ÁCIDAS: O QUE SALVA O DIA

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Acordar azedo, com vontade de socar o mundo, é uma experiência com a qual me deparo com certa frequência nos últimos tempos. Estou mergulhado na insana banheira ácida que corrói minha vontade de encarar a sociedade. Ficar sozinho seria o remédio certo, caso não tivesse que pagar os boletos e, pra isso, me misturar aos malucos que dominam essa desgraceira que chamamos de convívio social.

Já tentei me matar e a terapia ajudou a identificar o que me incomodava e sinto que sou hoje um privilegiado no sentido de conseguir conviver numa boa com meus constantes fantasmas. Uso drogas aqui e acolá, mas todo mundo que viveu esse drama sabe que não é a saída, senão um paliativo. O que fazer? Encher a cara com os amigos? Transar com a primeira (e a segunda e a terceira e quarta) pessoa que aparecer pela frente? Se fechar? Se lamentar? Chorar? Esquecer do mundo?

Cada um procura sua própria resposta. Eu não sei as minhas ainda. Mas considero uma ou outra saída revigorante. Uma: trabalhar dentro dos limites da sanidade, o suficiente pra pagar os tais boletos. Outra: fazer coisas, quaisquer coisas, sozinho, com amigos, com desconhecidos, vai de cada um, o que vale é manter a cabeça ativa. E por fim: música, música e música. Serve pra mim, não sei se serve pra você.

Não tô querendo parecer tão óbvio assim, embora eu entenda que estou sendo. Ok. Mas é que numa das minhas viagens solitárias pelos cafundós da mente, comecei a tirar a poeira da minha lista de pendências de novidades pra ouvir e me deparei com esse “Act Surprised”, disco que o Sebadoh lançou em maio de 2019.

Os caras não lançavam nada há seis anos e a bem da verdade eu nem ligava muito. Nunca fui assim tão entusiasta da banda. Mas pode ser o momento. Pode ser o ácido. Pode ser a solidão. Não sei. Algo me pegou nesse disco. Algo é igual aos títulos das músicas. Não prestei atenção às letras, só aos títulos. E todos eles fizeram sentido pra mim (eu escrevo essas bobagens me segurando pra não rir, mas a verdade é inescapável, oras).

“Phantom” e os meus fantasmas. “Celebrate The Void” faz muito sentido pra quem tem que encarar o vazio de certas fases da vida. “Medicate” não preciso nem dizer, é só molha pra minha farmácia. “Vacation” é um tanto o que eu mais preciso não só do trabalho, mas de tudo e de todos. “Fool”, oh, é um espelho (e a musiquinha mais legal, volto nela daqui a pouco). “Battery” é a minha vazia. “Reykyavic”… alguém me manda uma passagem pra lá?

Pra além dos títulos: “Phantom” estourou nos meus ouvidos como se fosse uma espoleta interminável. Aumentei o volume. Comecei a pular. Eram, fiquei sabendo de imediato, ao toque do interfone, com a voz raivosa do vizinho de baixo reclamando do barulho, onze da noite. Uma noite quente de inverno-quase-primavera, daqueles veranicos que proíbem qualquer ser normal de simplesmente dormir. “Celebrate The Void” é uma baladinha pra fazer air intrumento qualquer e ignorar solenemente o vizinho. A campainha, porém, tocou. Era a vizinha, esposa do cidadão reclamão. Linda. Linda (o nome dela é Linda, em homenagem à esposa de Paul). Ela pedia encarecidamente que eu baixasse o volume. Fiz chantagem: baixo, mas você dança uma comigo.

Ela riu. Riu desconfiada. Quando começou a bateria acelerada de “Follow The Breath”, viu que eu falava sério, saltitando sem camisa como um maluco. Ela colocou as mãos na boca pra não gargalhar. Olhou pros lados, fechou a porta e entrou. Dançamos, pulamos. Ela parecia liberta. Eu também. A cumplicidade era de duas pessoas presas em suas vidinhas rotineiras e impróprias pros espíritos livres residentes ali. A minha sorte é que “Medicate” segue a mesma toada e não paramos de pular e rir e agitar os braços como se quiséssemos alcançar a tal liberdade bem próximo do nosso alcance, mas tão-longe-tão-perto.

O disco transcorreu com certa independência do modo como dançávamos: “See-Saw”, “Vacation” (raivosa e requebrante ao mesmo tempo), “Stunned” (que merecia uns berros além dos pulos) e, finalmente, “Fool”, com seu balanço pop irresistível. Estávamos há mais de quinze minutos pulando e dançando. Já pingávamos de suor. Ao fim de “Fool”, ela se jogou no chão cansada, suspirou alto e se deu conta que precisava ir embora. Baixei o volume, como prometido. Dei um “boa noite” à distância que mais pareceu um “muito obrigado”. Ela correspondeu com um aceno entusiasmado.

Aquele dia que parecia perdido foi salvo por um disco e por uma nova amiga. Eu e Linda nos falamos nos dias que se seguiram como se conhecêssemos de criança. É só o que precisamos, vez por outra: um disco e um amigo pra salvar o dia. Naquele dia desesperador, essa tarefa coube a um disco que eu nunca havia ouvido e que passou a ser um grande companheiro a partir dali (e não sei até quando), e a uma vizinha-desconhecida que se permitiu ser alegrada e impregnada por esse extravasamento.

Escolha o que salva o seu dia. Nem tudo está perdido.

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