Eu tenho um verdadeiro fascínio por vozes femininas. Elas cabem em qualquer tipo de som, se bobear até em baboseiras metidas a másculas heavymetaleiras. Daí que eu só busco há tempos discos que possam me presentear com vozes femininas das mais variadas. Aqui, tropecei em quatro. Algumas conhecidas, outras nem tanto, mas diferentes pra mostrar meu ponto.
Ah, mas e os homens? Estão por aí cantando também, fazendo sucesso, se divertindo e deixa eles com eles. E elas comigo. Suas vozes comigo. Sua doçura, seu balanço, sua agressividade, sua arte, seu talento, suas imprecisões, seus lugares-comuns, suas tentativas de originalidade, o que for.
Começo com a mais conhecida, Angel Olsen, nome de anjo, voz impositiva, em estilos amplos, normalmente indie-blueseira. No seu novo disco, “Big Time” – não perca a conta, o sexto da moça, que sai dia 3 de junho de 2022, via Jagjaguwar – ela começa com essa maravilhosamente imponente “All The Good Times”, que é boa o suficiente pra valer o disco, mesmo se todas as as outras nove faixas foram ridiculamente constrangedoras.
É blues, é orquestra, é música de amor, é uma mistura que faz sua voz meio embriagada se encaixar em cada verso, como se cada verso e letra e palavra dependesse disso pra existir.
“‘Big Time’ é um álbum sobre o poder expansivo do novo amor, mas esse brilho e otimismo são temperados por um sentimento profundo e em camadas de perda”, explica o texto lá no Bandcamp. “Durante o processo de Olsen de aceitar sua estranheza e confrontar os traumas que a impediam de se aceitar completamente, ela sentiu que era hora de se assumir pra seus pais, um obstáculo que ela vinha evitando há algum tempo. ‘Finalmente, na idade madura de 34 anos, eu estava livre pra ser eu mesma’, disse ela. Três dias depois, seu pai morreu e logo depois que sua mãe faleceu. Os fragmentos dessa dor – o encurtamento de sua chance de finalmente ser vista mais plenamente por seus pais – estão espalhados por todo o álbum”.
Se isso não é triste e ao mesmo poderoso, não sei o que é. Angel tem, pra além da voz, um rosto de atriz de Hollywood dos anos 1930. Talvez ela tenha nascido na época errada mesmo. Como diz a Elis Regina, sampleada nesse trabalho excepcional (obrigado, meu editor!), “não, ninguém faz nada certo em hora errada… a hora tá errada!”. Sim, a senhorita Olsen não merece a febre dos trinta segundos em danças ridículas no TikTok, quando faz poderosíssimos lamentos como “All The Good Times” – e olhe que nem sou um fã enraizado da moça, não me empolguei tanto com o “My Woman”, de 2016, pra se ter uma ideia.
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A segunda é uma voz que a revista Clash definiu como quando o “folk encontra o jazz em um enquadramento pop”, e a “música é dominada por seu lindo vocal e as cordas exuberantes que permanecem no fundo”: eis Carmody e seu primeiro disco, “Imperfect Constellations” (lançamento dia 10 de junho de 2022).
Eu começo com “Replace”, uma música que já tem certa estrada. Como ela mesma conta, “a música é sobre o caos do luto e a percepção de que você não pode recriar alguém depois que ele desapareceu. Ela explora as múltiplas formas que o luto pode assumir – questionando relacionamentos, explorando a espiritualidade, abuso de substâncias, depressão e um desejo de crescer à medida que você é forçado a se tornar alguém que não reconhece mais”.
Mais uma vez, é poderoso, um adjetivo que não pode ser exatamente utilizado pra voz da moça, que está mais pra suave, como Sade se encontrando com Björk, mas sem forçar muito a barra.
Foi com sua avó que buscou inspiração pra “Hurricane”, cujo título parece apropriado pra alguém que não entende muito as incongruências naturais das pessoas, mas quer entender: “minha avó uma vez me disse que ela não sonha, e que se ela sonha, não é em cores. Eu fiquei tipo ‘uau’, essa linha tem que entrar em uma música. Nós temos um relacionamento estranho, porque ela é uma mulher difícil, mas muito adorável. Ela é muito rude, ela é muito grosseira, ela tem muito amor, mas ela não consegue sentir isso com frequência”.
E, enquanto o violão é dedilhado por trás e as batidas leves e um tanto padronizadas por um estilo de “elegância” um tanto datado soam, Carmody não parece se preocupar muito com o que é ou não “original” aos olhos dos críticos. É o que a voz dela parece pedir e, como que numa redenção, a elegância aparece sem parece uma cena feita pra esse fim. Carmody soa como ela deveria ser e é.
Aqui, vale um pouco dela lá atrás, em 2016, ainda tateando uma carreira, mostrando certa versatilidade, em comparação ao seu primeiro disco, numa sessão acústica – vale buscar seus EPs anteriores.
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A terceira segue um pouco essa linha, mas seremos ácidos: ela é mais estranha, mais ousada e tem quase as mesmas raízes musicais. Naima Bock é uma quase-brasileira. Ela nasceu simplesmente em Glastonbury, na Inglaterra, mas viveu boa parte da sua infância no Brasil, graças ao pai, casado com uma grega. Segundo ela mesma faz questão de deixar claro, “essa herança combina com atividades mais recentes na música de Naima; desde os padrões brasileiros que a família ouvia dirigindo pra praia, até as tradições folclóricas europeias que ela aproveitou sozinha e as atividades que a interessam hoje – estudos em arqueologia, trabalho como jardineira e caminhadas pelas grandes trilhas do mundo – a música de Naima vem da família, da terra e da transmissão da música através das gerações”.
Ela foi exposta a uma “gama diversificada de música desde tenra idade”, mas a lista se forma com Baden Powell, Chico Buarque, Geraldo Vandré e Cartola, que tocavam constantemente em sua casa e em longas viagens pelo Brasil.
Logo ela estava de volta à Inglaterra, onde passou a adolescência e agora o início de sua vida adulta, como uma voz que carrega uma tanto do DNA desses gênios e que faz, de fato, sua música não ter exatamente a mesma frieza que se encontra em pares ingleses, a ponto de experimentar uma versão de “Berimbau”, de Vinícius De Moraes.
Apesar do português macarrônico, o que importa ali é sua voz astuta, um exercício pro primeiro disco da carreira, “Giant Palm”, que sai dia 1º de julho de 2022, pelas mãos da mesma Sub Pop que deu ao mundo a insanidade dos inquietos grunges.
A faixa-título, que faz sua voz parecer mais grave e sombria, foi escrita com Joel Burton, que também produziu todo o álbum, e assumiu os toques de estranheza quase infantil à música, com a ajuda do pai da artista, Victor Bock. A canção “foi a que mais refletiu nossa colaboração como músicos e a inocência e a liberdade que caracterizaram a criação da obra”.
Naima, inclusive, assumiu o nome do pai. Antes, quando fazia parte do Goat Girl (exatamente a banda pós-punk), ela assinava como Naima Jelly e tocava baixo e fazia vocais de apoio.
Enquanto o disco “Giant Palm” parece sombrio, há essa capa maravilhosamente colorida, uma vitral/azulejo no mínimo reconfortante pela ideia de liberdade.
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E eis que chegamos nas Horsegirl. Três amigas, Penelope Lowenstein (guitarra, vocal), Nora Cheng (guitarra, vocal) e Gigi Reece (bateria), que som como as Breeders, mas também como os Pastels e o Yo La Tengo e, segundo orientação delas mesmas, como o Belle & Sebastian. E, de fato, é um som ardentemente indie, quase naqueles engatinhantes anos 1980 quando o que foi conhecido como “indie” estava nascendo.
Mas o vocal de Cheng e Lowenstein possui uma dose de melancolia que aproxima às três vocalistas anteriores, apesar do estilo, das músicas e da motivação tão diferente. O trio aqui não tenta soar adulto ou com pretensões questionadoras-filosóficas-maduras-ou-algo-que-o-valha. “World Of Pots And Pans” tem até um vídeo bacaninha:
O primeiro disco, que tem a faixa acima, se chama “Versions Of Modern Performance”, o que soa irônico e ao mesmo tempo inocente. A obra ganha o mundo apenas em 3 de junho de 2022, pela famosa Matador Records.
Se todas essas vozes não te convenceram a aderir à grande busca na qual me engajei, de ouvir todas as vozes femininas legais da música possível, ou você não merce a música ou você não merece vozes extraordinárias figurando na sua vida.
Elas não serão as únicas. Há mais, por sorte, há muito mais por aí.