ÁCIDAS: UM ÍDOLO IMPROVÁVEL

Nunca tirei uma foto com ele. A bem da verdade, não havia motivo. Eu e Capita, como Maximiliano era chamado, tínhamos uma relação basicamente comercial: eu ia ao seu bar sozinho, ficava por lá tomando uma meia dúzia de cerveja, pensando na vida, ouvindo sua seleção musical e nossa comunicação era bem breve, resumida ao seco “mais uma, Capita!” ou o protocolar “fecha!”.

Mas frequentar seu pé-sujo por tanto tempo me fez admirá-lo pelo jeito paciente e solícito. Não era de muitas palavras. Nas caixas de som, dava a entender mais ou menos como pensava. Rolava ali um mistão de canções vindas dos anos oitenta, de The Clash a The Cure, passando por Siouxsie & The Banshees, Jesus & Mary Chain, Inocentes, Cólera e tudo o mais que parecesse uma decente “rádio rock”. Lembrava-me um botecão que eu frequentava quando era molecote em São Paulo.

Suas vestimentas, por outro lado, o adornavam como o mais tranquilo e desapegado suburbano, sem vínculos com os códigos de moda do pessoal da zona sul. Chinelo era de praxe, com sol ou chuva.

Se figura e trilha sonora não davam liga, Capita dava de ombros, até porque ninguém jamais o questionou. O seu público talvez nem soubesse do que se tratava aqueles artistas e canções – normalmente aposentados e desempregados que se encostavam pra uma partida de dominó enquanto cachaça vai e cachaça vem. Eu e o Capita é que fugíamos do quadro geral.

Ali na zona norte carioca, com o calor quase sempre inconveniente, aquela biboca, uma antiga garagem transformada em botequim, era meu porto seguro. Sabia que não seria encontrado, que não seria perturbado e que poderia ouvir um pouco de música decente porque um abençoado tinha o mesmo gosto que eu.

Essa semana fiquei sabendo que Maximiliano, o Capita (nunca soube o porquê deste apelido), morreu. O botequim que nem nome tem estava fechado. Não sei o motivo, mas tomei coragem pra tocar a campainha do vizinho pra tentar entender o motivo de estar fechado. Foi quando soube da morte dele. O vizinho me avisou pra tocar na casa ao lado, que era onde a família morava. Mais uma vez, sem motivo aparente, tomei-me de uma pouco usual coragem e segui o conselho. Foi assim que conheci Junior, filho mais velho de Capita. Ele quem atendeu a porta, com um sorriso forçado, mas solícito como o pai. Eram um a cara do outro.

Depois de uma meia hora de conversa, fiquei sabendo do fulminante ataque cardíaco sofrido pelo seu pai. Em poucos minutos, Capita já não era mais solícito, nem poderia trazer mais uma, nem fechar. Falei pra Junior que quase atravessava a cidade só por um par de horas no botequim do seu pai, ouvindo aquela trilha sonora. O ambiente era meu analista silencioso: bar, cerveja, música.

Junior então me contou que seu pai colocava essas músicas pra espantar os clientes chatos, que ficavam e ficavam e ficavam, sempre pedindo uma pinguinha a mais. Quando isso acontecia, ele simplesmente aumentava o volume no máximo e o mala ia embora com os ouvidos estourando. As muitas seleções em CD-R foram sendo criadas ao longo do tempo, graças ao empurrão inicial de um “primo roqueiro estranhão” que era guitarrista e adorava essas músicas. Capita, com o tempo, se tornou apreciador também.

“Mas agora não faz sentido”, me disse Junior, “manter esses CDs aqui”. Mas você vai fechar o bar? Perguntei com uma mixórdia de desespero, indignação e lamentação. “Não sei ainda… Mas essas músicas… não dá!”, respondeu quase rindo. “Você quer os CDs pra você? Metade eu já dei, sobrou essa outra caixa aqui…”.

A pergunta me pegou de surpresa. Junior não frequentava o bar do pai, ou pelo menos eu jamais o havia visto por ali e certamente ele não me conhecia. Mas eu devo ter sido bastante inciso nos elogios àquele inusitado ponto de encontro comigo mesmo, conhecendo detalhes que só quem frequentava conhecia, que ele viu em mim alguém em quem confiar. “Se você gosta dessas músicas, e talvez você seja o único cliente que gosta, não vejo porquê não”, sentenciou. “Espere um pouco!”.

Ele demorou uns poucos minutos antes de voltar com uma caixa. Era uma caixa com muitos, mas muitos CDs – cento e oitenta, como contei mais tarde, todos numerados e organizados com nome do artista, nome da faixa, disco e ano de lançamento. Quem diria? Capita era organizado pacas e tinha pegado gosto pela coisa. Junior falou que ele nem pedia mais ajuda pro primo esquisitão e o próprio pai ia pra Internet buscar as coisas que gostava. Navegava por blogues e sites especializados em busca de novidades. Uma rápida olhada e tinha ali álbuns de 2017, 2018 já gravados. Capita era um pirata pra consumo próprio, como eu e como você. Era curioso, porque eu ouvi quase nenhuma variação de artistas ou músicas quando estava pelo bar. Talvez ele colocasse sempre os mesmos dois CDs, vai saber…

Junior também me contou uma pequena peculiaridade de seu pai. No bar, logo cedo, ao abrir, quando vendia pão na chapa e cafezinho pros trabalhadores que passassem por ali, ele também servia gratuitamente uns poucos moradores de rua que eventualmente pediam algo. Ao invés de dinheiro, dava um pingado e um pão na chapa. Junior ria com satisfação ao saber que o pai fazia tal caridade seguido de um presente inusitado: um CD. Ele dava um CD pro morador de rua depois do café-da-manhã gratuito!

Soou-me como uma crueldade tal presente. Como afinal um morador de rua poderia ouvir o CD? Mas Junior disse-me que um deles, aparentando bem mais velho que seu pai, quando deu de cara com o bar fechado, no dia seguinte à morte de Capita, ficou sentado ali em frente, esperando o café que aquele dia não veio. Nem no dia seguinte e nem no outro. Em todos, restava ao morador de rua uma esperança. No quarto ou quinto dia, Junior foi falar com aquela figura e lhe ofereceu o café. O cidadão agradeceu pela gentileza, mas disse que estava ali mesmo pelo CD. O espanto de Junior o fez contar a história do presente inusitado e diário – sim, diário! “Eu estou sempre aqui pelo CD”, contou.

O morador de rua, que se chamava simplesmente Rui, acabou ficando com uma caixa com quase duzentos CDs. Junior fez questão. Queria, na verdade, que ele levasse as duas caixas, mas Rui achou demais. Uma já era suficiente. Pediu um abuso apenas: um fone de ouvido. Junior foi com ele até uma loja ali perto e comprou.

Fico imaginando alguém passando pelas ruas da Tijuca e Vila Isabel e de repente ver um senhor de felpuda barba branca, boné, empurrando um carrinho de supermercado e fones de ouvido, onde, entre tantos pertences estaria uma caixa com duzentos CDs das bandas mais inusitadas e subterrâneas do mundo, e um tocador de CD, que sabe-se lá onde conseguiu. Ele poderia estar ouvindo desde The Ex (sim, tinha um disco deles na minha pilha), The Cure, Smiths, Eistürzende Neubauten, Strokes, Arctic Monkeys, Nirvana (aparentemente, ele adorava Nirvana), Toy Dolls, Pixies (outra preferência), e muita coisa nova, que ele parece que baixava indiscriminadamente.

O último disco que ele baixou, pela data da minha caixa, foi o “Microshift”, do Hookwors – o editor deste site e o Capita talvez sejam os únicos brasileiros a curtir Hookworms.

Pra quem não conhece a banda, “Microshift” é o terceiro disco do grupo (leia aqui), natural de Yorkshire, Inglaterra, e o que tem o som mais acessível. Os dois primeiros tem berros e guitarras krautrock, o que me atrai mais. Só que esse disco que o Capita gravou (e que falta uma música, “Boxing Day”, não sei o motivo) é melhor do que aparenta ser pelas primeiras músicas de trabalho, “Negative Space” e “Static Resistance”. Há até uma balada lisérgica, “Each Time We Pass”. Ele tem uma séria propensão ao agrado sem afago. Ser mais acessível não quer dizer exatamente ser acessível, de modo que as guitarras ainda estão lá, apesar das teclas mais sorridentes.

Se tornou um dos meus discos preferidos do ano, não só pelo conteúdo em si, mas pela história bastante inusitada por trás dela. É um disco que nasceu de uma tragédia – o estúdio alagado que adiou em muito o lançamento, o jeito que chegou a mim – e é um disco que contraria o próprio passado da banda.

Ao que consta, é um trabalho de renascimento. É um synthpop sujo pra afastar demônios e aproximar pessoas. Como Capita fez silenciosamente durante sua vida. A boa música ecoa por aí e chegou até mim por conta desse meu novo ídolo improvável.

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