Manchete: 99,9% de todos os jovens do mundo que querem ter uma carreira na indústria fonográfica não a terão.
Esse é o título do texto cujo link foi postado no grupo Sinewave no caralivro dia desses (veja aqui).
O texto é de um blogue dedicado ao hard rock e ao heavy metal, falando de bandas do mainstream.
Fui ao perfil do autor do blogue no caralivro, onde ele diz, entre outras coisas, ter tido seu caráter reformatado pela banda Mötley Crüe; chama a presidente da República de “cadela de verdureiro”; conclama que seus amigos comprem uma arma de fogo e aprendam a usá-la com destreza; considera o Brasil uma “republiqueta de bananas (…) no mesmo patamar de relevância de Bolívia, Peru e Colômbia”; cita Reinaldo Azevedo; e declara que ser brasileiro não é problema dele (sic) pois ele também é e já lida com merda demais pra se preocupar com os demais… Obviamente repleto de muito ódio e glamour, com imagens de restaurantes caros, destinos turísticos paradisíacos, carros de luxo etc.
O cara escreve sobre bandas famosas e a página do blogue dele tem menos de duzentos seguidores.
Ao ver esse show de horrores, eu quase desisti de falar sobre o texto dele aqui na cosmoPOPlitan, mas o fato dele ser a pessoa que é, isso só reforça o que eu quero dizer, então vamos lá.
Na verdade nem sei se o texto é mesmo dele (me parece mais uma tradução meia-boca), mas discorre sobre o que disse o advogado da indústria musical Ken Hertz em 2012, num painel de discussão da NARM (uma associação do mainstream da indústria musical, que hoje mudou de nome pra Music Biz): “ter uma carreira bem-sucedida nesse ramo é como ganhar na loteria, bem mais de 95% das pessoas que lançam discos nunca viverá disso”.
Ele diz mais: “o fato é que as pessoas nesse fórum (Music Biz – mainstream) não jogam na loteria pra viver, nós trabalhamos pra loteria. E a razão pela qual as pessoas (músicos) jogam na loteria é porque é mais fácil entender o prêmio do que entender as probabilidades contra elas”.
Depois ele vem com o blábláblá do “acredite em você” e do “vá atrás de dinheiro pra produzir um sucesso viral”, mas de uma coisa não podemos reclamar: Hertz é sincero a ponto de deixar passar o recado com todas as letras; só não vê quem não quer.
Ok, o recado é: o mainstream do mercado musical, da indústria musical, esse sistema todo funciona sob os princípios capitalistas do exército industrial de reserva e da massificação da cultura via consumismo, superficialidade e corrupção.
De um lado, o mainstream contrata alguns artistas (5% ou menos dos artistas que gostariam de ser contratados), colocando esses artistas numa roda frenética e abjeta em que quem age com frieza, egoísmo e soberba (ao mesmo tempo dissimulando o contrário aos fãs) às vezes consegue se destacar a ponto de ser mimado com luxo e ostentação (privilégios).
Do outro, incentiva – principalmente por meio da inveja causada pelo luxo e pela ostentação – a todos os demais artistas (os restantes 95% ou mais) que continuem tentando, alegando que se eles não conseguiram é porque ainda não estão prontos, porque ainda não fizeram por merecer.
É um Esquema da Pirâmide, onde os 95% da base querem chegar aos 5% de cima.
A maioria inclusive já sacou que não existe a possibilidade desse esquema graficamente representado em forma de triângulo se humanizar a ponto de ter sua representação gráfica transformada em losango (muito menos círculo), pois a riqueza material gerada por esse sistema provém da inveja causada por esse luxo e essa ostentação.
Nesse sistema, se todos decidirem se tornar artistas e/ou deixarem de idolatrar aqueles que “estouraram” (isto é, que alcançaram o sucesso), a banca quebra!
Sem ídolos, o sistema não funciona. Nesse sistema, ídolos não são consumidores, não são fãs de música; são empreendedores, e ao mesmo tempo empregados.
Ao contrário do que a grande maioria desses 95% diz (a maioria acredita ser capaz de manter a independência mesmo no mainstream), ser independente significa romper com esse sistema, abdicar dessa falsa promessa de luxo e ostentação, se abster de tentar chegar aos 5% do topo da pirâmide pra então viver e produzir sob outros valores.
Isso não é o mesmo que fazer voto de pobreza, pelo contrário, mas pra ser independente é preciso construir um novo sistema (ou integrar um outro sistema, com um etos mais humanista), onde as expectativas de ganho sejam compatíveis com uma vida simples e sem luxos, mas plena e confortável, onde a única ostentação vislumbrada seja a de felicidade como caminho e não destino.
Nesse ponto é que costumam chegar os chistes do tipo “utópico” etc.
Pois acreditam ser mais fácil continuar na luta pra alcançar o topo da pirâmide do que abandonar o sistema e construir (ou integrar) algo diferente.
Enquanto isso a vida passa e a grande maioria continua longe do topo e vivendo infeliz, fingindo glamour.
A coisa que chamou a atenção da pessoa que compartilhou o link no grupo da Sinewave no caralivro (clique aqui) foi o fato de Hertz ter dito “eu tenho sorte, sempre digo isso, eu sou terrivelmente sortudo, meus filhos não tem talento. Então eu não tive que me preocupar com eles querendo trabalhar no ramo do entretenimento”.
A maioria das pessoas que comentaram no tópico também se ateve a essa suposta insensibilidade dele em relação aos filhos, sem demonstrar coisa alguma em relação ao fato dele ter dado o recado com todas as letras sobre como o sistema é podre.
Pior ainda, teve gente que comentou que “é apenas justo, pois 99.9% (sic) dos músicos não fazem música boa o suficiente e/ou não se esforçam o suficiente para ter carreira musical”.
Pra quem será que a música feita por esses tais 99,9% dos músicos deveria ser “boa o suficiente”? Quem define os padrões pra música “boa o suficiente”? Quem define o quanto seria suficiente se esforçar? Quem define o que fazer para ser considerado “esforçado o suficiente” e com quem fazer?
Pois é…
Nunca me canso de dizer: gosto é pessoal e subjetivo.
Quando alguém tentar dizer o contrário, saiba, não passa de ingenuidade, ou então retórica com base em sofisma.
Cada um de nós tem seus próprios artistas preferidos e seus próprios artistas insuportáveis.
E mesmo o mainstream fazendo tudo ao seu alcance pra manipular o gosto das pessoas (o glamour, o luxo e a ostentação, a publicidade, as relações públicas, o jabá e os críticos musicais na grande mídia que o digam), ainda assim sempre há minorias pra comprovar que. sim, gosto é mesmo pessoal e subjetivo.
Ao ler o comentário dizendo que os Beatles mereceram “estourar” pois afinal “largaram tudo, mudaram de país, passaram anos tocando em puteiro, fazendo sets de seis horas de duração aguentando a base de boleta, mandaram embora os amigos da banda que não se puxavam, pra só então voltar pra casa sendo a banda mais redonda da sua cena e aí estourar. E ainda podiam não ter estourado depois disso tudo por tantos outros fatores”, o que me veio em mente foi um grupo de músicos infelizes e sem amor próprio, e não os Beatles que eu tenho em mente com suas músicas e letras…
Ter uma carreira musical não deveria ser associado a ser famoso e rico, de jeito nenhum. Pois ao defender que só merece ter carreira musical quem faz de tudo pra “estourar”, ignoramos o fato de o sistema comportar um espaço diminuto pra artistas de sucesso, incentivando assim posturas cada vez mais egoístas e soberbas. Desse jeito, a tendência é mesmo o embrutecimento cada vez maior nas relações entre as pessoas envolvidas com música, e claro, cada vez mais glamour raso.
O pior é que outras sete ou oito pessoas curtiram o comentário…
As grandes gravadoras dominaram o mercado musical por muito tempo já. Mesmo com iniciativas corajosas e revolucionárias de gente que rompeu com a falsa promessa do mainstream, demonstrando que é possível sim ser independente, o fato é que as gravadoras detinham o controle total a ponto de, cedo ou tarde, em algum momento conseguirem destruir ou cooptar essas iniciativas, perpetuando o sistema com o esquema pirâmide.
Então veio a Internet e os equipos digitais e de repente o mainstream caiu de joelhos. O advento da Internet e dos equipos digitais foi a ocasião com que qualquer independente sequer poderia sonhar, a oportunidade de colocar em prática um etos mais humanista e consolidar um outro sistema, mas infelizmente, entre os empreendedores musicais e das áreas de tecnologia, o que acabou acontecendo é que se associaram justamente com as grandes gravadoras pra montar as plataformas digitais mais populares, isto é, mais uma vez o mainstream está cooptando, se apropriando dos meios pra perpetuar seu sistema com o Esquema da Pirâmide. Um exemplo gritante é o fato do Spotify, o maior serviço de streaming do mundo, ser agora de propriedade das grandes gravadoras.
O mais difícil pra se romper com a falsa promessa do mainstream e construir (ou integrar) outro sistema sob um etos mais humanista, sendo de fato independente, não é dinheiro ou qualquer outra coisa ligada a aspectos materiais (como muita gente costuma acreditar).
Isso é difícil também, claro, mas o mais difícil mesmo é ter a coragem pra buscar o novo, perceber que a felicidade não está na ostentação mas sim no caminho virtuoso. Deixar de esperar que a mudança chegue de fora e ao invés disso ser a própria mudança.
Pois mesmo suspeitando que o mainstream provavelmente seguirá dominando o mercado musical (uma vez que a ocasião proporcionada pela Internet acabou sendo meio que desperdiçada), deveria ser possível também perceber que existem pessoas (músicos, blogueiros, fanzineiros, donos de selos, venues, estúdios, lojas etc), que são sim independentes (mesmo que sigam tentando deixar de ser); que existem muitas pessoas que caberiam perfeitamente como público numa cena independente autossustentável (onde toda e qualquer pessoa poderia se tornar artista sem deixar de ser público); e que, principalmente, existem meios materiais pra construção (ou integração) de um sistema sob um etos mais humanista, independente desse mainstream.