Na festa de dois anos do Estúdio Fita Crepe (São Paulo), no dia 20 de fevereiro; duas pessoas do público conversando:
– Cara, foi surreal!
– Sério?
– Haha, você não lembra?
– Nada.
– Não acredito.
– …
– Aliás, ele está aqui hoje.
– Putz, vou conversar com ele…
Menos de uma semana antes, num evento de música experimental, numa venue no centrão de SP:
A última banda da noite tinha acabado de subir ao palco e alguns dos integrantes já tinham começado a tocar, meio que no aquecimento e testando os volumes dos amplificadores.
O guitarrista deixou uma garrafa de vinho ao lado da guitarra (com o volume aberto) deitada na parte da frente do palco e foi até a parte de trás onde estava o amplificador.
Todos os integrantes da banda já estavam no palco quando, sem mais nem menos, uma pessoa do público foi até a beira do palco, deu um bom gole do vinho, pegou a guitarra e começou a tocar.
Os integrantes pararam de tocar por um breve período, abaixaram a cabeça, alguns riram, o guitarrista continuou regulando o amplificador enquanto a pessoa tocava a guitarra (de modo inclusive não ruim, eu diria).
Eu estava sentado no chão ao lado de um conhecido, estrangeiro, que é um amigo próximo da banda, cuja reação foi uma sonora gargalhada, a apenas dois ou três metros da pessoa tocando a guitarra de pé no chão, em frente ao palco.
Apesar das expressões de estupor a banda recomeçou a tocar e o guitarrista foi até a frente do palco, mas não abordou a pessoa, que continuou tocando, agora com a banda; ele apenas pegou sua garrafa de vinho e voltou com ela pro amplificador.
Depois de alguns bons minutos dessa jam inusitada, cujo som estava bacana – provocando alguns aplausos e risadas de parte do público, novamente sem mais nem menos, a pessoa começou a bater a guitarra na borda do palco, primeiro de forma coreográfica e logo em seguida de forma realmente violenta, quebrando as cordas e aparentemente até tirando lascas da guitarra.
A essa altura eu já estava apreensivo, o conhecido sentado ao meu lado não mais ria, fazia comentários cujo teor eu nem conseguia entender; a feição das pessoas no público transmitia consternação, mas mesmo assim a pessoa seguiu batendo a guitarra, a banda continuou a tocar e o guitarrista nada fez.
Depois de mais algum tempo, a pessoa largou a guitarra e foi até o tecladista, este lhe deu uma olhada séria e então a pessoa acabou ficando apenas sentada ali do lado se mexendo.
O guitarrista foi à frente do palco e pegou sua guitarra (que a essa altura estava zoada); enfim, parecia que a banda estaria pra tentar começar o show.
Então a pessoa foi até o vocalista, pegou o microfone dele e começou a imitar o jeito dele cantar; me pareceu até que o vocalista tentou algum contato visual com a pessoa, talvez numa esperança de conseguir a atenção dele pra conversar, mas no fim se limitou a sair do palco.
Depois de “dançar” e “cantar” por algum tempo (e a banda tocando), a pessoa foi então até a bateria e passou a interferir até que o baterista (constrangido) saiu e ficou em pé na borda do palco.
Nesse momento, enquanto a pessoa começava a tocar a bateria, o guitarrista, num gesto brusco, arremessou a guitarra em cima da bateria.
Enquanto a pessoa tentava tirar a guitarra de si (aquilo deve ter machucado!), uma outra pessoa do público, justamente o conhecido que estava sentado ao meu lado, disse algo como “serei eu a tirar essa pessoa do palco” e foi correndo até o palco, subiu a escadinha correndo e pulou pra cima do intruso (parecia o mergulho do Kurt Cobain na bateria de D. Grohl), o que causou a queda de ambos pra trás da bateria, que teve as peças espalhadas pelo palco.
Enquanto os dois meio que lutavam atrás da bateria, a banda parou definitivamente de tocar e a pessoa acabou sendo imobilizada, ou algo assim.
E a noite acabou.
A casa só interferiu depois disso tudo (quando o segurança levou a pessoa ao caixa), mas afinal como saberiam o que estava acontecendo? Nem mesmo o público, que já conhecia a banda, sabia o que estava acontecendo.
A organização do evento não interferiu em momento algum; no dia seguinte escreveu no mural do evento no Facebook agradecendo a todos.
E a própria banda demorou muito pra demonstrar qualquer “oposição” efetiva à “invasão” de seu show.
O pesquisador norte-americano James McNally, que está no Brasil pra documentar a cena experimental de São Paulo, estava presente e filmou praticamente tudo. Conversamos depois e chegamos à conclusão que ambos nunca tínhamos visto algo parecido antes.
Se você leu até aqui, então merece saber, aqui vai:
A casa é o Morfeus Club, o evento foi o Morfina #3, em 14 de fevereiro de 2016, a banda é o Auto e a pessoa que invadiu o palco é o baterista Marcio Gibson, um músico dessa mesma cena.
Das duas pessoas conversando no início deste texto, a primeira sou eu, tentando entender como aconteceu aquilo tudo. A segunda é o próprio Marcio, que estava sem jeito, querendo se responsabilizar pelos danos etc.
Marcio inclusive já tocou com pelo menos dois dos integrantes da banda Auto em outras ocasiões!
Aliás, Marcio já tocou com muita gente, mesmo; já tocou comigo n’A Espiral De Bukowski em pelo menos três ocasiões diferentes (todas inspiradoras pra mim!).
Eu também já toquei com integrantes do Auto; por um breve período, há quase quinze anos, eu toquei no Objeto Amarelo com o Cacá, o Fusco e o Marcílio; e o Jon se apresentou uma vez com A Espiral De Bukowski no Ibrasotope, inclusive junto com o próprio Márcio e o pessoal da organização do evento, o coletivo Al Revés.
No dia seguinte o Cacá publicou no seu mural no facebook uma foto da guitarra com a legenda “o que acontece quando um Gibson toca uma Fender”.
Não vou aqui esboçar qualquer tentativa de juízo de valor sobre o episódio, mesmo porque eu não saberia o que dizer, haha; só posso afirmar com convicção uma coisa: foi surreal, ou punk, ou os dois.
Eu estava indeciso se valeria a pena contar esse episódio, pois não queria expor as pessoas de forma negativa, mas meu editor sublinhou a importância de se contar o que aconteceu; é como eu disse na coluna anterior, é preciso registrar a história dos artistas, pois quando não se registra, a memória se perde.
Antes do (não-)show do Auto, houve ainda a apresentação dos duos Mauna Kea, Amphis e Al Revés.
Na segunda edição do evento Morfina, que aconteceu no fim de janeiro, eu não pude ir e infelizmente perdi os shows de Bandidos Da Luz Vermelha, Ballet Clandestino, Farmacopéia e Baudelaire.
Na primeira edição do evento Morfina, que aconteceu no fim do ano passado, eu toquei bateria com o trio OVONOVO e vi os shows de Amphis, Baudelaire e Krias De Kafka.
Sim, este texto foi escrito meio “de trás pra frente”.
O futuro é realmente imprevisível, né?
Como é que será a próxima edição do Morfina?
Hahaha, enfim, vida longa a todos os envolvidos!
Até a próxima cosmoPOPlitan, aqui no Floga-se!