“Armado até os dentes / De possibilidades”. O caos gerado pelo Cãos em seu primeiro e poderoso trabalho homônimo (ouça aqui), lançado em 2016 e na lista dos melhores do ano aqui do site, ampliou-se justamente por conta das possibilidades.
Ariel Teske, Guilherme Akio, Gustavo Paim e Michael “Mika” Wilseque começam com uma poesia sussurrante, na “Intro (Olho Mágico)”, distorcida pela sax de Akio, pra então descer a porrada literalmente em “Armado Até Os Dentes” e em “Cadáver Branco”. Punk direto e cru, expurgo de uma imagem de acuação pela violência. Mas não só. É a morte da Justiça, é a capitulação da sociedade pela autodestruição.
A música do Cãos, que, repito, se vale do caos, tenta um tanto de poesia, acena com um baixo esculpido ao lado de guitarras secundárias a partir de “Bala Perdida” e da vultosa “Mundo De Vidro”, e vai moldando um bem-vindo leque de possibilidades.
É que o Cãos domesticado aqui parece ter se entregue. Tenta entender mas, ao falhar, desistiu; embora desistir não seja exatamente a decisão definitiva. “Invista / O quanto antes / Em uma melhor versão de você mesmo / Não vai ser boa o bastante / Mundo de vidro / Eu pago pelos meus direitos e deveres / Entusiasmado pela possibilidade / De me tornar um novo homem / Eu vendi a minha alma ao diabo”, cantam um tanto desolados em “Mundo De Vidro”, a mais intensa do disco.
“Onze” questiona “Aonde você vai se esconder / No dia em que você mesmo for o obstáculo?”, de modo que é a maturidade que indica que a gente, cada um de nós, também faz parte do problema.
Viver nessa sociedade – especialmente a brasileira – é um exercício constante de repaginação ética. Não é fácil se acomodar no caos. “Tanto Faz”, pessimista e novamente com linhas de aparente desistência, um tanto que engana o receptor. As guitarras mais cortantes, impetuosas, tateando a incorreção e o conflito, abrem nova possibilidade: a luta agora é consigo mesmo, o caos está no olhar pra si.
É porque a violência caótica, como se imagina, é imprevisível. Não há resposta certa e a tentativa-e-erro a que estamos acostumados como ferramenta pra compreensão da vida se torna ineficaz. “Estrada Da Morte”, então, chega trazendo uma alternância de alívio e pancada na inevitabilidade: “Destruição / Caos / Pessoas fazendo mal umas às outras / Você está entrando / Na estrada da morte / Não há / Desaceleração possível / Apenas o incessante ir e vir / Você está inexoravelmente preso / Na estrada da morte”.
Ao final de “Domesticado”, com guitarras implorando uma solução, o Cãos está “repetindo todas as palavras / Enquanto durar a música”. A música é a solução. Pelo menos paliativamente pro quarteto, extirpando sua frustração com a mecânica da sociedade e os conflitos dentro de cada integrante.
Se não resolve o problema principal, ao menos é uma maneira de expor uma intensa indignação. Enquanto tiver gente indignada, não há como domesticar todo mundo.
As dez canções foram gravadas e mixadas por Michael Wilseque, no Estúdio Sabine, com masterização de Fernando Seixlack.
O lançamento é mais uma vez do selo curitibano Meia-Vida, em 31 de maio de 2018, com formato físico apenas em fita cassete.
01. Intro (Olho Mágico)
02. Armado Até Os Dentes
03. Cadáver Branco
04. Bala Perdida
05. Mundo De Vidro
06. Medo
07. Onze
08. Tanto Faz
09. Estrada Da Morte
10. Domesticado