BRATISLAVA – FOGO

“Não acho que o mundo é cinzento / cê tinha que ver o que passa aqui dentro”, canta Victor Meira, em “Sonhando”, do terceiro disco do Bratislava, “Fogo”, lançado em 18 de junho de 2017, de maneira independente.

Os versos são simbólicos da direção que a banda toma na obra, após “Carne” (de 2012, veja aqui) e “Um Pouco Mais De Silêncio” (de 2015, veja aqui): ao invés do silêncio, vem a exposição da raiva, da insatisfação e, especificamente falando do autor das letras, Meira, da proximidade com a depressão, doença que afeta, segundo a Organização Mundial da Saúde, 4,4% da população mundial (leia aqui).

“Acho importante buscar a universalidade nos nossos calabouços mais profundos, no que a gente julga ser mais idiossincrático… São peculiaridades, paranoias, fraquezas, vergonhas. ‘Sonhando’ é uma pequena paranoia de quem é introvertido e, por isso, é tido como depressivo”, diz, em conversa com o Floga-se. “Fogo” acaba sendo um diário pra ele.

“Já passei por pequenos períodos bem pesados, e sinto volta e meia que caminho perto de um precipício, o precipício sendo a depressão, mas tenho amigos que já entraram em depressões longas e bem pesadas. Nunca vivi algo assim, parecido com o que eles viveram”, conta.

As letras servem como desabafo, como “Amor De Chumbo”, que diz “eu sempre passo reto / bicho cego e burro que sou / sou torto por dentro / meu afeto é sulfúrico ou acaba sendo / e nesse intento eu te afeto e me arrependo em silêncio”; ou em “Trancado”, que versa “do que é feita essa parede que não se vê / de escuro como a noite, como a noite come meu couro / cercada de todas as proteções / me prende aqui fora, prenhe dos seus dragões”; ou ainda em “Dança De Doido”, “meu trabalho é te livrar daqui / te afastar hoje, agora ou logo mais / desse chão duro, desse lugar que / mesmo iluminado permanece escuro”.

Segundo Meira, a temática central de “Fogo”, o disco, é o sonho: “tema presente em ‘Sonhando’, em ‘Trancado’, em ‘Dança De Doido’, e em pequenas frestas de outras músicas. ‘Fala Prescindível’ consolida e centraliza isso, com a ideia da intersecção de sonhos”.

Mais do que isso, “Fogo” é o oposto do disco anterior, “Um Pouco Mais De Silêncio”. Enquanto em 2015, a banda sossegadamente se escondia atrás do silêncio, aqui o grito e a explosão são marcantes. Não há motivos pra se esconder. Sonhar é permitido, trazer à realidade é essencial.

Assim, a mudança sonora é pontual, porém evidente. As guitarras rascantes e mais sujas estão presentes como nunca, transformando aquela incômoda sensação de MPB-bunda-mole numa ideia de som minimamente agressivo e consistente, sem ser, entretanto, uma ruptura drástica.

“A guitarra veio pra um plano mais frontal, se comparar com o ‘Um Pouco Mais De Silêncio’. Nele, compus muita coisa no piano e gravei várias bases nas teclas, deixando a guitarra como arranjo, como um quarto instrumento. Já no ‘Fogo’, eu aboli pianos e mesmo os synths estão mais pontuais, menos presentes também. Guitarra fazendo bases, arpejos, solos…”, diz Meira.

“Até aqui, considero o meu processo de escrever as letras um pouco acidental. Puxava recortes de poemas ou sonhos que eu tinha, testava encaixes, trabalhava muito os versos pra que montassem uma história coesa ou um cenário fantástico, que corresse junto com a paisagem sugerida pelo instrumental. Em ‘Fogo’, decidi trabalhar de outra forma. Decidi trabalhar com mensagens mais claras, com sentimentos ao invés de paisagens e sugestões visuais. Pra comunicar isso no palco eu não podia ficar atrás da minha ‘fortaleza’ ali de piano e synth, paradinho no palco com o mic fixo. Eu sabia que era preciso andar, gesticular, interpretar, olhar pra galera. Então, parte de uma intenção das composições, que acaba descambando em entrega no palco. O instrumento é um baita escudo, e eu queria me desfazer do escudo, ficar mais vulnerável e solto pra poder comunicar esses sentimentos”.

“Então, apesar de ter composto quase tudo no piano novamente – algumas continuo compondo no baixo – passei pro Xande (Alexandre Meira) as bases e elas foram gravadas na guitarra. No palco, atualmente tô só com o synth, e nem toco em todas as músicas… A sonoridade em boa parte do show é de power trio“, completa.

“Fala Prescindível” é o maior indicativo do que a banda pode entregar em termos de ousadia, criatividade e liberdade. Não há letra fixa. Meira declama uma história que pode variar de show pra show, pode ser mais longa, mais intensa ou mais detalhada, depende do dia. É uma música livre: “(a letra) precisa ser uma história viva. Nos shows, vou sempre recontá-la como me vier naquele momento, às vezes mais longo, às vezes mais curto, com mais ou menos detalhes. Exatamente como o instrumental, sempre improvisado e seguindo os fluxos da narrativa. É um storytelling, não um poema ou letra”.

Enquanto Meira discorre seu spoken word, atrás temos guitarra, baixo e bateria como numa sessão de improviso e noise. Não é novidade, e quem acompanha o trabalho de Vitor Brauer, da Lupe De Lupe, pra falar do mais recente baluarte da técnica, vai se identificar. Mas é sem dúvida uma ousadia no universo da Bratislava.

Já a faixa-título é pura explosão. Segundo Meira, ela tem duas partes diferentes. A primeira vai até “eliminar sombras / entender as coisas / ser fontes de luz” e é sim um desabafo: “versos como ‘que o mundo tem mais aventureiros do que aventuras / e o tesouro escondido persiste sempre prometido’ são bem da realidade nossa, como banda, como artista. Em outras palavras, pode-se ler ‘tem muito mais banda do que público, ou do que festivais, e o tal tesouro dessa jornada continua sempre como alvo, como possibilidade no próximo passo’. O tom vai ganhando uma cor meio niilista, mas meio otimista também, em versos como ‘a sensação de que nada faz sentido me assalta e não me intimida / na real isso só me motiva’. Ou seja, a sensação de ficar sem chão funciona como fonte de inspiração e como papel em branco pra criação de propósitos e significados particulares, e otimista pela atitude e resolução, como ‘entre um algarismo e outro / há um precipício / nos resta criar pontes / e do fim ao início / eliminar sombras / entender as coisas / ser fontes de luz'”.

Ele continua: “gosto bastante dessa imagem, de entender as relações pessoais mais ou menos como a relação entre um número e outro… O 1 está próximo ao 2, mas se você considerar números quebrados entre um e outro, a distância entre os dois é infinita. E aí se posicionar, enquanto artista, no papel de criar pontes entre os algarismos… A segunda parte da música, depois de ‘aahhhhhhh eu tô falando com o fogo’, desloco o discurso e passo pra uma auto-análise de caráter social, me coloco no meu lugar de fala, ou seja, homem, branco, hetero cis, e discorro sobre a importância e relevância do meu discurso nos dias de hoje”.

A música é tão intensa, Meira ofegante distribuindo versos e desabafos – “essas palavras têm poder”! – que a gravação teve que ser deixada por último. Em estúdio, “demos aquela queimada com vodca, gravei com as veias saltadas, vermelhão”, pra exaltar o esforço que é expor o que te incomoda.

“Essas palavras têm poder”: esse verso poderia ser o resumo do disco, pra se “ver o que passa aqui dentro”. O mundo não é cinzento, ou fica menos cinzento assim.

“Fogo” ainda traz uma faixa que extrapola as angústias pessoais pra focar no social. “Enterro” versa sobre o crime ambiental ocorrido em Mariana, Minas Gerais, em 2015. Crime sem punições, não só ambiental, com mortes e famílias perdendo tudo. “Foi uma música escrita por empatia, pela comoção interna que senti quando soube do ocorrido em Mariana. É uma história que não fala sobre um relacionamento pessoal meu, mas da mesma maneira é sobre perda, sobre indignação e injustiça, sobre revolta, todos sentimentos bem humanos, talvez apenas entre algarismos mais distantes uns dos outros”.

Visto assim, ela pode destoar da temática de todas as outras do disco, mas se aproxima por ser um objeto de indignação de todos. Essas palavras deveriam ter poder. Mas a gente sabe que não terão. Não nesse país da impunidade. Não numa sociedade onde crimes como esse revelam “o valor que uma vida tem nesse país”.

A indignação – no âmbito social ou no fundo das angústias do coração – é o que move as pessoas. Em silêncio, você pira e faz um mundo cinzento. Gritando, você tira tudo de dentro.

A Bratislava é Victor Meira (vocal e sintetizador), Alexandre Meira (guitarra), Sandro Cobeleanschi (baixo) e Lucas Felipe Franco (bateria).

“Fogo” tem oito faixas produzidas por Hugo Silva (pós-produção de guitarras por Lucas Lippaus), e mixagem e masterização de Adam Matschulat (que compõe com Victor Meira o Godasadog).

O disco foi gravado no Family Mob Studios, em São Paulo, com exceção dos sintetizadores, que foram gravados no Estúdio Veredas e nos estúdios caseiros de Ian Fonseca (Supercolisor) e Lucas Dimitri (Formafluida).

1. Enterro (participação de Gustavo Bertoni)
2. Sonhando
3. Amar De Chumbo
4. Trancado
5. Céu De Pedra
6. Dança De Doido (participação de Aloizio)
7. Fala Prescindível
8. Fogo (clique aqui pra ver o vídeo)

Foto que abre o artigo: Daniel Moura

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