BRIGITTE FONTAINE: UM SHOW NO OLYMPIA, 200 DIAS DEPOIS

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Enquanto o mundo se pergunta quando poderemos ver um espetáculo musical ao vivo nos moldes a que estávamos acostumados, Brigitte Fontaine e sua música inquieta e vanguardista nos mostraram que talvez isso vá demorar um bocado, mas não necessariamente precisa deixar de existir.

Duzentos dias depois, em 6 de setembro de 2020, ela se apresentou no famoso Olympia, em Paris, fechado desde 11 de março, por conta da pandemia de Covid-19.

A França, com quase quatrocentos mil casos confirmados e mais de trinta mil mortos, sofreu como não sofria desde a Segunda Guerra Mundial. Nem mesmo os ataques de 13 de novembro de 2015, quando oito terroristas ligados ao Estado Islâmico, com fuzis AK-47, metralhadoras e bombas mataram cento e vinte nove pessoas em seis pontos diferentes da cidade, foram tão cruéis. Outras trezentas e cinquenta ficaram feridas.

São números arrebatadores, mas não chegam aos pés do pior dia de Covid-19 no país.

Cerrar as portas do Olympia teve uma simbologia forte. A vida noturna em Paris, conhecida mundialmente, estava cancelada por um vírus. Não foi preciso portar armas ou discursos febris.

Fontaine, de 81 anos (ela é de 1939), tem um jeitão Rita Lee de ser, mas está longe do apelo pop da nossa cantora extrovertida. Seu disco mais recente, “Terre Nueve”, lançado em janeiro de 2020, é o primeiro em sete anos (depois de “J’ai L’honneur D’être”, de 2013), e seu lançamento estava marcado para 29 de março, no próprio Olympia.

Ela recebeu o público na configuração “sentada e mascarada”, com distâncias respeitadas, procedimentos de saída impostos. Um “exército de organizadores”, segundo o Le Monde, equipados com rolos de fita, neutralizou os pontos intermediários.

Foram mil e trezentas pessoas admitidas, enquanto a icônica sala pode acomodar duas mil e oitocentas na versão “em pé”.

“No centro do palco está um trono, ou melhor, uma notável poltrona de proporções extravagantes”, escreve o Le Monde.

“Uma voz de outro lugar nos lembra das instruções. Não está brincando. Nós continuamos assim”, diz o relato.

Em casas noturnas no Brasil, os avisos sonoros pré-apresentação são comuns: não fumar, as rotas de fuga, os extintores de incêndio, luzes de emergência que se acenderão ao menor problema. Ninguém presta muita atenção.

No Olympia, porém, as pessoas estavam mergulhadas em um momento que pode ser tido como “histórico” e prestaram a devida atenção aos avisos.

Segundo o Paris Match, “quando soa o anúncio usual da proibição de fumar e fotografar, o Olympia aplaude de pé a voz gravada. Por longos minutos, a emoção é palpável na plateia”.

“Todos parecem aliviados por estar lá, para finalmente encontrar a música ao vivo. Além disso, nenhum espectador ousa tirar a máscara quando está sentado”, segue. Bem, estamos falando de Paris e não da Vila Olímpia, Itaim ou Barra da Tijuca. Há um certo respeito social.

Os parisienses são disciplinados, como se um obstáculo aos novos regulamentos pudesse privá-los de viver novamente aquele momento.

Depois, ao fundo, o som de um violino e uma percussão chinesa. “Longa ovação”, descreve o Le Monde. “Por fim, ‘eles’ entram, ele do lado do jardim, ela do lado do pátio: Yan Péchin, o fiel violonista com quem se apresenta em duo, e ela, Brigitte Fontaine. Ela, pela primeira vez em quatorze anos, é uma pena, sem máscara. Nem máscara egípcia, nem máscara celta – sem máscara”.

Nem mesmo sua máscara com o emblema dos Rolling Stones, que ela admitiu ter e acha “linda”.

O Le Parisien chamou de “uma reabertura histórica”.

Ela admitiu ao telefone, um dia antes da apresentação: “é um pouco impressionante. É uma reabertura histórica. Parece que mesmo durante a ocupação nazista, o salão não havia fechado”.

O momento é perfeito pra uma música em especial do seu novo álbum. “Vendetta” é meio como um desabafo pro momento. Ela tocou a música na reta final, pra delírio dos presentes já conhecedores do trabalho.

Lá em 10 de março de 2020, um dia antes do Olympia fechar, quando existia um mundo sem máscaras ou distanciamento social, Van Morrison ofereceu dois shows muito diferentes para receber os dois mil espectadores que tinham lugares reservados.

E então Olympia apagou as luzes. E o som.

Agora, com Fontaine, parece uma vingança mesmo. Os seres humanos ainda possuem o controle. Ou acham que possuem. O vírus está por aí circulando, enquanto as mentes brilhantes buscam uma vacina eficiente no menor tempo e risco possíveis.

Por ora, fazemos o que dá pra fazer.

Sim, Brigitte Fontaine é uma rainha. Os brasileiros pouco a conhecem, infelizmente, mas sua música é atordoante e o trono no centro do palco é bastante apropriado. Ao lado dela, como dito, um único músico, Yan Péchin.

Nem no palco, há aglomerações.

“A artista tem um talento especial para levar o público para o lado errado”, brinca o Paris Match. “Não conte com ela pra expressar o quanto está feliz por estar ali. Não, a Senhora não gosta de discursos longos ou frases excessivamente bem feitas. Então, aqui está “Brigitte” para começar, canção de 71, que define novamente e sempre sua personagem (a música está em “Brigitte Fontaine”, disco de 1972)”.

“Fontaine gira em torno de seu trono”, segue o Paris Match em sua resenho do espetáculo. “Então, ela senta pra lá ficar até o fim do show”.

Seu “Terre Neuve” é um trabalho sublime. Pegue o que Elza Soares vem fazendo nos seus mais recentes trabalhos e é possível entender que os jovens estão cada vez mais longe de querer mudar o mundo. Estagnaram. Os jovens hoje se preocupam em ser aceitos e não em confrontar.

Talvez tirando so rappers, normalmente artistas periféricos dando a real de um mundo que a intelectualidade acha bonito conhecer, os jovens trocaram as guitarras e outros instrumentos por celulares ultramodernos (que duram um ano) e redes sociais com vídeos curtos e textos cada vez mais curtos.

Não é de admirar que o rock, ou a música feita por guitarras, tenha sucumbido ao descartável. E que gente como Rita Lee, Elza Soares e Brigitte Fontaine, com pelo menos oito décadas nas costas, tenha que fazer o serviço sujo.

Mesmo assim, a pandemia condenou “Terre Neuve” à pouca exposição.

“Portanto, esta noite, durante a pequena hora do concerto que se segue, Fontaine está trabalhando e se esforçando pra trazê-lo à vida”, diz o Paris Match.

“God Go To Hell” vem na sequência, iluminada por fortes luzes vermelhas, que permitem ao público apreciar ela entoando em voz alta “ao diabo de deus”.

Ela não confronta apenas deus. “Les Beaux Animaux” zomba dos machos, com guitarra cortante e um vocal em desprezo à sociedade machista e tals.

“Se o repertório de Brigitte Fontaine é fascinante, é porque ela sempre soube e quis caminhar pra outros sons, outras culturas que não as da canção da margem esquerda de seus primórdios”, lembra o Paris Match.

Ela não quer perder tempo no palco com fritações e Péchin acaba ficando limitado. Alguém de 81 anos, em meio a uma pandemia que infectou trinta milhões de pessoas em todo o mundo e matou quase um milhão, sabe que está correndo risco pelo simples fato de caminhar no Jardin du Luxembourg, quanto mais por exercer sua profissão, sua arte.

A plateia parece saber disso e respeita.

“Então, entre duas piadas sobre sua possível morte, ela manda ‘Vendetta’ que convida à luta armada contra o sexo forte, onde desta vez Péchin brilha por seu ímpeto. Mas, em vez de terminar com um chamado à revolução, Brigitte Fontaine conclui sua turnê musical com uma variação brilhante de vida, morte e poesia ‘Parlons D’autre Chose'”, analisa o Paris Match.

“É inteligente, bem acabado, muito engraçado. Brigitte Fontaine está completamente ancorada no presente. Portanto, desculpamos a estranheza musical de um concerto que poderia ter sido mais ambicioso. E sorrimos, por trás de nossas máscaras, com a atuação como nenhuma outra de uma grande dama da música”, encerra.

Enquanto os parisienses buscam um equilíbrio entre a morte que os cerca e a vida que a cidade exala, eles vão tentando construir um mundo dentro desse “depois”. Não há um “novo normal”, há um perigo à espreita.

O Olympia retomar suas atividades tão importantes pra sobrevivência mental com uma artista de 81 anos, exuberante e de envergadura de uma Torre Eiffel, é tão simbólico quando foi o seu fechamento, em março.

Sim, os humanos estão ainda no controle. Mas um tanto de humildade e respeito nunca é demais.

A foto que abre o artigo é de Pierre Hennequin, Paris Match.

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