Há uma disputa entre Caruaru, em Pernambuco, e Campina Grande, na Paraíba, pra saber quem acolhe o “maior São João do mundo” (ou do Brasil ou do Universo). Durante o mês de junho, ambas as cidades chegaram a receber neste ano de 2017 mais de quatro milhões de pessoas, turistas da região, de todos os cantos do Brasil e de outros países.
Pelo censo de 2010, Caruaru tem 278 mil habitantes; e Campina Grande, 355 mil. O impacto na vida e na economia dessas duas cidades e regiões, em cascata, não pode ser calculado com precisão, mas estima-se algo em torno de meio bilhão de reais movimentados nos dois locais. O São João é mais do que só uma tradição ou uma festa popular: é um negócio patrocinado pelo Estado (nas três esferas) e pela iniciativa privada, com dinheiro de grandes bancos e empresas de bebidas e afins.
Em Campina Grande, especificamente, que intitula sua festa como “O Maior São João Do Mundo”, foi construído em 1986 o Parque do Povo, uma área de quarenta e três mil metros quadrados pra abrigar a festa. É onde o forró, principalmente, e demais ritmos populares derivados comem solto.
Nenhum desses ritmos, porém, está na cabeça de Thamys Lowrhah, paraibano de Campina Grande, de 28 anos. Se o forró faz parte da vida da cidade, isso não quer dizer que essencialmente ele seja unanimidade. Lowrhah, ou artisticamente Low Rhahn, é um ponto fora da curva nessa grande engrenagem da música popular brasileira, ele olha pra outras fronteiras, pra outros sons, pra outro idioma, pra outras batidas.
“Comecei tocando a partir de um violão Kashima. Meu sonho era montar uma banda, mas sempre faltou muita coisa, a estrutura, instrumentos e tudo mais. Nesse período, aos 14 anos, tive meu trabalho solo que chamei Gênes Kamikaze. Ela só se concretizou como banda através de alguns ensaios em 2007, quatro anos depois. De lá pra cá nunca mais parei, embora as bandas nunca duraram muito”, diz, em conversa com o Floga-se.
Num cenário em que só há espaço pro ultrapopular e delicioso forró, Lowrhah ia no contrafluxo, enfrentando os mesmos problemas que os músicos subterrâneos enfrentam em todo o país: não há espaço pra mostrar sua arte, é quase um prazer silencioso e pessoal. “Atualmente, só tem uma casa na cidade (que abre espaço pra música de guitarras)”, conta.
Lowrhah foi em frente. Foi baixista na banda No Útero, que era grunge e não durou muito. Em 2009, criou a Luxo Radioativo, que tinha Alisson Nunes no baixo e Henrique Marcell na bateria, agregando noise rock ao caldo grunge. Quando o guitarrista Thiago David entrou na banda, o pós-punk foi sendo assimilado e o grupo foi ganhando uma curiosa notoriedade: “em 2010 fiz meu primeiro show na cidade pra pouca galera que curte som underground e até pros muitos metaleiros, num evento numa praça daqui… quando tocamos nossos primeiros acordes e eu cheguei dando um esparro louco (ri), a galera pirou achando que éramos os Stooges da Paraíba”.
Os Stooges da Paraíba, porém, não duraram muito. Em 2011 a banda acabou e, sozinho, Lowrhah começou um projeto mais pessoal, dando cria à Psychocancer. Com seu computador e celular, chegou a gravar o disco “Aura” (que você pode ouvir aqui), já com guitarras sombrias e rasgadas, psicodelia garageira e macabra – um Sisters Of Mercy bem peculiar. “Gravei a voz dessas demos e desse álbum a partir de um celular Nokia, e a guitarra gravei na casa de um amigo a partir de um simples programa; depois encontrei uns samplers de bateria e fiz manualmente as batidas”, conta. Na terra do maior São João do mundo, a guitarra tem que se virar como em qualquer outro canto.
Lowrhah colocou o disco no Bandcamp e por conta de alguma conjunção do destino, conseguiu certa reverberação fora do Brasil, o que deu impulso ao músico, que quis tentar levar ao palco a nova criação, de qualquer jeito.
“Foi quando entrou Alisson Nunes de novo no baixo, Tiago Lima na segunda guitarra e Bruno Rodrigues na bateria”, diz. “Essa formação não passou de alguns ensaios em casa, daí montávamos peças de bateria com caixa e latas, plugávamos as guitarras numa Meteoro e o violão como outra base; daí no meio do ano de 2012, o Thiago David (na segunda guitarra) entra na banda, Tiago vai pro baixo e Raul assume a bateria, no lugar de Bruno” – e a Psychocancer conseguiu alguns shows, inclusive na capital João Pessoa. O grupo durou até 2015.
Foi novamente sozinho que Lowrhah encontrou sua mais recente e expressiva face criativa, em dois projetos que se complementam: o Sinestesia Letárgica e o Astrocrushing.
Ambos os projetos são reflexo do som que o músico realmente se inspira, do shoegaze ao dream pop, com fortes doses garageiras. “Na Astrocrushing me espelho muito no Astrobrite, Lovesliescrushing, Slowdive e Pink Playground”, referências que fogem do comum. “No Sinestesia, me inspirei no Lovesliescrushing, Windy And Carl, Landing, Amp, Flying Saucer Attack etc.”, deixando a óbvia referência ao My Bloody Valentine de lado: “o My Bloody Valentine já escuto muito, tenho muita influência, mas eu não queria soar como eles porque muitos soam, eu quis deixar que soasse originalmente a partir de minhas raízes; amo o MBV, tenho influências, sim, mas apenas pra ouvir e não pra compor”.
O Sinestesia Letárgica e o Astrocrushing se completam de forma bem natural. O primeiro é não tem bateria, é só de ambiências com guitarras, em parceria com Nefelibata, nome pelo qual sua namorada assina, contribuindo com os sintetizadores e vocais. É como se fosse um “Loveless” tocado pelo Slowdive. A dupla está desde 2015 lançando discos. O primeiro foi “11-JNIR”, de dezembro de 2016 (ouça aqui). Depois vieram “Saturn”, em 21 de abril de 2017 (ouça aqui) e o ótimo “We Came From Mars”, de 4 de agosto de 2017 (ouça aqui – vale muito).
Já o Astrocrushing começou em 2016 com uma vertente mais pesada e soturna desse shoegaze praticado no Sinestesia. O primeiro trabalho, “Untitled”, de agosto de 2016, dá uma boa ideia: apesar de momentos calmos e espectrais, como “ISLYF”, o disco tem sujeira, guitarras amplificadas e aceleradas, mais camadas, bateria, vocais e postura mais agressivas (ouça na íntegra aqui). Depois, vieram “The September Flowers” (ouça aqui), em 2016; “Brilliantlove”, em 29 de maio de 2017 (ouça aqui), que se aproxima bastante do Sinestesia, e finalmente o arrasador “Look Down”, que chegou ao mundo em 29 de julho de 2017.
O Astrocrushing, apesar de todas as referências pescadas pelo autor, se liga mesmo é com a sempre menosprezada Loop, cujo álbum “Wolf Flow”, de 1991, é visto como o “lado sujo e cruel” do shoegaze. Lowrhah tem essa proximidade ao tóxico Loop, até mesmo nas faixas mais lentas do seu Astrocrushing, podendo ser notado em qualquer um dos álbuns lançados.
As nove faixas de “Look Down” são exatamente isso: uma garagem sendo trucidada por notas cáusticas que fazem excitar o mais ferrenho fã do Loop.
É incrível como Lowrhah consegue tanta qualidade em tão pouco tempo. De 2015 até “Look Down”, contando ambos os projetos, tirando singles e EPzinhos, foram sete discos cheios. “Eu queria escrever meus livros da mesma forma e ritmo que componho. Não posso pegar um instrumento que me surge uma ideia. Nem todas eu gravo, já perdi muitas ideias sem gravar”.
As mensagens se confundem entre os projetos. Lowrhah busca inspiração em literatura e aspectos espirituais: “no Sinestesia, envolvo um pouco de minhas leituras nos títulos… Por exemplo, eu referencio muito coisas iniciáticas, magicas, Egito, gnosis, as ‘ambiências’ do Sinestesia levaria o ser que escuta às alturas, ao espaço, à transcendência; não é à toa que as letras e a atmosfera soam como anjos e até como o próprio nome banda, sinestésicos, onde as cores borradas do espectador alcançariam tal rumo. Mas na Terra é como se tudo tivesse turvo, dormido, em letargia. Falo de amor, mas não do amor habitual que usamos, de um amor sagrado que está além de nosso plano. Se você ouvir ‘O Iniciado’, do EP ‘Leis Trimórficas’ (vá aqui), verá uma música meio que iniciática, com influência dos ritos antigos, carruagens, céu, essas coisas”, conta.
Ele se diverte com essas viagens: “já vieram me perguntar se uso drogas, e eu disse que não, claro que não, embora pareça (gargalha)”.
A maior dificuldade pro Astrocrushing e Sinestesia Letárgica é tocar ao vivo. Não há espaço e é uma eterna luta. Ele até consegue ganhar um troco no Bandcamp (os discos todos são cobrados), já que sua música conseguiu certo destaque em blogues obscuros e especializados e a atenção de jornalistas e agitadores culturais como o sempre atento peruano Wilder Gonzales, da Superspace Records e criador da Shoegaze Latinoamerica.
“É difícil estar longe dos centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, muitos já me perguntaram isso – ‘por que você não toca aqui?’ – mas os recursos e as despesas impedem no momento, só que tenho grande vontade de uma tour“.
Da terra do Maior São João do Mundo vem esse artista imparável, dedicado e persistente. É torcer pra que ele apareça logo em um palco perto de você. Campina Grande tem ainda mais sons pra vibrar. E se orgulhar.
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1. Kill Em Back
2. Glue
3. Look Down
4. Wake Up
5. Common Criminal
6. You’re My Love
7. I Do
8. Sometimes
9. Honey