Emmy The Great é Emma-Lee Moss, nascida em Hong Kong, tem nacionalidade inglesa e desde 2014 mora nos Esteites.
Como escreveu Emily Mackay, no Guardian, “há pathos e poder em não pertencer a um único lugar”.
“April / 月 音” é seu quarto disco, lançado em 9 de outubro de 2020, pelas mãos da Bella Union, sempre atenta. Nele, se a pessoa não se emociona com “Writer” ou “Your Hallucinations”, precisa correr pra uma terapia.
É folk, é pop, é (quase) dreampop, é um som pra sonhadores e eu sou um sonhador. Mas é também um ato político.
“Após a eleição de Trump”, segue Mackay, “suas raízes a chamaram, e seu quarto álbum foi escrito entre Nova York e Hong Kong, dois mundos passando por grandes mudanças. ‘Você está procurando por linhas retas, nestes dias liminares?’, pergunta a alegre e chiclete ‘Dandelions / Liminal’, protesto americano visto pelas lentes do budismo chinês. Em ‘Chang-E’, uma onda cósmica de cordas com influência asiática e mares prateados de percussão, Moss explora as conexões sino-americanas através do mito da bela rainha que roubou o elixir da juventude e fugiu pra lua com um coelho branco (em 1969, Buzz Aldrin prometeu ‘ficar de olho na coelhinha’)”.
Sim, Moss canta em inglês e canta em chinês. E tem referências.
“Minha história começa com a lua. Em setembro de 2017, viajei pra Hong Kong de Nova York, onde morei por três anos, pro festival do meio do outono (no Hemisfério Norte). Eu estava planejando visitar meus pais e tirar um tempo pra escrever meu quarto álbum. Cheguei a tempo pra lua cheia – a lua de Chang-E – em uma época do ano em que o calor aumenta e a cidade parece viva e cheia de possibilidades”, Moss escreveu.
“Naquela primavera, visitei a China e, acidentalmente, tornei-me um tanto fluente em cantonês, embora o objetivo fosse falar mandarim. Eu estava lá pra uma residência musical e esperava sentir um clique instantâneo. Em vez disso, percebi que Hong Kong tinha uma identidade bastante distinta da (China) continental e, com minha língua materna reintegrada, estava começando a aceitar que essa identidade era parte minha. Isso foi difícil – eu nasci em Hong Kong, mas nunca me senti totalmente apropriada”.
“Sob a orientação da lua, eu caminhei pela cidade – seus becos iluminados por neon, suas escadas rolantes e trilhas de montanha. Por um breve e precioso momento, entrei em sincronia com Hong Kong. Senti seu legado complexo e seu futuro complicado. Senti a tristeza, viva no zumbido do neon e nas gotas dos aparelhos de ar condicionado, de uma cidade presa entre dois destinos. Passaram-se vinte anos desde a transferência e o início de ‘Um país, dois sistemas'”.
Hong Kong é uma ex-colônia britânica. Em 30 de junho de 1997, voltou a ser da China, em regime especial, o que vem causando constantes conflitos diplomáticos, inclusive com intervenções dos governos dos Estados Unidos, como ferramenta de negociação comercial com Pequim. É um território autônomo da China, mas o tal “um país, dois sistemas” tem sido questionado por Hong Kong – e pelas ruas.
Quando Emmy, agora já “A Grande”, se redescobre natural da região, assume toda essa turbulência, algo que normalmente o Ocidente dá de ombros – mesmo Hong Kong sendo um dos lugares mais ricos e prósperos do mundo.
Emmy se conecta com a natureza, a sua verdadeira droga viciante. Em abril, o ar primaveril toma conta da região, que é cortada pelo Trópico de Câncer, como Cuba e o México, pra se ter uma ideia. Isso diz um bocado das cores e clima do álbum.
Contudo diz mais sobre a própria Emmy. Alguém se descobrir e se assumir é um ato político de se orgulhar. Você é o que você é e o que você quer ser. Ninguém pode te tirar isso.
É como uma flor que desabrocha na primavera, é como esse disco, que é o abril de Emmy.
De Hong Kong pras Filipinas. Duas horas e pouco de voo até Manila. Da capital, mais uma hora e quinze de voo até Iloilo, onde nasceu Beatrice Laus, a Beabadoobee, conhecida por abrir shows do The 1975, até que lançou em 16 de outubro de 2020 (pela Dirty Hit) “Fake It Flowers”, um indiepop adolescente e praticamente inofensivo.
Ela mora na Inglaterra, tem apenas vinte anos (sim, nasceu neste século) e é fã de Karen O, do Yeah yeah Yeahs, e por aí você pode olhar pro discurso de Kamala Harris, a primeira mulher (e preta) eleita vice-presidente dos Estados Unidos, imaginando uma criança ou adolescente a vendo ali e pensando que, sim, apesar de todo o machismo e dificuldade, é possível.
Karen O nasceu em Busan, na Coreia do Sul. Ela mesma uma “estrangeira” aos olhares dos estúpidos apoiadores de Donald Trump. O que pensar, então, de Laus, a Beabadoobee, criança filipina, num país já tomado pelas ideias do Brexit, que vieram a se confirmar depois, baseados em nada mais do que notícias falsas (as fake news) sobre estrangeiros “roubando” empregos dos pobres ingleses, durante a crise humanitária que explodiu na Síria e arredores?
“Fake It Flowers” é seu disco, é seu grito de espaço e você vê as fotos dela sorrindo, pós-adolescente feliz, uma mulher que empunha a guitarra pra emular o grunge dos anos 1990 ou o emocore dos 2000 como uma forma de expressão sua e de mais ninguém – “Charlie Brown” é sua grande pancada.
A Pitchfork, que sei lá se alguém ainda presta atenção, não foi muito simpática ao analisar o disco, mas coloca um jeito meio inocente demais pra analisar: “Bea Kristi (Laus é conhecida assim) escreve canções pros filmes dos seus sonhos. Embora sua música ganhasse força nas telas comparativamente pequenas do TikTok e do YouTube, o guitarrista de 20 anos fantasia através de lentes cinematográficas: Tom Hanks é seu herói; a trilha sonora de ‘Juno’ a apresentou ao lado folclórico do indie rock. A sensibilidade de Hollywood se estende à sua música, que ela lança como beabadoobee, um apelido inventado para usar no Instagram. E, em vez de discutir temas musicais ou líricos, ela descreve seu trabalho em termos visuais: as canções são “vibrações de filmes do fim dos anos 90″. No caso de seus motivos florais e videoclipes em tons de rosa não serem claros o suficiente, Kristi intervém pra sombrear os detalhes mais finos de sua visão de Nora Ephron: ‘a garota finalmente fica com o garoto no final'”.
Como toda adolescente que se preze, Laus era encrenqueira e a arte – e os aplicativos à disposição pra sua geração, que a ajudaram a viralizar – foram seu megafone e seu spray de tinta pra pichar os muros dos caretas – o que no caso da sociedade a seu redor, deu em Boris Johnson.
“É basicamente eu estar com raiva da sociedade, ou das pessoas ao meu redor que eu simplesmente não acho que me conhecem e não me importo”, ela disse certa vez. “Não quero que você sinta pena de mim. Eu só quero que você entenda o que eu passei”.
A gente vai precisar de de mais de vinte e quatros horas de voo pra chegar até o país natal de Gabriela Jimeno. Ela atende pelo nome de Ela Minus e deu ao mundo, em 23 de outubro de 2020, via Domino, seu primeiro disco, “Acts Of Rebellion”.
O título já diz tudo dessa colombiana de trinta anos e residente em Nova Iorque.
A insegurança dela sobre a recepção do álbum não casa com a certeza que o título clama: precisamos nos rebelar. Obrigado pelo convite, queriada Jimeno.
“Meu coração está na garganta e meu estômago está um nó – então em vez de tentar usar palavras, vou me afastar e deixar a música falar por si – e por mim. Direi apenas: coloquei tudo nisso e não espero nada de volta, é simplesmente seu agora. Espero que (o disco) lhe dê uma nova vida, novas esperanças, novos poderes, novos amores”, ela escreveu numa rede social.
Vou pra Pitchfork, de novo. O site publicou: “o álbum de estreia de Ela Minus é uma coleção sobre a pessoa como ser político e abraçando a beleza de pequenos atos de revolução em nossa vida cotidiana. Em todo o processo, um senso de urgência e um chamado às armas se misturam a esse amor e apreciação pela realidade – porque até os revolucionários precisam deixar espaço pra simples interação humana”. É uma análise bonita e certeira sobre “Acts Of Rebelion” e sobre (como deve) ser uma mulher latina nos Esteites de um supremacista branco no poder.
O tema subjacente da música de Ela Minus é a ideia de que a resistência cresce a partir das práticas cotidianas. A produção intrincada de Minus que chama mais atenção, segundo, novamente, a Pitchfork. Ela é uma artesã habilidosa e uma compositora erudita: depois de anos tocando em uma banda emo em sua Colômbia natal, ela se formou como baterista de jazz no
Berklee College of Music, onde também aprendeu a projetar e construir sintetizadores – sim, ela toca nos sintetizadores feitos por ela.
“Embora Minus tenha escrito, produzido, projetado e gravado atos de rebelião em sua casa no Brooklyn, essas canções foram feitas para os cantos sombrios de uma discoteca Coldwave”, lembra a Pitchfork.
Mas ela é mais ampla. “Tony” lembra a batida de “Blue Monday”, do New Order, que por sua vez é totalmente disco.
Minus tem uma discoteca em sua cabeça e em suas mãos. Ao mesmo tempo, faz uma música intimista (quer melhor exemplo que “El Cielo No Es De Nadie”?). É, de fato, como se ela dissesse que cada movimento, cada ato, cada músculo é um ato político.
E deve ser: mulher, colombiana, fora dos padrões de beleza atuais (embora o rosto possa se encaixar nisso), vivendo num mundo cheio de exigências e com muito ódio transbordando, Minus, Laus e Moss vieram de países diferentes, com histórias diferentes, mas sofreram com esse ódio, de uma forma ou outra.
Seus discos, suas artes, suas presenças são atos políticos por si. Quem não aceita, precisa se combatido. A rebelião delas deveria ser a de todos.