Eu posso estar errado – e normalmente estou. Mas poucas coisas são mais legais do que ser surpreendido por uma obra de arte. Da mais clássica, daquelas dos grandes museus, indo àquelas cabeçonas, de galerias modernetes, à mais pueril, daquelas de rádios FM (se é que alguém ainda ouve música em rádios FM) que serão esquecidas em minutos. Confesso: essas são as minhas preferidas, as que corro o risco de esquecer depois, aquelas que valem pro tão imediato presente. Nem ao passado, nem ao futuro, só ao presente imediato, de segundos, aquele do “espirrou, já era”.
A vida é doida e sem um pingo de dó de gente sem eira nem beira como eu. Não há trégua. É trabalho o tempo todo e esse prazer de descobrir coisas andam me faltando. Até que ouvi, por sorte, “No Past No Future”, do Spacemoth, disco lançado em julho deste resiliente 2022.
Uma doce pintura sonora. Pop, eletrônico, indie, sei lá o quê – só pra dizer que há pouco de inventivo aqui, mas não importa. É um disco tão delicioso quanto, pode-se dizer, beijar uma boca aleatória em um lugar aleatório. Uma boca que nunca mais será beijada. Só naquele momento. Uma pele que nunca mais será tocada. Um rosto que nunca mais será visto. Um cheiro que nunca mais será sentido.
E é tão alucinante quanto uma droga sintética qualquer, que faz efeito por quinze minutos (pra se querer mais e… cuidado!) ou por horas a fio numa madrugada perdida. Sonhos e sensações irrepetíveis, viagens de uma única passagem. Tão inesquecível quanto impossível de se experimentar novamente.
E a Spacemoth tenta. Ela é Maryam Qudus. É de São Francisco, nos Esteites. Este é seu disco de estreia. Nome estranho, Qudus, pop nem tanto, mas que lembra muita coisa, de Devo a Stereolab, de Beach House e ao indie mais boboca e fajuto (desculpe-me pela redundância). É um disco pro agora, que se esquece e que nem merece a lembrança. Músicas que não se guardam, mas as sensações sim. Eu escutei de madrugada, sozinho, com frio, tomando umas biritas. Perigoso: de repente estava sem camisa chacoalhando o corpo na janela de casa derrubando gotas que saiam do copo cada vez menos cheio. Mas a música de Qudus não tem bula nem regra alguma. É ouvir aí do seu jeito e nem garanto que vá funcionar como funcionou comigo.
Independente disso, antes de você esquecer e passar pro próximo melhor disco do ano (discos que essa gente ouve uma única vez também, mas como precisa escolher alguns, vai tirando da cartola e rotulando), parece-me inegável a satisfação que “No Past No Future” pode nos dar – te dar; porque a mim já deu.
Curiosamente, não escrevi essas linhas exatamente enquanto escutava, de modo que ao contrário do que defendo aqui, o disco tem, sim, passado (minhas primeiras memórias imediatas) e tem, sim, futuro (voltei a ouvir repetidas vezes). E como o presente é algo ao mesmo tempo inescapável e fugaz, temos na obra deliciosa de Qudus um convite à perpetuação das sensações. Quero mantê-las pra sempre, mas o ato de tentar fazer dessas sensações algo perpétuo é que as destroem, pois não há tempo pra memória ou pra mastigá-las.
Ou, por outra, deixe pra lá: “No Past No Future” não tem nada de tão complicado assim. Ao contrário, é simples, como em “Round In Loops”. Complicado sou eu. Como a mesma Qudus diz em “Noise Of Every Life”, não posso desperdiçar meus dias com medo. Nem com complicações. Por isso, obras como essa são tão bem-vindas. Só não me pergunte se continuo achando tudo isso amanhã.