A casa se desmontava. Lá pelas tantas, mesmo após passar pano e aspirar aquele pó de serra, ainda flutuavam no ar partículas minúsculas que viriam a se encaminhar aos nossos pulmões. De madeira o piso, os móveis da sala e da cozinha. No quarto, a cama precisava de reforço constante. Na grande árvore em frente, as lascas de soltavam como papel. Vários profissionais foram chamados pra resolver a situação e nada deu jeito: os cupins estavam desgraçando o nosso passado, o nosso presente, o nosso patrimônio.
Cupins são importantes na cadeia alimentar, têm importante papel ecológico, funcionando como consumidores primários e decompositores. São bichinhos que auxiliam na preparação do solo, na distribuição de nutrientes na terra e na irritação de quem não cuida previamente dos móveis e estruturas da casa – nesse caso, minha família e eu mesmo.
Gastamos muito dinheiro pra deixar todos os móveis e principalmente a casa um lugar não acolhedor pra esses seres. Deu um baita trabalho, uma baita dor de cabeça e custou um baita dinheiro. Porque cupins meio que se assentam no ambiente como uma praga que só vai ser descoberta quando o estrago já está no processo catastrófico. É como muita coisa na vida.
É como o fascismo que está corroendo a nossa sociedade e democracia, graças a um candidato que prega a ignorância e a estupidez e quem sabe o auto-golpe – o uso da democracia pra acabar com ela.
Não, cupins não acabam com o próprio meio, a natureza é esperta o suficiente pra evitar que o instintivo guia de suas espécies faça isso. Com exceção de uma única: a humana. Somos capazes e, diria, diletos em auto-destruição. Não só a democracia, mas da própria espécie mesmo. Incapazes de gerir uma sociedade a contento, buscamos organizar a lógica em ideologias diversas que invariavelmente vão desagradar uma parcela qualquer de pessoas. Nunca há consenso e é justamente o equilíbrio desse entendimento de que não há consenso e a busca do diálogo pra resolver o dissenso é que nos faz uma sociedade superior.
Argumentar, buscar o diferente, discutir, debater são alguns verbos que nos fazem diferentes de cupins, por exemplo, em termos de sociedade. O cupim reprodutor não pode simplesmente deixar de cumprir sua função pra ser o cupim operário ou um soldado. Ele é o que é. Não tem debate, não tem senado, não tem eleição, não tem discordância. Nós podemos fazer isso e ainda é o melhor jeito de apaziguarmos as diferenças na busca de viver na paz possível.
Se a gente não pode acabar com fascistas usando veneno (como eles gostariam de fazer com quem discorda deles) ou esmagá-los com um chinelo, temos que criar mecanismos pra que eles não surjam – educação e leis são dois desses mecanismos. O mesmo vale pra todas as outras coisas do mundo. No futebol, temos que conviver em paz com os rivais, aturando a brincadeira nas derrotas e sabendo parar a zoação nas vitórias. Nas artes, temos que aguentar o que é “feio” (a partir da nossa subjetividade) pra poder ter acesso ao que nos é “belo”.
Só que obviamente nem tudo são flores. Os cupins da sociedade estão carcomendo a lógica de facilitação da convivência. Pra quê facilitar se podemos complicar?
No novo século, o acesso e a divulgação da música deveriam ser amplos, com os meios “democratizados”. Deveriam, mas ocorre justamente o oposto. Como cupins, a sanha capitalista das grandes corporações da indústria vão retorcendo os meandros na nossa mobília de acesso, de modo que ficamos só com o pó de serra que eles deixam. A gente ouve o que eles querem que a gente ouça. Seja o sertanejo universitário; seja o funk proibidão, que apesar de emergir das camadas periféricas das grandes cidades, utiliza dos algorítimos das grandes corporações pra ampliar seu espectro e literalmente ganhar dinheiro, já ninguém quer mudar nada socialmente; seja o rock carcomido pela idade; seja a música torta, que vive nos submundos onanisticamente falando consigo mesma, pros seus e entre os seus; não importa: estamos cada vez mais preguiçosos, ou tanto quanto sempre fomos, recebemos o que querem que a gente receba.
Tentam me convencer que o rap, o hip hop, a música eletrônica, tudo o que chega da gringolândia vende como “inovador” seja de fato inovador e não uma retro-alimentação do que já existe, mas com outra roupagem e com um discurso mais atual. Falar com minorias e com pedaços periféricos da sociedade é ótimo, afinal ninguém quer só gente branca fazendo música pra gente branca, o que mais se quer é ampliar o espectro.
Só que mesmo assim, só se ouve o que eles querem que a gente ouça. Os “gênios” são quem eles querem que a gente ache que são gênios. Divas pop viraram centro magnético de um certo grau de “genialidade”. Rappers e produtores negros, que falam sobre seus próprios problemas e ganham mares de dinheiro com isso, tornam-se única fonte de “inovação”. É isso ou revisionismo. Em que casta você está?
Eu sou um privilegiado, como já contei em outro artigo. A música feita com guitarras e certa fúria adolescente vã sempre me atraiu. Adoro o revisionismo que sempre se fez do passado, reacendendo sons que foram se enchendo de teias de aranha. Não busco “originalidade”, sabendo que isso é algo bem mais difícil do que expulsar cupins de uma casa infestada.
Não vou na onda das publicações superlativas estrangeiras que, na incapacidade de bombar suas “novas descobertas”, inflam os artistas que mais pagam jabá.
Talvez, o que se deva fazer é chegar ao meio-termo e discutir, debater (muitas vezes consigo mesmo) e questionar o que nos vendem como “genial”. A juventude hoje está esquecendo do rock, porque o rock envelheceu, podre por dentro. A juventude está nos sertanejos, nos raps importados, nos proibidões, porque é o que querem que achemos que é inovador e contestador, mesmo sendo o mais-do-mesmo embalado com discurso ou com fúria adolescente. Querem que acreditemos nisso ou naquilo. Podemos, então, tentar acreditar no que quisermos acreditar. Ou no que quisermos gostar, sem grilos.
É o meu caso quando ouvi dois discos bem próximos um do outro, recentemente. Ambos feito por gente branca pra gente branca velha (eu creio), com quase a totalidade de revisionismo em sua fórmula, e que tenta sair um tanto da lógica vendida como “inovador” como se ser “inovador” fosse a única característica possível.
O primeiro é o “V”, do Wooden Shjips, uma das bandas do maluco barbado Ripley Johnson. O disco foi lançado em janeiro e até hoje não sai da minha cabeça.
São sete músicas que parecem ter sido criadas em 1970, com uns aditivos na cabeça. Revisionismo puro, um olhar pro passado, não tem nada, necas de originalidade. Porque não precisa. Tem um fundo político (“V” não é só o quinto disco da banda, é também “v” da vitória contra a tirania, contra os fascistas que querem acabar com liberdades individuais, e no caso Johnson está apontando o dedo pra Donald Trump, a versão esbranquiçada e tão amalucada quanto o candidato fascista nosso).
O curioso de “V” é que é mais uma prova de que o Wooden Shjips não faz música ruim, não faz disco ruim, porque não faz música pra bombar na Internet, não fita a juventude com discursos fáceis e vazios (não seria a juventude que deveria virar os olhos pra além do que lhe oferecem?).
O senhor Johnson faz as cabeças com cabelos brancos, como a dele mesmo. Um tiozão doidão, que vive um tanto à margem dessa maluquice mercadológica, vivendo de shows aqui e ali. Um hippie moderno, mas um móvel bem cuidado contra os cupins da pretensa modernidade de mercado.
O outro é o novo do Beak>, trio que tem nas suas fileiras Geoff Barrow (do Portshead), Billy Fuller (baixista do Robert Plant e do Massive Attack) e Will Young. É o terceiro disco dos caras, o mais acessível, misturando krautrock, post-rock, folk e viagens não declaradas.
Creio que “>>>” (o nome do disco é esse) é o trabalho mais arrebatador do trio. Mas também é revisionismo puro, um olhar reverencial ao passado, sabendo mastigar suas referências. Como o Wooden Shjips, o Beak> consegue se manter longe dos cupins da desinformação e da preguiça.
Ouça “Brean Down”, “Harvester”, “Allé Sauvage” e “Abbots Leigh” e entenda porque a música não precisa ser exatamente um alvo pra se cravar uma falsa modernidade, mas é um estabelecimento de informações recicladas, reajustadas e retrabalhadas. E que, assim, pode ser tão rica e potente quanto qualquer discurso programático e programado pra catapultar fúrias adolescentes.
Nós podemos chegar a um meio termo nesse dilema? Precisamos de música furiosa pra fazer jovens saírem da mesmice do sistema, mas ao mesmo tempo precisamos que eles pensem por conta própria. Não vai ser consumindo a música carcomida pelos cupins do jabá programado do mercado de consumo (das suas revistas, sites e “formadores de conteúdo”), nem tampouco a música podre e envelhecida feita pelos mesmos tiozões branquelos de sempre. O jovem precisa procurar algo fora do usual, o que vai lhe dar ganas e não só grana pros bolsos de sempre.