COSMOPOPLITAN #13 – PROCRADISPERSÃO E MEMÓRIA

Apesar de também poder levar a outras coisas, positivas e interessantes, a procrastinação atrapalha, e quando misturada à dispersão, pode ser algo decisivo na trajetória de uma pessoa.

Um exemplo evidente: estou cursando minha quarta graduação e nunca me formei; a primeira em História e as outras três em Letras. E não foi por deficiência no desempenho escolar, pois eu tinha boas notas. Não me interesso (senão marginalmente) pelos objetos de estudo mais populares do meu curso, como por exemplo aprendizado e ensinamento de línguas, literatura clássica, filologia, fonética e fonologia, mas sou apaixonado por filosofia da linguagem, da mente, da ciência, história e suas ciências auxiliares, cosmologia. Acabo tentando usar componentes da linguística, da teoria literária e a tradutologia como pontes pra me justificar.

Agora estou lendo o livro “Narratori Delle Pianure”, de Gianni Celati, como parte do meu curso, pra disciplina letteratura italiana contemporanea, na Unipg. Quero dizer, eu estava.

Estou cursando três disciplinas neste semestre (as outras duas são linguistica generale e storia della scienza) e os exames, que nas universidades italianas são orais, me preocupam muito, me causam ansiedade e insegurança. Como avaliação, terei somente um exame pra cada uma das três disciplinas, isto é, meu semestre todo depende do meu desempenho nessa única oportunidade.

O primeiro exame está marcado pra daqui a quatro dias e os outros pra semana seguinte; pra este agora o professor indicou a leitura de três livros e das anotações de classe. Ao invés de parecer um robô em ditado a escrever tudo que o professor dizia, como fazem os alunos aqui, eu gravei o áudio das aulas pra então transcrever o que mais me chamasse a atenção.

Bem, até agora fiz a transcrição de três quartos dos áudios e estou no primeiro terço da leitura do segundo livro. Sim, eis outro exemplo flagrante de procrastinação: aqui estou eu a escrever isto que você está lendo.

Chamarei a isso de procrasdispersão. A procrasdispersão é um traço que me compõe, é algo muito forte em mim.

Você pode dizer que não tenho noção e chamar o dicionário pra me provar que procrasdispersão não existe. Eu posso te dizer que antes de alguém ter inventado, as demais palavras lidas aqui, cuja existência não causa indignação alguma, não existiam também. Os dicionários são revistos e atualizados periodicamente pra dar conta do conjunto de palavras “eleitas” como pertinentes, por quem assume autoridade pra tal, e convencionalmente aceitas pela maioria.

Um dos trinta mini-contos de “Narratori Delle Pianure” chama-se “Come Fa Il Mondo Ad Andare Avanti”. Por isso estou aqui. Isto é, o protagonista do conto me inspirou a escrever isto aqui.

A cena exata é o protagonista no bar dizendo ao pessoal que não há como alguém explicar como se pode lembrar da sopa ingerida um mês antes, pois não há mais traço elétrico daquela sopa em seu cérebro.

Achei engraçado a ponto de me afastar da leitura e pensar a respeito.

O que é a tal sopa do livro? Ela existe?

O protagonista estava se referindo a uma sopa hipotética, mas talvez ele pudesse ter tido uma sopa em específico na memória (afinal ele poderia ter usado outra coisa pra ilustrar o que queria dizer mas preferiu usar a palavra sopa). Mesmo sendo um livro de ficção, Gianni Celati talvez tenha se baseado numa sopa saboreada fisicamente.

De qualquer forma, nem vem ao caso aqui: sim, a sopa existe; pelo menos dentro da história de um dos trinta contos do livro, ela existe, está lá.

Cada vez que alguém lê o livro, sua existência é reafirmada. Cada vez que alguém fala a respeito, como faço aqui, prova sua existência.
Enquanto houver ao menos uma cópia do livro no mundo ou qualquer eco seu, como por exemplo isto aqui ou qualquer outra conversa ou obra derivada, que lhe faça referência, a sopa ainda existe, está lá, “resgatada”.

Oras, como que poderia esse protagonista propor qualquer dúvida quanto à existência de seres, coisas, matéria ou ideias se estou aqui a escrever isto? E você lendo isto aqui agora, como seria possível?

Suponhamos que Celati e todas as pessoas com que ele teve qualquer tipo de contato tenham morrido, que todas as cópias já impressas de seu livro desapareçam, que toda e qualquer referência em outras obras também desapareçam e que ninguém mais fale a respeito simplesmente por desconhecimento. Então poderemos dizer que a tal sopa existe? Talvez não.

Não pense que esta seja uma colocação disparatada, pois a História nada mais é do que uma coleção de narrações (baseadas em fatos reais ou não) elaboradas/eleitas por quem assume autoridade pra tal.

Nossos antepassados surgiram há seis milhões de anos; a linguagem humana surgiu há mais ou menos cinquenta mil anos; a escrita, há menos de dez mil anos; a tipografia, há pouco mais de quinhentos anos etc. Ou, pra facilitar, poderíamos afirmar que antes do nascimento de Celati a tal sopa existe? Talvez não.

Mas o tempo não é a única dimensão onde o problema ontológico se apresenta; por exemplo, a tal sopa pode ser descrita como alimento, prato, exemplo, ideia, palavra, componente narrativo, líquido, quente, vegetariana, espessa, verde, alegoria, lembrança, e dentre outras coisas, também como um impulso elétrico no cérebro do protagonista.

A tal sopa pode ser todas essas coisas ao mesmo tempo? Poderia ainda ser quantas outras coisas sem deixar de ser ela mesma? Quando ela deixa de ser uma dessas coisas pra “se tornar” outra? Em que estágio a sopa, a partir de seu preparo na cozinha, se torna tal? Mesmo usando a mesma receita, duas sopas feitas por pessoas ou datas diferentes, podem ser a mesma sopa em quantos níveis?

Quando exatamente deixa de ser sopa, por exemplo, pra compor suco gástrico ou esgoto? Depois de ingerida ou despejada num rio? Continua sopa depois de vomitada? E, nessa relação com a sopa, como fica a existência do passado, do presente, do futuro, dos termos, das ideias, dos ingredientes, das pessoas, do suco gástrico, do esgoto, do vômito ou do rio?

A existência de uma coisa implica na existência ou no fim de outras.

Ok, chega de sopa.

Se você substituir a palavra sopa por qualquer outra, qualquer outra mesmo, a questão é a mesma. Pode tentar (claro, se você mudar a palavra sopa, terá que mudar as outras também, mas assim como sempre haverá uma substituição possível pra palavra sopa, haverá pras outras também).

O problema fundamental da ontologia, ou mesmo da metafísica, pode ser resumido com a pergunta “o que é ser?”. E até para isso usamos o verbo ser – hahaha.

Há quem acredite que a existência de algo dependa mais da consciência de alguém que perceba ou conceba a tal existência do que com o próprio algo em questão. São os idealistas, os dualistas.

Como monista e fisicalista, eu acredito que as coisas existem com ou sem a percepção de sua existência por parte de terceiros, independente de qualquer concepção mental.

Por exemplo, o notebook que estou usando pra escrever aqui, ele existe, mesmo ele não tendo consciência disso, assim como também existe a ideia dele pra mim, claro (enquanto signo), mas somente porque existe enquanto matéria, não poderia ser o contrário. Bem que seria lindo conceber mentalmente por exemplo um outro planeta entre Vênus e Marte, com o mesmo ecossistema da Terra, onde a própria natureza fosse disposta de modo que fosse impossível a existência do mal, da dor, do sofrimento e da morte, e então, somente por ter sido concebido mentalmente, plim, esse tal planeta passasse a existir materialmente.

Não é por capricho que deveríamos refazer nossos documentos de identidade periodicamente; é pelo mesmo motivo porque não reconhecemos algum amigo de certa idade quando vemos pela primeira vez uma foto dessa pessoa ainda criança; é com certo estupor e desconforto que admito não conter mais em meu organismo nem mesmo uma célula sequer daquelas com que vim ao mundo quando nasci quatro décadas atrás.

Sabe o ciclo de crescimento de nossas unhas, dos nossos pelos e cabelos? Cada vez que os cortamos, parte de nós deixa de existir enquanto nova matéria toma seu lugar. Assim como acontece com nossas convicções e/ou nossos credos, que podem sofrer alterações no decorrer do tempo e dependendo das condições.

Mesmo assim é inquestionável a nossa existência como indivíduos bem definidos. Seria possível o conceito de essência ou de existência sem o “eu”? Eis o dilema da consciência.

Independentemente da motivação, o maior desafio pra qualquer ser humano é mesmo, como pregam os budistas, desvencilhar-se do “eu”, ou como a ciência moderna demonstra (apesar dos altos e baixos), perceber que o ser humano não tem papel privilegiado no universo.

Meu palpite é que, assim como conseguimos descobrir a fisicalidade das ondas eletromagnéticas, ainda vamos descobrir a fisicalidade da consciência, das ideias (talvez através das sinapses) e quando isso acontecer poderemos alcançar a imortalidade. Simples assim. Pois no fim das contas somos memória, tudo é dado, informação.

Agora preciso sair, vou tentar falar com minha filha amada que faz aniversário, perdi um par de horas escrevendo isto, enquanto poderia estar estudando pros exames, mas me diverti fazendo, não sinto ter sido em vão. Não vejo outro jeito, devo confiar na minha memória, mas sem forçar a barra. Mas sim, estou curioso para saber o fim da história do conto, vou dormir na expectativa pra amanhã me deliciar.

Leia mais:

Comentários

comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.