No dia 15 de agosto de 2021, vinte anos depois, o grupo militar, religioso e extremista Talibã voltou ao poder central do Afeganistão, em um movimento que chocou o mundo e desesperou os próprios afegãos, recordando a primeira passagem pelo poder do grupo, na segunda metade da década de 1990, que culminou no histórico 11 de Setembro de 2001, com a queda ao vivo, pra todo o mundo, das torre gêmeas do World Trade Center nova iorquino, e implantou o caos e a intolerância no país.
Neste dia de agosto, o planeta todo viu imagens desesperadoras de afegãos tentando sair do país, lotando o aeroporto da capital Cabul, corpos caindo de aviões abarrotados, mães entregando seus bebês a soldados ocidentais batendo em retirada.
Era uma crise previsível. O próprio Estados Unidos, derrotado em sua promessa de um Afeganistão livre do terror e democrático, sabia disso. A guerra no Afeganistão, que agora é o conflito mais longo que os Esteites se enfiaram, custou aos contribuintes US$ 193 bilhões, número informado pelo Pentágono. Tanto dinheiro depois, os estadunidenses deixam o país fugidos e com o caos às costas.
Em fevereiro passado, os Estados Unidos intermediaram um acordo com o Talibã que daria início a um cessar-fogo permanente e reduziria a presença militar dos EUA de aproximadamente treze mil soldados pra quase nove mil mil em meados de julho do ano passado. Em maio de 2021, todas as forças estrangeiras deixariam o país cansado da guerra. Esse era o acordo.
Foi a brecha que o Talibã desejava há duas décadas. “Vocês têm o relógio, nós temos o tempo”, dizia o lema talibã, sabendo que a presença estadunidense, por alto custo financeiro que exigia, não duraria para sempre. E quem tem paciência, tem tudo.
Entretanto, ali no meio, morando naquelas terras, não existem só talibãs e forças ocidentais. Há gente que precisa trabalhar e viver. Gente que só queria tocar seus próprios negócios, cuidar das crianças e envelhecer em paz, com um pingo de liberdade, inclusive religiosa. Mas não rolou.
Até o fracasso total do sonho, houve clarões de céu azul. Um desses clarões límpidos atende pelo nome de Aryana Sayeed, uma cantora e compositora pop, que depois se tornou celebridade de televisão, de cinema e foi ganhar o mundo. Sayeed já foi chamada de a Kim Kardashian afegã, mas sua presença tem bons toques de Anitta, o estrondo popular brasileiro.
Maquiada, com cirurgias estéticas pelo corpo (incluindo seios), roupas provocantes, ela é exatamente tudo aquilo que o Talibã não tolera. Nascida em Cabul, em 1985, ela ganhou um pouco de notoriedade com o primeiro single, “MashAllah”, em 2008. Mas explodiu mesmo (desculpe-me pelo termo) com “Afghan Pesarak”, um rockão com boas pitadas de pop e música folclórica local, cantada em pachto, que nada mais é que o afegão, e em dari, ou o persa afegão (linguistas, perdoem-me se me equivoquei).
Como se vê, ela rebola, requebra, mistura hip hop, batidas dançantes, guitarra, teclados, usa calças apertadas, pinta as unhas, provoca sensualmente e causou a ira dos extremistas e até mesmo dos não extremistas, em uma sociedade recente construída basicamente no machismo formal.
Porém, mais do que isso, Sayeed inspirou meninas a quererem ser como ela. E isso irritou ainda mais os machões afegãos.
Há exatos quatro anos, em 21 de agosto de 2017, ela tinha um show marcado no estádio de Ghazi, local onde o Talibã fazia execuções públicas durante seu governo, na década de 1990.
Mas as autoridades locais diziam que não podiam garantir a segurança do show. Isso porque Sayeed era vista como uma afronta à cultura local. O Conselho Ulema de Cabul, o mais alto órgão religioso de Cabul, pediu o cancelamento do evento. O chefe do Conselho, Mullah Attaullah Faizani, disse que se o show fosse realizado no estádio, ele tinha informações de jovens homens que estavam tão chateados e afrontados que atacariam com lança-chamas e bombas o público.
O show foi, então, mudado pro Hotel Intercontinental. E aconteceu, apesar das ameaças terroristas – em um país, lembre, “livre”, com a presença das forças ocidentais.
Centenas de pessoas compareceram ao concerto. A maioria meninas e mulheres. O estilo de Sayeed é mesmo provocativo, como toda cantora pop que alia postura, presença de palco, moda e sensualidade.
Audiência do show (Foto: AAP)
No início daquele ano, ela foi criticada no Afeganistão depois de se apresentar com um vestido cor de pele em um show em Paris. Sem medo de ataques, respondeu, já com outro vestido e segurando a pela da discórdia: “hoje resolvemos um dos maiores problemas atuais do Afeganistão, agora podemos começar a nos concentrar em outros problemas maiores!”.
O público elogiou a resistência de Sayeed em superar os obstáculos das ameaças e da oposição conservadora. Era exatamente o que esperavam dela, talvez mais do que as músicas em si.
Um repórter da BBC perguntou a algumas meninas: “por que você está aqui?”. Elas responderam que foram ao show só pra desafiar aqueles que eram contra o show. Vários participantes expressaram sua gratidão pelo concerto, uma raridade em Cabul.
“Depois do recente incidente, isso é pra quebrar o silêncio, pra fazer rir as pessoas que testemunharam e sofreram”, disse Maryam Ataee ao Tolo News, referindo-se ao atentado do Talibã que havia acontecido três semanas antes e que matou trinta e uma pessoas.
Hasib Sayed é o agente, além de namorado-companheiro-esposo, de Sayeed (não confunda os nomes). Segundo ele disse ao New York Times, sua namorada-cantora assusta os mulás: “eles são contra Aryana Saeed porque ela trabalha pelos direitos das mulheres no Afeganistão, e eles não estão felizes com isso. Se as mulheres conhecem seus direitos, ninguém pode usá-las como escravas”.
Não há mensagem mais importante, em perspectiva, nesse agosto de 2021, com mulheres sendo obrigadas novamente a usar suas roupas que cobrem todo o corpo, deixando apenas os olhos de fora. Elas não poderiam mais estudar, nem trabalhar. Universidade, nem a pau. Muitas famílias passaram a temer um repeteco dos 1990, quando os militares talibãs sequestravam as filhas pra fazer delas esposas ou simplesmente escravas (o que incluía estupros, claro).
Uma mulher livre, como Sayeed, obviamento aterroriza a imposição de mundo tacanha dos talibãs. É força da cultura pop pra mais do que palavras ou cartazes de protesto.
Quis o destino que Sayeed e Sayed estivessem em Cabul no dia da recente tomada de poder. Aryana estava em sua terra natal pra lançar uma marca própria de roupas pra meninas afegãs. Mas no dia 14 de agosto, um dia antes do golpe, ela recebeu um telefonema informando que o Talibã estava à espreita, nos arredores de Cabul.
Segundo reportagem da Reuters, Sayeed e Sayed fizeram reservas em um voo comercial programado pro dia seguinte. Não quiseram arriscar.
Porém, o voo comercial superlotado nunca decolou, disse Sayeed.
Ela e o namorado, com medo de serem reconhecidos pelos combatentes do Talibã, deixaram o aeroporto e se abrigaram com parentes em Cabul. No dia seguinte, eles ouviram que as forças do Talibã estavam fazendo buscas de porta em porta em sua vizinhança. Sayeed novamente foi pro aeroporto, usando um véu que revelava apenas seus olhos e viajando com o jovem primo de Sayed, como se fosse um passeio em família.
“Passamos por cinco postos de controle do Talibã. Um deles parou nosso carro”, disse Sayeed. “No minuto em que viu a mim e ao menino, disse: ‘vá'”.
Sayed, em um carro separado, foi o primeiro a chegar ao aeroporto controlado pelos militares dos EUA. Sayeed foi reconhecida por um afegão no aeroporto, que informou a um oficial dos EUA: “este é o noivo de uma cantora muito famosa no Afeganistão, e você deve deixá-lo entrar porque se eles o pegarem, eles o matarão”.
Sayed é um cidadão canadense e acabou autorizado a entrar e se encontrou com Sayeed. Os dois finalmente conseguiram escapar em um avião militar dos EUA no início de 17 de agosto, pousando primeiro em Doha, no Catar. Dois dias depois, eles chegaram aos Estados Unidos. O casal planejava partir para Istambul, onde moram, via Amsterdã. Em segurança.
“Tive sorte de sair do Afeganistão. Mas e quanto ao resto das pessoas que estão lá?” disse Sayeed, há tempos uma cidadã britânica, à Reuters. Ela estava vestida com uma camiseta com uma bandeira dos EUA na manga, que ela havia recebido em Doha. Ela havia deixado Cabul apenas com as roupas que vestia naquela noite.
Alguns de seus 1,4 milhão de seguidores no Instagram lhe desejaram boa sorte desde que ela deixou Cabul.
Sayeed sabe que tem sorte. Seu talento aflorou em uma época de relativa paz e liberdade. Ela ganhou o mundo. Mas é uma em um mar de desafortunadas.
Com sua fuga, foi a várias emissoras de televisão mundo afora contar como escapou e clamar pra comunidade internacional não esquecer os afegãos, especialmente mulheres e crianças: “nos últimos 20 anos, quero dizer, tantas meninas e tantas mulheres, elas foram para escolas, foram educadas. Muitas delas são professoras, médicas… tantas conquistas”, disse Sayeed, que dedicou sua música de 2015, “Qahramaan”, a elas (veja o clipe a tradução abaixo). “Como tudo pode acabar assim, simplesmente assim?”.
Espera-se que esse não seja o fim.