György Kurtág, um dos mais notáveis compositores da música contemporânea, nasceu em 1926 em Lugoj (ou Lugos), cidade que hoje faz parte da Romênia, mas que já foi do império Austro-Húngaro. Ele assumiu a cidadania húngara.
Na mesma cidade, o mundo ganhou o compositor romeno Tiberiu Brediceanu (1877-1968), o autor de ópera Filaret Barbu (1903-1984), o tenor Traian Grozăvescu (1885-1927), a meio-soprano Aura Twarowska (1967) e outros artistas.
Mas foi com Béla Ferenc Dezső Blaskó que a cidade cravou destaque não só regional mas mundial.
Ele nasceu em 20 de outubro de 1882. Em 1919, teve que sair do país natal, após um levante comunista fracassar. Blaskó era um ativista socialista. Fugiu pra Alemanha, onde atuou em vários filmes e acabou chegando aos Estados Unidos anos depois. Ali, o destino o colocou numa adaptação de “Drácula”, de Bram Stoker, na Broadway, em 1927.
Quatro ano depois, estreava no cinema a versão do romance de Stoker com Blaskó no papel de Conde Drácula, agora já assinando como Bela Lugosi – (algo entre a pronúncia alemã e a húngara de Lugoj).
Depois disso, Bela Lugosi virou o Drácula mais famoso do cinema – até hoje – e fez uma carreira errática em filmes de terror, até se consumir em drogas e acabar em filmes do hoje “pior cineasta de todos os tempo”, Ed Wood, um grande admirador seu.
Ninguém poderia imaginar, mas após a sua morte, em 16 de agosto de 1956, uma outra homenagem, vinte e três anos depois, o faria reviver pra sempre.
Em 6 de agosto de 1979, uma banda desconhecida da Inglaterra traria em seu primeiro single o nome do maior Conde Drácula do cinema: “Bela Lugosi’s Dead”.
O Bauhaus, com Peter Murphy (vocal), Daniel Ash (guitarra), David J (baixo) e Kevin Haskins (bateria), nascia pra se tornar imortal em homenagem a um morto, ou “morto-vivo”.
A canção, que ganhou lançamento do selo Small Wonder (que lançou gente como The Cure, Anthrax e Camera Obscura), é tida como a primeira “música gótica” da história e, de acordo com Murphy à Uncut, “a ‘Stairway To Heaven’ dos anos 1980”.
A matéria com os integrantes da banda, lembrando sobre o nascimento do single, foi publicada na edição de janeiro de 2019 da revista, ano em que a música completava quatro décadas de vida, e republicada em 28 de fevereiro de 2020 no site deles, de onde o Floga-se tirou boa parte do texto abaixo.
A música, de pouco mais de nove minutos e meio, é completamente fora dos padrões radiofônicos de qualquer época e talvez até ficasse presa a um nicho, não fosse a inclusão nos créditos iniciais de “Fome De Viver” (“The Hunger”, 1983), de Tony Scott, com David Bowie no elenco. A sequência tem o aspecto estético MTV-publicitário que o estreante Scott, irmão do já bem-sucedido Ridley, trazia da sua carreira na propaganda.
A versão mais curta da canção, de cerca de três minutos, acabou ajudando o single, que jamais foi um sucesso de vendas ou de execução pública, a não ser em porões e inferninhos espalhados pelo mundo e em paradas independentes.
Olhando para trás, há quarenta anos, Peter Murphy, não tem dúvidas sobre o significado do single de estréia de sua banda, abre o texto da Uncut. “‘Bela Lugosi’s Dead’ passou a ser uma música seminal”, explicou. “Foi a ‘Stairway To Heaven’ dos anos 80”.
“Definitivamente, tem uma qualidade atemporal”, concordou o ex-baterista do Bauhaus Kevin Haskins. “Refletindo, fico maravilhado com o que fizemos. Éramos apenas quatro jovens que queriam criar algo único, sem ter muita ideia do que estávamos fazendo. Mas essa música saiu disso”.
Gravado em janeiro de 1979, na primeira sessão de estúdio da banda, “Bela Lugosi’s Dead” é uma obra-prima no pós-punk experimental – nove minutos e meio de medo de um ritmo tímido, guitarra mínima, baixo marcante e efeitos de eco. Murphy espera quase três minutos antes de fazer sua entrada, seus tons sepulcros marcando o fim da lenda dos filmes de terror do título, mais conhecida por sua interpretação de Drácula. Morcegos voam da torre do sino e noivas virgens passam pelo túmulo de Lugosi, repleto de flores mortas.
A letra é de uma simplicidade horripilante.
Após rejeições de várias gravadoras, foi deixado para Small Wonder lançar “Bela Lugosi’s Dead” como um single de doze polegadas em agosto de 1979. Não entrou nas parada principais, mas permaneceu nas listas independentes por mais de dois anos. Seu status foi consolidado pela versão memorável de Bauhaus durante a cena de abertura do filme de Tony Scott, 1983, “The Hunger”, estrelado por uma das principais inspirações da banda, David Bowie.
Que a música agora seja vista como o protótipo gótico é uma fonte de alguma disputa entre aqueles que a criaram. “É engraçado, porque às vezes falo que não éramos góticos”, disse o guitarrista Daniel Ash. “Mas eu estava no Bauhaus e nosso primeiro single foi ‘Bela Lugosi’s Dead’. Bem, é claro que éramos góticos! Mas esse termo era um insulto na Inglaterra na época. Estávamos com Alien Sex Fiend, Sex Gang Children e Specimen, que todos pensávamos que eram realmente uma porcaria”.
“Até certo ponto, a música nos deu força”, disse Murphy sobre o sucesso (de nicho) dela. “Mas estávamos correndo muito. Músicas saíam de nós o tempo todo. Na minha opinião, já éramos grandes. Era apenas um sentimento de grande propriedade de nós mesmos, de nossa própria natureza criativa muito poderosa”.
“Havia uma química imediata entre todos nós na banda. Nós sempre fomos muito instintivos. Eu nunca havia participado de uma banda antes, mas isso era realmente como arte. Um ateliê criativo”, afirmou Murphy.
Ash continuou: “estava conversando com David J uma noite e disse a ele que eu tinha esse rife, usando esses acordes que tinham uma qualidade muito assustadora. Ele disse: “é tão estranho você dizer isso, porque eu tenho essa letra sobre Bela Lugosi, o ator que interpretou um vampiro”.
David J lembrou no bate-papo com a revista que “houve uma temporada de filmes de terror antigos na TV e estava dizendo a Daniel sobre o quanto eu gostava daquilo. O que passara na noite anterior foi ‘Drácula’. Eu estava dizendo como Bela Lugosi era o Drácula por excelência, a elegante representação do personagem”.
Daí, Daniel ligou pra Murphy e disse: “Pete, eu e David tivemos a idéia de escrever algo sobre vampiros”.
“Pra mim”, respondeu Murphy, “isso era realmente sobre atração. Há um elemento erótico e atraente no vampiro. Não queríamos escrever uma ode a Bela Lugosi, aparentemente. O elemento kitsch era o nome dele, porque ele era o maior ícone, mas era a pessoa mais improvável com aparência de vampiro. Então, havia esse ângulo britânico, mas não era nada negativo. Foi perfeito. A idéia de Bela Lugosi estar morto ou morto-vivo era clássica”.
“Eu trabalhava num armazém”, lembrou David J, “onde empacotava caixas de banha de porco, entre outras coisas. Aquele sangue todo. Eu tinha essas etiquetas de remessa no bolso traseiro o tempo todo e, depois do trabalho, eu estava andando de bicicleta pra casa e tinha a primeira linha na minha cabeça – ‘Branco em capas pretas translúcidas’. Então peguei uma etiqueta de embalagem e escrevi isso. No momento em que cheguei em casa, eu tinha tudo exposto nessas etiquetas de entrega rosa, verde e vermelha”.
Kevin Haskins deu a declaração mais inusitada: “meu professor de bateria me ensinou três batidas – uma batida pop, uma batida de jazz e uma bossa nova. Então pensei: ‘talvez eu experimente a bossa nova'”.
“Eis o quão foi rápido. Kevin começou a tocar aquela batida de bossa nova, entrei com o rife, Dave seguiu com sua linha de baixo e Pete começou a cantar. Meu rife tem esses acordes mutantes – eles nem são acordes menores -, mas está enraizado em uma música antiga de Gary Glitter, com velocidade menor. Eu não percebi isso quando estava tocando”, disse Ash.
“Na verdade”, lembrou David J, “não conversamos sobre o que estávamos fazendo. Daniel começou a arranhar o violão, Kevin começou seu ritmo e havia essa atmosfera se formando. Eu entrei com esses acordes descendentes e Peter estava rondando pra cima e pra baixo, lentamente, como um leopardo”.
“Os vocais entram cerca de meia hora depois de todo o resto. Esses dois versos são como ‘quem é esse que tá falando?’ Havia um aspecto oracular nisso. Essa voz tinha que vir do espírito daquele personagem bonito, erótico e enigmático. Foi assim que o vampiro trabalhou em termos de público. Aquele monstro em particular do período de Hollywood era realmente muito bonito”, ressaltou Murphy.
Ash, então, lembrou quando terminaram: “pronto, é isso! Foi mágico…”.
“A gente sabia que tinha algo especial”, recordou Haskins. “Acho que a gente virou uns pros outros e ‘não vamos tocar de novo, vamos esperar entrar no estúdio’. A gente estava com medo de fazer de novo e perder aquela magia”.
A banda, então, agendou o Beck Studio imediatamente.
“O que foi maravilhoso foi que era mais uma sala de estar típica da década de 1970 do que um estúdio”, disse Ash. “Era como uma extensão da casa do (engenheiro) Derek Tompkins e eu adorei por esse motivo. Tinha um certo cheiro caseiro, o que eu chamaria de aconchegante”.
Derek Tompkins era um cinquentão, um tanto mais velho do que os integrantes da banda. Ash tinha 22 anos, assim como Murphy, que é exatamente vinte dias mais velho que o guitarrista, e David J, que nasceu dois meses anos. Só Haskins tinha 19 anos. Nenhum dele havia nascido quando Bela Lugosi morreu.
Tompkins acabou virando da “família Bauhaus” depois, trabalhando inclusive em todos os discos do Love & Rockets, a banda que surgiu em 1985 das cinzas do Bauhaus, que acabou em 1983; e do Tones On Tail, banda de David J e Haskins, que existiu entre 1982 e 1984. Além, claro dos discos-solo de David J.
“Ele sabia como usar a psicologia, tirar o melhor da gente”, disse Haskins. “Amamos aquele cara”.
Tompkins morreu em novembro de 2013, aos 87 anos.
Era a primeira sessão de estúdio da banda, que, segundo Murphy, custou onze libras. Fizeram quatro músicas. “Bela Lugosi’s Dead” foi numa tomada só.
No lado B, tinha “Boys” e “Dark Entries”.
“Foi eletrizante”, recordou-se David J. “Não foi apenas a primeira vez que Pete cantou em um microfone num estúdio, como fazer ‘Bela Lugosi’s Dead’ na primeira tomada significa que o que você ouve naquele disco é a primeira coisa que gravamos (na nossa história)”.
Ash se recorda que Peter Murphy estava resfriado naquele dia, o que “adicionou uma textura à sua voz”.
“Acho que os deuses estavam conosco naquele dia”, exagerou pra Uncut.
“Foi incrível. Quando ouvimos a música inteira, parecia incrível. Eu estava “uau!” durante a longa introdução instrumental e, novamente, quando minha voz entrou. Era como ‘eu quero ele!'”, entusiasmou-se Murphy, mostrando que aquelas memórias ainda estavam bem vivas no sangue dos integrantes do Bauhaus durante a entrevista.
Não era pra menos. Aquele momento, naquele estúdio, com aquela música, ia mudar a vida dos quatro pra sempre.
“Estávamos todos tomando uma xícara de chá depois e eu fui ao banheiro, onde havia o menor alto-falante que você já viu, preso na parede. E ‘Bela Lugosi’s Dead’ tocava através desse minúsculo alto-falante de rádio de duas polegadas e ainda parecia brilhante. Lembro-me de pensar: ‘Essa coisa é a porra de um sucesso!'”, lembrou Ash.
Mas não foi um “big hit”. Todas as gravadoras ouviram, gostaram, mas decretaram que “isso é o tipo de coisa que eu ouço em casa, mas não é comercial”.
Ou, como é de praxe na visão dessas pessoas: “é um pouco longa, podemos editar pras uns três minutos de duração?”.
“Até a Beggars Banquet recusou, o que é irônico, já que acabou sendo nossa gravadora”, disse Haskins.
Foram tantas recusas em grandes selos e gravadoras que David J disse que o Bauhaus chegou a duvidar deles mesmos.
Quando Pete Stennett, da Small Wonder, disse que queria lançar, a banda perguntou: “você acha muito longa?”. Ele, então, comparou com “Sister Ray”, do Velvet Underground (que tem dezessete minutos e meio) e sentenciou: “você quer ouvir cada segundo disso, não importa o quão longo seja”.
A Uncut, claro, falou com Stennett: “não dei a mínima pra duração da música. Muitas vezes, especialmente naqueles dias, você pensava que ninguém iria tocar no rádio, com exceção de John Peel. Tudo o que lançamos me senti confiante e confortável. E quando ouvi ‘Bela Lugosi’s Dead’, pensei: ‘Merda, isso é bom’. Eu queria compartilhar”.
“Foi lindamente produzido e havia essa sensação de reggae. Eles não tocavam juntos há mais de cinco minutos, mas estavam muito tensos. Eu tinha ‘Bela Lugosi’s Dead’ impressa em semanas, mas porque decidi lançar os primeiros cinco mil em vinil branco nunca saberei”, lembrou.
Murphy contou, então, que assim que tiveram suas cópias em mãos, os quatro rumaram pra BBC: “fomos até a recepção, passando pelo Motörhead na saída e dissemos ‘olá, somos o Bauhaus e somos amigos de John Peel. Gostaríamos de subir, por favor’. De alguma forma, fomos autorizados a subir lá e colocamos o disco na frente dele. Depois que todos nos apresentamos, ele disse no ar: ‘temos o Bauhaus no estúdio, eles são de Northampton e lançam um novo single chamado ‘Bela Lugosi’s Dead’. São nove minutos e meio de duração e provavelmente será a primeira e a última vez que tocarei isso’. Então, saímos e descemos pra ouvi-lo no carro. Aparentemente, a central telefônica da BBC estava cheia de ouvintes querendo que ele tocasse novamente”.
Ser tocado por John Peel era a chave que abria um bocado de portas. Logo, a banda foi chamada pra fazer uma sessão com ele, na rádio. As Peel Sessions ainda são famosíssimas, mesmo após a morte dele, em 2004.
“A partir daí”, contou David J, “conseguimos uma residência em um clube em Londres chamado Billy’s, que mais tarde se tornou o Batcave. Ian Curtis foi lá uma noite e nos disse o quanto amava ‘Bela Lugosi’s Dead’, o que foi surpreendente pra nós”.
David J: “não há nada igual, realmente. E acho que há algo muito puro nessa música. Tem uma atmosfera muito especial”.
Daniel Ash, finalmente, decretou: “o Bauhaus nunca cedeu à imprensa. Nós éramos filhos da puta arrogantes. Você tinha que ser, pra se destacar. Nós realmente pensávamos que éramos fodidamente brilhantes. E nós éramos”.