Talvez o Cãos, grupo curitibano, não tenha pensando nele, nem em crises quaisquer quando escreveu tais versos. O EPzinho é de 12 de janeiro de 2020. Mas tais versos são um bom resumo do que é a estupidez que nos governa e nos leva ao abatedouro, com outros como ele a aplaudir.
Preferem mortos a desempregados. Mentira. Preferem mortos e desempregados, tanto faz, contanto que não sejam eles os desempregados, contanto que os mortos sejam rostos desconhecidos.
Só que não serão. O vírus vai se aproximando de quem quer que seja que o convide a se aproximar, sem olhar o bolso ou a pele, embora são os sem nada no bolso, que “coincidentemente” têm uma pele negra (ou mais negra), os que serão, ao final, mais afetados e devastados, seja em vidas, seja em empregos.
A confusão de corpos se faz com o empilhamento ou com a escolha de equipes médicas sobre quem será atendido e poderá viver, diante do caos que o sistema precário de saúde é, unindo-se o público e o privado, não importa.
Ficar em casa é pra evitar ao máximo que isso aconteça. Porque as pessoas vão precisar de leitos não só pra essa doença. Há outras tantas doenças em curso. As usuais, como as cardíacas, diabetes, acidentes modernos gerais, como as do nosso subdesenvolvimento, como zika, dengue, malária e afins. Morre gente, mas não precisamos empilhar corpos por estupidez.
Esses espectro que viaja por padarias, comércios de gente pobre, lutando pelo pão, gente que infelizmente não pode de fato ficar em casa… esse espectro quer aplausos, quer adorações de todo o tipo e não se importa de quantos adoradores vão morrer. É o “apóstolo escuro”, sendo o “escuro” a sombra, o obscurantismo que ele propaga, contra a ciência, contra a lógica e o avanço.
O Mastigador de Crises vai nos engolir. Antes, alimenta com seu vômito os que dirigem carros modernos pelas ruas das cidades brasileiras buzinando e pedindo pela reabertura do comércio. Esses não são mais do que carrascos e porteiros de cemitério – e que me desculpem os nobre e trabalhadores porteiros de fato de cemitérios.
A ignorância se prolifera mais do que o vírus. E mata mais.
“Esse mundo anda escorregadio / e você tem pressa e atraso / cantos selvagens, gritos de guerra / não mudam o silêncio da casa / o nó que os pés fazem, a cabeça baixa / a humanidade da tua herança / disfarça de afeto e convence / esse mundo ainda tem jeito / mas você tem pressa e atraso”.
A música que fecha o EP, “Pressa E Atraso”, conclui o perfil sociopata dessa gente. O egoísmo. “Cantos selvagens, gritos de guerra”, quando precisamos de silêncio e meditação.
A arrogância e a ingenuidade daqueles que rompem o isolamento, mesmo não precisando, violentam o que precisam ir às ruas, de profissionais da saúde a profissionais de segurança, de profissionais do transporte e logística a agricultores, de jornalistas a profissionais de limpeza. Os serviços essenciais não podem ficar à mercê da estupidez de quem quer um “jantarzinho” na casa dos amigos, uma “cervejinha” na casa dos camaradas. Festa hoje é só pela sobrevivência.
Com o Mastigador de Crises, o Apóstolo Escuro, do obscurantismo, só nos resta torcer pra que seu vírus da estupidez, que contaminou tantos idiotas, mate o menos possível quem sabe viver em sociedade.