Sou apaixonado por delinquentes juvenis. Veja bem, não por bandidos ou foras-da-lei cruéis, mas por delinquentes mesmo, aqueles que na sua inocência infantil rebatem toda a incompreensão adulta com atos hostis ingênuos contra a sociedade. Pode ser desde pichações de palavras de ordem, atirar pedras em vidraças, bebedeiras inconsequentes, peitar a polícia (ou qualquer poder constituído) até atos de confronto contra o que acham injustiças, normalmente pautas sociais e tais. A única solução pra esses atos vem com o tempo: a maturidade e as responsabilidades.
Mas creio que minha admiração veio da personificação dessas figuras feita pelo cinema, na pele dos personagens interpretados por Marlon Brando, James Dean, Steve McQueen e Paul Newman, por exemplo. Jaquetas de couro, motocicletas, carros em alta velocidades, mocinhas destemidas, a família tradicional atemorizada, isso tudo me atraía quando jovem e acabou criando essa admiração distante pela figura do delinquente juvenil.
Curto o personagem nem-aí e motoqueiro de McQueen em “Fugindo Do Inferno” (The Great Escape, 1963), da mesma forma que o de Newman em “Rebeldia Indomável” (Cool Hand Luke, 1967) ou de “O Indomável” (Hud, 1963). Sem contar Peter Fonda, em “Os Anjos Selvagens” (The Wild Angels, 1966), cujo personagem, na frente do juiz, se justificava: “nos só queremos ser livres, queremos ser livres pra fazer o que quisermos”.
Há um filme em especial que me dá prazer em ver. “The Wild One”, que aqui ganhou o título de “O Selvagem”, foi lançado em 1953, com direção do húngaro László Benedek e com atuação marcante de Brando. Ele interpreta o líder de uma gangue de motoqueiros, como todo mundo tá meio careca de saber, já que o filme é até um lugar-comum na referência ao que a sociedade chama de “desajustados”.
O antagonista acaba sendo o chefe de polícia e não os “desajustados” motociclistas – nem mesmo Lee Marvin, que faz o líder da gangue rival de motoqueiros. Só o fato de se conseguir tirar o esquadro da lógica mocinho-bandido já faz de “O Selvagem” um filme admirável.
A película acabou influenciando tanta gente quanto você possa imaginar (e até por isso se tornou um lugar-comum), de Elvis Presley aos Beatles (uma das muitas teorias nunca confirmadas sobre o nome da banda diz que John Lennon pegou o nome da gangue de Lee Marvin, The Beetles e trocou um “e” por um “a” pra realçar a batida da bateria), chegando ao Black Rebel Motorcycle Club, que tirou o nome da banda justamente da gangue liderada por Brando.
No começo da banda, até fazia sentido. O Black Rebel Motorcycle Club fazia um som de “jaqueta de couro e óculos escuros noturnos”. Os primeiros discos são assim, “B.R.M.C.” (2001) e “Take Them On, On Your Own” (2003). Mas os discos que saíram da linha não são ruins, pelo contrário: “Howl” (2005) é blueseiraço e “Baby 81” (2007) tem vigor.
O novo disco, “Wrong Creatures”, de 2018, é o oitavo da carreira deles e parece fazer uma reverência justamente ao filme que inspirou o nome da banda. Os “desajustados” que peitam o status quo ganham mais uma vez uma voz, embora tal canto não vá fazer diferença alguma no sistema estabelecido, porque o sistema estabelecido permite tais inserções justamente pra se perpetuar como plural ou democrático, ao mesmo tempo em que monitora e incentiva a perseguição.
As baladas de “Wrong Creatures” são muitas e elas são tristes – “Haunt”, “Echo”, “Ninth Configuration, “Carried From The Start”… O Black Rebel Motorcycle Club enfrentou problemas, como a doença da baterista Leah Shapiro (ela foi diagnosticada com a rara Síndrome de Arnold-Chiari) e a morte do pai de Robert Levon Been, que também era engenheiro de som da banda. Os temas são pesados.
Eles não falam exatamente de “desajustados”, mas de morte e depressão, e por isso não havia nenhum plano a seguir, o processo de composição seria mais intuitivo, como um desabafo. Eles não são mais juvenis, já têm muitas responsabilidades e nem mesmo peitar o status quo só por peitar é uma opção divertida. Há consequências, eles sabem disso. Há responsabilidades, quaisquer que sejam elas.
O personagem de Brando sabia disso também, afinal ele não é tão inconsequente assim, talvez só esteja (e não seja) um “desviado social”. O amor pode construir um novo cenário pra vida – mesmo essa sendo uma solução ainda mais romântica e ingênua do que a própria construção romantizada dos “desajustados” do cinema.
E digo tudo isso por conta da história de um grande amigo de infância. Um “desajustado” por opção. Ele nasceu numa comunidade da zona sul de São Paulo, envolto em criminalidade, pobreza e ausência total do Estado. Como a maioria das pessoas que vivem na linha da pobreza, em comunidades marginalizadas, ele tocou a vida na honestidade, estudando e trabalhando. Ficamos amigos durante a faculdade, inclusive, que ele cursou graças a uma bolsa (na época nem havia tantas opções pra bolsistas como as que o Fora-GOLPISTA insiste em forçar o fim). Ficamos amigos, mas nos afastamos, já que me mudei de São Paulo. Fiquei um tempo sem falar com ele, até que as redes sociais facilitaram o meio-de-campo pra uma reaproximação.
Descobri que ele virou motociclista, desses que viajam o continente nas férias atrás de cenários inimagináveis. Ele leva uma vida de “desajustado”, sem emprego fixo, sem horário padrão (ganha dinheiro com assessoria financeira – ou seja, está longe de ser um “desajustado” ou um “delinquente”, está mais pra um tiozão-do-rock, certinho até demais). As fotos que ele passou a me enviar foram descobertas de países que eu achava que conhecia. Nos encontramos algumas vezes pra umas cervejas em São Paulo ou no Rio de Janeiro.
Ele, veja só, se tornou fã do Black Rebel Motorcycle Club justamente por conta do filme. Quando “Wrong Creatures” foi anunciado (você pode ouvir o disco na íntegra aqui, aliás), foi ele quem me mandou a matéria (e não foi a do Floga-se, merda!). O disco foi lançado oficialmente em 12 de janeiro de 2018. Uma semana depois, fiquei sabendo que a namorada dele foi assassinada com um tiro, por um idiota em um idiota desentendimento de trânsito.
O caso se desenrolou como sempre. Ele levava a garota na garupa e ao parar num sinal de trânsito qualquer, encostou (obviamente, sem querer) no retrovisor do carro ao lado. Pediu desculpas, mas aparentemente não foi suficiente, porque o motorista começou a xingá-lo e a segui-lo. No sinal seguinte, o carro parou ao lado da moto e exigiu que ele pagasse pelo prejuízo que nem existiu – o retrovisor estava intacto, foi de fato um toque de leve, sem consequências. Não houve mais desculpas, só um dedo do meio pro cara que, descontrolado, sacou uma arma e descarregou neles, acertando um na cabeça da garota. O maluco fugiu (foi preso depois, graças a testemunhas que informaram a placa do carro à polícia).
Essa semana, ele me manda uma foto da encomenda que chegou via Correios pra ele. A namorada havia comprado “Wrong Creatures” numa loja gringa e mandado entregar pra ele no dia do lançamento. Atrasou mais de um mês e chegou quando ela já nem estava mais entre nós.
No cartão de parabéns que vinha junto com o CD, o recado: “pro meu motoqueiro desajustado, com amor”.
Os “desajustados” e “delinquentes” perante os olhos dos “cidadãos de bem” são só aqueles que não vivem a vida que eles esperam que seja vivida. Qualquer coisa fora do prumo, a intolerância é sentida, seja por violência verbal, física ou fatal. Mas nada abala o sentimento de liberdade que meu amigo e muitos outros conquistaram. Nem mesmo a hipótese do congresso nacional liberar novamente a venda de armas, um absurdo. Os “cidadãos de bem” não toleram as “criaturas erradas”? Vão fazer o quê, matar todas elas?
É impossível! Um salve e um viva os desajustados!