As cenas punk da Grã-Bretanha no final dos anos 70 raramente eram lugares pros fracos de coração, mas poucas eram tão polarizadas quanto em Leeds. Em um extremo, a cidade teve uma grande presença na Frente Nacional: Leeds tem a distinção dúbia de dar ao mundo suas primeiras bandas punk nazistas, The Dentists e The Ventz. Mas também havia as bandas criadas pela universidade da cidade com a esquerda vibrando notas, como com os Mekons e o Gang Of Four.
Quem detalha essa polarização é o escriba do The Guardian, Alexis Petridis, ao publicar um artigo emocionado, um dia após a morte de Andy Gill, soberbo guitarrista do Gang Of Four, em 1º de fevereiro de 2020.
Segundo Petridis, o resultado desse embate ideológico na cidade foi freqüentemente o caos; uma “violência terrível”, como disse Gill. Houve batalhas campais no campus da universidade e no F Club, o principal local punk da cidade.
Foi nessa época que nasceu a velha história de que Gill tinha dado uma guitarrada na fuça de um nazi que tinha ido ver o primeiro show da banda, ainda em Leeds.
“Não é verdade, mas eu gostaria que fosse. Eu amo essa história”, disse o guitarrista, em entrevista a Mark Andrews, em 2019.
“Eu posso imaginar onde enxergam um tico de verdade nessas coisas. É a vontade que seja verdade. Houve um skinhead de direita que apareceu em alguns dos primeiros shows porque ele gostou da pegada da banda, da emoção. Houve uma ou duas brigas – eu não diria grandes – que eclodiram na platéia, ele batendo em outra pessoa, esse tipo de coisa”, conta.
Também não é verdade que um nazista quebrou o nariz de Gill em uma apresentação. Mas essas histórias entraram para o ideário popular.
Como ficou famosa uma das cenas finais de “O Homem Que Matou O Facínora” (“The Man Who Shot Liberty Valance”, John Ford, 1962), “quando a lenda é mais interessante do que a realidade, imprima-se a lenda’.
O guitarrista se divertia com esse tipo de lenda.
“Eu sempre gostei do elemento de humor no Gang Of Four”, disse Gill. O sarcasmo, a ironia, o bom humor (na medida do possível), sempre fizeram parte do que a banda tinha a dizer. Tanto quanto os recados sociais.
O novo século não se mostrou mais alentador do que aqueles duros finais de anos 1970. “O que muitos de nós pensamos naquela época era que a história estava em algum progresso lento, mas constante, e é por isso que os últimos cinco ou seis anos foram tão desorientadores e chocantes. Acho que ninguém pensou que tínhamos chegado lá, mas acho que as pessoas acreditavam que o mundo viraria menos à direita, menos sexista, haveria mais direitos pra mais pessoas e a diferença de riqueza encolheria. E é claro que não foi isso que aconteceu. A história não se move em uma linha, pode entrar em um grande círculo”, analisou.
O que o Gang Of Four fazia era um rock com consciência social, mas sem os clichês de sempre. As influências da banda eram em grande parte de antes do punk, do Dr. Feelgood ao funk, sem esquecer do hard rock despojado de Free.
Mas, como lembra Petridis, “seu álbum de estréia de 1979, ‘Entertainment!’, parecia completamente fresco, livre do passado: dedicado a subverter fórmulas de rock padrão, conseguiu, de alguma forma, criar uma música vibrante”.
“De fato, ‘Entertainment!’ era tão bom que, em comparação, seu álbum seguinte, ‘Solid Gold’, foi um pouco anti-climático, embora tomado por seus próprios méritos, tenha sido fantástico. Notavelmente, nos EUA, onde sua estréia teve um impacto menos imediato, foi adornado com elogios – ‘uma nova categoria no pop’, se empolgou a crítica”, escreveu Petridis.
A banda nunca foi um estrondoso sucesso comercial, muito por se recusar a cumprir certos compromissos contratuais indesejáveis, como fazer playback em programas de televisão, mas sua influência não pode ser medida por isso.
Michael Stipe admitiu o grupo como uma inspiração vital pro seu aposentado REM. Seu efeito na principal banda punk hardcore americana Minutemen é direta. A capacidade deles de fazer música beligerante e intensa, sem sucumbir aos estereótipos machistas, sustentava uma vasta quantidade de rock alternativo subsequente dos EUA: era possível ouvir em Fugazi, Red Hot Chili Pepers e Big Black; Kurt Cobain era um grande fã. E a pergunta séria que se deve fazer aqui é: e quem não era?
Certamente os neonazistas não.
“A Gang Of Four tinha suingue – roubei muito deles”, disse Stipe. Kurt Cobain descreveu o Nirvana como “uma mistura de Gang Of Four e Scratch Acid”. Michael Hutchence, do INXS, definiu assim a banda: “quando arte encontra o diabo via James Brown”.
Curiosamente, na virada do novo século, quando uma crescente direita abjeta começou a tomar corpo, pra na segunda década tomar muitos protagonismos, é que o som do Gang Of Four também tomou nova relevância, entre uma molecada disposta a chutar umas ensebadas canelas.
“Entertainment!” de repente voltou a uma relevância merecida. As páginas da imprensa musical mundo afora estavam cheias de bandas imitando o estilo de guitarra de Andy Gill ou, pelo menos, tentando e trabalhando em sua sombra iminente, de Franz Ferdinand ao Rapture e ao Bloc Party, passando pelo Futureheads.
Tirando o Franz Ferdinand, não há nenhuma que vá fincar raízes na história do rock de guitarras, mas dá uma dimensão de como o Gang Of Four voltou a ser apreciado e a inspirar novas mentes.
Gill se inspirou em Wilko Johnson (ainda vivo, com 72 anos, ele é de 12 de julho de 1947), do Dr. Feelgood. Mas, nas palavras de Petridis, “ele adotou o estilo de guitarra rítmico, irregular e agressivo de Johnson e seguiu em frente: havia também uma forte influência do funk. Havia algo de austero nisso. Gill se recusou a usar distorção ou tocar solos”.
“Quando eu era jovem, Jimi Hendrix era uma grande obsessão, com seu estilo fluente, livre, colorido e expressivo”, disse, em 2017.
“Mas havia coisas mais orientadas pro groove que me deixaram bastante empolgado – muitas coisas da Motown que não são movidas a guitarra. Com a Motown, a maneira como as batidas foram montadas realmente mexeu comigo. E pessoas como o (guitarrista de funk e soul) Steve Cropper, que é um guitarrista rítmico incrível e subestimado, também me inspiraram”, afirmou.
Ele excursionou até a sua morte, em 1º de fevereiro de 2020. Tinha 64 anos. Cair na estrada era a única maneira de “se vender”. Até o fim, ele era o único remanescente dos tempos iniciais da banda. Fazia isso pra viver.
Se é a lenda que vamos imprimir, então fiquemos com essa: depois de morto, pra onde quer que os mortos vão, Gill pode ter, enfim, encontrado algum nazista e quebrado a fuça dele com sua guitarra. Só por diversão. Por nós.