Um dos setores com maiores incertezas sobre o futuro é o de eventos ao vivo. Como vimos nos números apresentados pela Time For Fun no segundo trimestre do ano, o impacto é devastador.
A pandemia de Covid-19 apresenta números tão absurdos, que a humanidade passou a simplesmente normalizá-los como números e não como vidas.
Até o momento em que estas linhas são escritas, foram vinte e quatro milhões de casos confirmados, com oitocentos e quinze mil mortos em todo o mundo.
São também mais de dezesseis milhões de “recuperados”. Mas esses, até os casos mais leves, carregam sequelas ainda não totalmente rastreadas. Os principais problemas detectados são comprometimento dos pulmões (a vítima fica com cansaço constante), rins, acometimento ou piora de diabetes, perda prolongada de olfato e outros problemas.
A médica epidemiologista brasileira Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, num longo fio no Twitter, explicou que a “recuperação” não é bem uma recuperação, nem mesmo naqueles que não tiveram sintomas ou não foram internados.
Há um espaço de preocupação especial pros jovens, que via de regra se sentem intocáveis pelo vírus e pela crise – fruto de mais uma das negações científicas do presidente Bolsonaro, pra quem a doença é só “pra velho”.
Segundo Garrett, “um estudo do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Esteites) mostra que um terço dos pacientes com Covid-19 que não são hospitalizados têm sintomas a longo prazo. Muitos desses pacientes são jovens e saudáveis. Dos pesquisados entre 18 a 34 anos, cerca de 20% tiveram sintomas duradouros”.
Além disso, ela relata que um “autor de um estudo em Sydney (Austrália) revela que ‘pelo menos 20%’ de uma amostra representativa de ‘participantes selecionados aleatoriamente que não foram hospitalizados relataram sintomas três meses após a eliminação do vírus’. Isso vai de encontro aos dados do CDC”.
Ela segue: “em um estudo de ressonância magnética cardíaca em cem pacientes que se recuperaram da Covid-19, quase 80% apresentaram inflamação do miocárdio ou outros sintomas cardíacos – 60% não tinham condições pré-existentes”, desmistificando que só quem possui doenças preexistentes se dá mal.
“Acompanhamento de 143 pacientes ‘recuperados'”, tuitou a médica, “com três resultados de PCR negativos: dois meses depois 44,1% relataram piora da qualidade de vida, incluindo sintomas de fadiga persistente (53,1%), falta de ar (43,4%), dor nas articulações (27,3%) e dor no peito (21,7%)”.
E mais. Segundo ela, “existe um grande número de manifestações neurológicas associadas com Covid-19. Incluem delírio, psicose, encefalite viral, encefalopatias, acidente vascular cerebral, e distúrbios neurológicos periféricos como síndrome de Guillain-Barre”.
Há mais, muito mais. Veja tudo o que ela escreveu clicando aqui e, sim, assuste-se, porque é assustador.
Diante de tudo isso, é bastante difícil falar de “recuperados”, embora tais estudos não seja conclusivos de nada, apenas evidências. Sim, deve ter um bocado de gente que saiu ilesa do contato com o vírus. Bom pra elas, obviamente, mas é melhor não arriscar.
Entretanto, diante do quadro, tem quem prefira se arriscar e não me refiro aqui àqueles estúpidos que estão lotando bares e restaurantes, sem máscaras, nas grandes cidades brasileiras (ok, do mundo inteiro), que vão a shopping centers e a cultos lotados.
Tem gente que iria a shows, bastando o poder público liberar, sem se preocupar com os números divulgados da doença ou com as complicações geradas por ela e relatadas pela epidemiologista brasileira.
Empresas como a Time For Fun aguardam justamente esse momento. O problema é que pouca gente sabe as consequências reais de uma aglomeração nesse nível.
Por isso, cientistas na Alemanha resolveram fazer uma investigação sobre os riscos representados por eventos em massa em locais fechados durante a pandemia.
Pra isso, realizaram três shows de música em um único dia.
Chamaram cerca de cinco mil voluntários saudáveis com idades entre 18 e 50. Apenas um terço do número esperado compareceu. Esse deve ser (chute meu) o número de pessoas em todo o mundo (um terço) que abre o peito, nega a gravidade da situação e se arrisca ou se arriscaria.
O estudo foi realizado em Leipzig, pela Universidade Martin Lutero de Halle (Martin-Luther-Universität Halle-Wittenberg).
O cantor e compositor alemão Tim Bendzko concordou em se apresentar em todos os três shows. Música pop e jovem, como você pode ver aqui:
O estudo ocorreu enquanto a Alemanha registrava o maior número de infecções por Covid-19 desde o final de abril. Sim, está acontecendo agora, durante a segunda quinzena de agosto, com uma média de mil a dois mil novos casos todos os dias.
Pra um país como o Brasil, que normalizou quarenta mil casos por dia, parece pouco, mas não pra pragmática Alemanha de Angela Merkel.
O estudo, denominado Restart-19, foi criado “pra investigar as condições sob as quais tais eventos podem ocorrer apesar da pandemia”, disseram os pesquisadores.
O primeiro dos três shows de sábado teve como objetivo simular um evento antes da pandemia, sem medidas de segurança em vigor. O segundo envolveu maior higiene e algum distanciamento social, enquanto o terceiro envolveu metade dos números e cada pessoa com um metro e meio de distância.
Todos os participantes foram testados pra Covid-19 antes de participar e receberam máscaras faciais e dispositivos de rastreamento para medir seu distanciamento. Os pesquisadores também usaram desinfetantes fluorescentes pra rastrear quais superfícies o público tocava mais.
“A coleta de dados está indo muito bem, então temos dados de boa qualidade, o clima é ótimo e estamos extremamente satisfeitos com a disciplina de usar máscaras e desinfetante”, disse o pesquisador principal, Dr. Stefan Moritz, à BBC.
O cantor Tim Bendzko, por sua vez, disse que o evento superou suas expectativas: “realmente gostei. No começo, pensei que seria muito estéril por causa das máscaras, mas foi surpreendentemente bom. Espero que esses resultados nos ajudem a realizar em breve concertos de verdade pra um público novamente.”
Os primeiros resultados do estudo são esperados pra outono.
O projeto recebeu € 990 mil (R$ 6,550 milhões) em financiamento dos estados de Saxônia-Anhalt e Saxônia com o objetivo de ajudar a pavimentar o caminho pra retomada de grandes eventos esportivos e musicais em recinto fechado, verificando níveis realistas de risco.
“A pandemia de corona está paralisando a indústria de eventos”, disse o Ministro da Economia e Ciência da Saxônia-Anhalt, Prof Armin Willingmann. Bem, a Time For Fun, demais empresas aqui no Brasil e no mundo e público sabem muito bem disso. Todos estão sedentos por um showzinho qualquer.
Entretanto, ele reforça: “enquanto houver risco de infecção, grandes shows, feiras e eventos esportivos não podem acontecer. Por isso é tão importante saber quais condições técnicas e organizacionais podem efetivamente minimizar os riscos”.
Olhando com microscópio, o que a Alemanha está fazendo é se antecipar.
Nem é preciso dizer: o país torce pra humanidade achar uma vacina – e há mais de cem candidatas em fases diferentes de testes por todo o mundo – mas sabe também que isso pode demorar ou nem mesmo ser a salvação (sim, uma vacina pode não ser suficiente pra trazer o mundo ao que era antes, palavras da Organização Mundial da Saúde).
É o que diferencia uma sociedade preparada e precavida de outras, digamos, que trabalham “no susto”.
Há gente que acredita que o estudo alemão vai mostrar na prática o que todos já sabemos. Mas é preciso mostrar (e o texto aqui será atualizado assim que o resultado for publicado), porque a sociedade não pode trabalhar no achismo. Com achismo, mentiras e notícias falsas, estamos como estamos no Brasil, com cento e quinze mil mortos (e contando), com gente achando que cloroquina realmente é a cura, que aplicação retal de ozônio também cura (!) e por aí vemos o nível da coisa.
O brasil teve bastante tempo pra aprender e se preparar pra pandemia, que começou lentamente na China e lentamente chegou à Europa e aos Estados Unidos, antes de se espalhar por aqui no meio de março. Mas nada fez. Porque o administrador público brasileiro faz as coisas “no susto”. Quando faz.
Aqui, com os shows e eventos, temos mais uma oportunidade de aprender. Aprenderemos?