A tecnologia é uma forma de se buscar a perfeição: computadores, processos, robôs, bits e afins tendem a ser mais eficazes, isentos de erros, ágeis, incansáveis e obedientes. Isso sem o fator humano. Mas não há equação imaginável sem o fator humano. Pessoas criam, pessoas operam, pessoas interpretam, pessoas deturpam dados, máquinas, processos e são pessoas que levam a tecnologia a falhar. Nós somos o próprio vírus dessa criação.
Numa sociedade onde robôs pudessem fazer todo o trabalho pesado – e as pessoas não tivessem mais nada a operar – o sonho seria de pessoas mais felizes, fazendo aquilo que realmente importa, cuidando daqueles que amam e equilibrando a balança da desigualdade. Mas duvida-se disso, bruscamente (alguém pensou em “Blade Runner”?). O homem não é capaz de operar suas máquinas com a perfeição que lhes é idealizada – porque ele é a máquina que cria, ele é o processo que idealiza, ele é a invenção que tira do papel. Ele está ali, espelhado, incluído, deformando.
Cadu Tenório não concorda exatamente com essa visão, embora trace um paralelo ainda mais interessante. No seu disco “Corrupted Data蝶とクジラ”, lançado em 15 de agosto de 2018, sucedendo o intrigante e duplo “Rimming Compilation” (leia a resenha e ouça o disco aqui), de 2016, a relação entre homem e tecnologia é mais intrincada: “tudo no disco tende a criar um fio e esse fio é como uma timeline com conteúdos variados pipocando. Digamos que os dados são corrompidos por mim e pelas pessoas que entram em contato com o conteúdo porque a gente acrescenta nossas experiências ali. Quando baixamos algo que vem corrompido imagino que seja pela falta ou defeito às vezes em alguns detalhes do todo. É como a linha de pensamento que a gente acha por aí que sugere que (o desafio d)a baleia azul, por exemplo, talvez seja um grande hoax, uma creepypasta. Você encontra sites de noticias gringos que dizem que talvez seja um culpado fácil pra mascarar um problema maior. Pensando nisso tudo e na narrativa fragmentada, esse nome veio à cabeça e é seguido por ‘borboletas e baleias’ (Chō to kujira – 蝶とクジラ), que vem da fala que abre o disco, que por sua vez veio de um dos sites que noticiou os ‘grupos de suicídio’ do VK (rede social russa)”.
A cabeça de Cadu Tenório dá voltas incalculáveis porque é assim que ela funciona. A ponto de, depois de um disco duplo, ficar dois anos mergulhado na produção de uma obra de mais de duas horas (são trinta e duas canções/temas), que se completa com um misterioso e intrigante site, que ele pessoalmente se debruçou pra desenvolver e pensar, junto com Raul Luna (clique aqui pra ver o site).
“Queria que o disco funcionasse mesmo como narrativa”, diz Cadu, num bate-papo com o Floga-se. “Os textos fragmentados entrando no seu ouvido, costurados pela ordem pensada das faixas. De primeira, você tenta ignorar os textos mas eles vão começando a ficar claros em alguns pontos, depois você vai prestar atenção neles, talvez perceber que tem mais de um sendo falado ao mesmo tempo, sacar que se tirar um dos lados do fone vai ficar mais claro. E vai te dar um valor de replay, e você talvez perceba o peso emocional que a música seguinte vai ter ou que anterior teve”.
Ele tira do foco “Blade Runner” pra colocar “Neuromancer” (obra de William Gibson, de 1984). Enquanto o primeiro mostra uma sociedade destruída pela própria incapacidade de comunicar entre si, sem saber direito quem é robô e quem não é, Gibson mostra a busca por se encontrar no digital, como se não houvesse alternativa. “A coisa da comunicação, do encontrar uma vida no digital, é mais explorada no ‘Neuromancer’; o disco é meio que uma caixa-preta da vida digital de um eu-lírico (…), a vida no ambiente digital, na não-materialidade”.
O curioso do clima criado por Cadu no disco, que parece uma trilha-sonora de um longa-metragem, é que as faixas funcionam como um cluster e todos os clusteres se juntam pra formar um HD – e discos rígidos são coisas palpáveis, eles existem como eu e você e não têm nada de futuristas ou imaginários, uma dualidade que ainda se sustenta em pleno século XXI (o nosso fetiche pelo futurismo é assim). A construção da obra pro ouvinte é como se ele estivesse dentro dela, sendo bombardeado por milhares de histórias e assuntos e temas diversos que se torna impossível uma agilidade de compreensão, a não ser que ela se dê a partir do próprio computador – mais ágil e eficiente, ele consegue, você não.
“Sim, essa é, de forma bem objetiva, a intenção do todo. O que é legal, a ideia de HD corrompido, dados corrompidos foi basicamente essa. Essa dualidade esteve presente em ideia. Porém, o eu-lírico não é consciente disso, ele é um apanhado de memórias digitalizadas, ele não tem consciência de que está contido em um HD que cabe na palma da mão. Pra ele, aquilo é o mundo, a liberdade de dizer o que quer e o que não pode dizer pra ninguém, de sentir o que acha que precisa sentir. Talvez eu me coloque frente a isso tudo com uma visão um pouco mais ‘afundada’ nessa lama. O que eu consigo ver depois de passar dois anos sem usar um telefone celular é que a vida real já é bem mais que 50% tomada pela digital. Não é mais uma parcela pequena. A gente pode viver totalmente alheio a ela, sim. Tudo passa rápido nela, sim. Mas a intensidade não pode ser neglicenciada. Acho que adentrar o universo do ‘Corrupted Data’ como um todo é o fetiche de adentrar os segredos sujos de alguém, a versão atualizada da nossa curiosidade em acompanhar tragédias, esticar o pescoço pra olhar as batidas de carro e os cadáveres pela janela do ônibus”, diz Cadu.
Depois do brilhante (sem exageros) “Anganga”, trabalho com Juçara Marçal (que também participa de “Corrupted Data”), Cadu se volta a uma observação cara que ele tem da sociedade: a falta de verossimilhança do ser humano, tudo o que o homem pode criar de bom e ele mesmo desgraçar o que era pra ser perfeito. A perfeição é inalcançável. Em “Rimming Compilation”, era o sexo. Aqui, são as vidas, ou pedaços de nossas existências.
“É de certa forma uma continuidade do ‘Rimming Compilation’, sim, uma extensão. Acho que meu trabalho como um todo é pautado nessa reflexão acerca dos excessos, mas eu tento não colocar esse juízo de valor. No sentido de que eu não sei se era pra ser ótimo ou se isso já era visto lá atrás como uma forma de dominação muito mais eficaz do que pensamos. A gente só engoliu a ideia de liberdade que foi vendida (com a Internet e as redes sociais). Propaganda, fake news, não tem nenhuma novidade aí”, reflete.
“O HD é o HD e nós somos nós, em algum ponto nós ficamos no HD, quando morrermos vamos ficar lá, Lembra dos Orkuts de gente morta? O Facebook Memorial também está aí. Acho que a gente tá nesse processo de representação, nada nos representa melhor do que uma tela e nessa tela é que a gente constrói o personagem que a gente gostaria de ser, que gostaríamos que os outros vissem. Tudo pode ser deletado, curtido, descurtido. Não tem como negar que pra maioria das pessoas nós somos a tela – ou o ‘HD’ pra continuar no termo que estamos usando. Somo as fotos das nossas viagens, os sorrisos em família… É isso que conta”.
E vai mais fundo: “desde que o mundo é mundo, a ficção escrita funciona como um dos pilares da sociedade que conhecemos, rege a vida das pessoas, mudam o jeito de pensar, influenciam seus hábitos, movem de diversas formas a roda. Positivamente ou negativamente. (…) Se a baleia azul for real, a culpa pras eventuais mortes é da baleia azul? É da pessoa que escreveu essa história? Ou de alguém que sugeriu a existência de um jogo assim? Que problemas a gente anda negligenciando nas nossas vidas? O que estamos deixando de olhar pra continuar vidrados na tela e nas fotos sorrindo? Acho que o buraco é muito mais embaixo, mas não estou interessado em divulgar o disco fazendo campanha sobre saúde mental (risos)”.
Cadu concorda que “Corrupted Data” é o seu trabalho mais melancólico. Os climas estão mais presentes. Os silêncios e ruídos, mais raros. As palavras estão voltadas a histórias que o ouvinte deverá descobrir e redescobrir por conta própria no site. “Tem um arco dramático que vai junto dos textos. As músicas começam mais curtas e vão ficando mais longas e introspectivas, ao passo que as partes em textos também vão ficando mais longas e de certa forma expositivas. Como uma espiral sendo descida até o fundo. Os textos são o depósito digital, o HD, tentando se expressar, ele tenta se expressar a partir da música também. Ocasionalmente, um pouco de humanidade (em forma de vozes) vai tentar te puxar de volta desse fundo, conversar com você. E tem um fundo de esperança, porque eu almejo finais felizes”.
Ele continua: “os textos são uma espécie de colagem, de reportagens sobre certas obsessões do eu-lírico até textos pessoais, do tipo que ele guarda em drafts de e-mail. Rolam até poemas. A ideia, como falei, é ter parte restaurada do HD de uma única pessoa exposta, como uma timeline“.
Com o disco-site, Cadu espera provocar um pouco mais as pessoas. Elas precisam se desafiar um tanto mais, nem que seja usando o Google pra descobrir o que os títulos em japonês querem dizer, o que cada título misterioso tem a esconder. As referências do artista estão todas ali, os títulos entregam um bocado. É sair do ponto estático de esperar pra receber informação e ir atrás. A música de hoje é trivial demais, as pessoas querem tudo mastigado, esperam inclusive (e ainda mais que trinta anos atrás, quando as rádios indicavam o caminho e construíam carreiras) que lhes digam o que pode ser sucesso ou o que não vale a pena – desde a música mainstream até o mais periférico dos funks proibidões, o comportamento de manada impede desarrochar essa lógica de inércia.
Com “Corrupted Data”, Cadu Tenório mostra que provocação se consegue além do discurso – o político da lacração, ou do amor fácil ou frustrado: se consegue na forma. Nesse sentido, Cadu deixou sua impressão vivíssima na linha do tempo da música torta e subterrânea brasileira.
O disco foi escrito, executado e produzido inteiramente por Cadu Tenório, com masterização de Emygdio Costa. Os textos foram editados por Henrique Justini, com produção e arte do site por Raul Luna.
A obra pode ser baixada no esquema pague-quanto-quiser no Bandcamp do artista, clicando aqui.
01. intr200303e00r0
02. 星川 敏樹[Good Vibrations]
03. 田中 愛子
04. 113jjjfilr0003
05. To Breathe My Last Floating In A Sea Of Blood, My Face Buried In My Own Intestines
06. 000000001222.ok
07. I’m Going To Crush This Rotten World With My Own Two Hands (clique aqui pra ver o vídeo)
08. モダ チサ.not
09. Jade
10. pod042/153
11. Being Alive Is Pretty Much A Constant Stream Of Embarrassment (clique aqui pra ver o vídeo)
12. 000000|\/|
13. タロウ
14. Cosmo Health Center Cult
15. b4tt41//3333
16. Marlowe & Spade ポリスノーツ
17. tx0001
18. 瑞城 ありす(1)
19. 南条 幸[Milky Way]
20. 01d\/3l
21. Truth Is A Mystery, Unraveled By The Candles’ Flames
22. 瑞城 ありす
23. 4d\/\4na//e02
24. Pelagea Noir Roleplay
25. 3n3m3/\22iiiu
26. a2|2b
27. タロウ(1)
28. 蝶とクジラ
29. .,.,.,.:
30. 岩倉 ミホ
31. 虹ヶ原
32. 3\/\|0