COSMOPOPLITAN #7 – RCKNRLL

Um hiato de quatro meses é algo considerável, ainda mais com toda a tecnologia a que hoje temos acesso, pois já aconteceu muita coisa desde a coluna anterior; muitos episódios, com alguns textos, muitas chamadas e vários comentários circulando sobre esses episódios. Pelos menos uns cinco episódios desses eu senti um comichão pra escrever a respeito aqui, mas não deu.

Vejamos o que fiz nos últimos meses:
– minha banda véia, Magic Crayon, que tinha voltado (tendo lançado um single, um EP e um disco cheio, e feito show em São Paulo, Brasília e Goiânia), já “deixou de voltar” de novo (haha!);
– o trio OVONOVO, depois de um EP (pra Bruno é demo, pra mim é EP) e dois shows (com um bootleg), está em hiato também;
– o fim do semestre escolar na faculdade foi puxado (mas acabei conseguindo ser aprovado em todas as disciplinas);
– pela primeira vez participei da lista de melhores discos do ano aqui no Floga-se (mesmo tendo empregado um bom tempo escutando os discos, sinto que deixei algo de fora por esquecimento);
– finalmente consegui descobrir qual a área, e agora tenho um vislumbre do percurso, de pesquisa acadêmica que pretendo desenvolver (voltei a ler bastante e estou começando a escrever);
– e por último aqui na lista, além de cuidar de minha pequena Laura (que a partir de fevereiro vai começar a ir à creche e eu então cairei de cabeça na vida de desempregado em busca de emprego), ainda decidi aproveitar as férias da FFLCH pra lançar quatro álbuns novos d’A Espiral De Bukowski em janeiro (aliás, em 2016 A Espiral não deverá fazer muitas apresentações, cuidaremos pra que as poucas que possam surgir, sejam algo muito bacana – novidades em breve!).

A real é que se formos mesmo fazer anotações sobre tudo o que acontece conosco, ao nosso redor e com as pessoas cujas atividades nos inspiram/influenciam, puxa, é possível escrever muito.

Acredito que a literatura nasce assim, aliás.

Um filão bem conhecido da literatura é o das biografias; no contexto musical houve um boom nas últimas décadas e hoje podemos encontrar livros contando as histórias de muita gente; por exemplo, no mercado anglófilo há uma variedade incrível – até mesmo o The Fall, uma banda desconhecida pro público das paradas de sucesso, foi matéria-prima pra pelo menos nove livros publicados, contando as histórias da banda e de seus integrantes (eu tenho seis deles aqui na estante de casa!).

No Brasil, infelizmente, o mercado é restrito e negligenciado; apenas os artistas mais populares/comerciais servem de matéria-prima pras poucas biografias publicadas em nosso país.

É uma questão cultural mesmo; que o diga o pessoal do Procure Saber e o grande público (que de grande não tem nada – está mais pra acanhado), sempre a ver navios.

Se em termos de biografias no Brasil só há escassez, mesmo quando pensamos em artistas do mainstream, então fica fácil entender porque nunca houve a publicação de livro algum contando as histórias de bandas de rock do underground brasileiro. O mais próximo que tivemos disso foi a maravilhosa atividade dos fanzines no fim dos anos 80 e durante os anos 90, e depois os blogues, mas ainda assim, não há como usar isso de argumento contra a escassez.

Opa, melhor dizendo, nunca até agora. Não tenho palavras pra descrever minha surpresa ao ver que alguém teve a coragem de publicar um livro de 600 páginas contando as histórias das bandas Pin Ups, Thee Butchers’ Orchestra, Forgotten Boys, Biônica, Divine, Firefriend, Lê Almeida, Giallos e Travelling Wave.

O nome do livro é “RCKNRLL” e o autor é Yury Hermuche, brasiliense que desde 1993 (pelo menos) vem tocando rock (confira a banda dele: Firefriend) e que já viu vários shows de artistas do underground. Pra escrever o livro, entrevistou mais de 50 músicos e produtores. Ouviu choro, risadas e até ameaças. Duas conversas duraram quase dez horas seguidas, outras foram feitas em mesas de bares em sete cidades diferentes e algumas até mesmo na cama.

Desde 1992, a minha história cruzou, ao menos uma vez, com a de integrantes de umas seis ou sete das nove bandas apresentadas em “RCKNRLL”.

Assim como eu poderia ter escrito um livro tratando da mesma temática do “RCKNRLL”, tantos outros poderiam tê-lo feito, mas ninguém o fez; Yury inaugurou um segmento de gênero no Brasil, é um pioneiro.

Botou em prática uma ideia simples e inspiradora, e por isso agora podemos dizer que há pelo menos um livro que conta histórias de bandas de rock do underground brasileiro.

O livro custa sessenta reais.

Ao ver uma postagem dele no Facebook, onde contava como tinha acabado de dizer não a uma proposta indecorosa da Livraria Cultura (leia o absurdo aqui), não me aguentei e comentei ali mesmo, propondo um encontro pra falar sobre o livro.

Quarta, dia 20 de janeiro, me encontrei no Centro Cultural São Paulo com o Yury pra um bate-papo.

Vou omitir as minhas falas o máximo possível, justamente pra dar voz ao Yury. Nossa conversa durou quase uma hora e meia e por isso a coluna de hoje será a primeira parte dela; a próxima coluna será a parte final.

Com vocês, “RCKNRLL”, na voz de Yury Hermuche:

“Volta e meia, escuto alguma banda nova do underground falar sobre o que está ouvindo, sobre quais são as bandas de referência e são raras as que conhecem algumas das mais interessantes, digo, daquelas que têm uma história interessante no Brasil. Há a falta de registro, a falta de documentação sobre o que os artistas brasileiros fazem”.

Daí que surgiu o RCKRLL?

“Resolvi escrever um livro sobre bandas, mais sobre as pessoas que resolveram montar bandas; bandas diferentes, que estão no underground brasileiro, que não estão interessadas em fazer uma coisa que eu chamo de ‘trilha sonora de comercial de televisão’. São pessoas que optaram por fazer uma música bem barulhenta, bem diferente, bem estranha pro que o público em geral conhece. E o que me intrigava era quais eram as ansiedades e as questões das pessoas, pra elas fazerem o que fizeram e o que fazem ainda”.

Como foram as entrevistas pro livro?

“Comecei a entrar em contato com as pessoas em maio de 2015. Expliquei pra elas o que eu estava fazendo, algumas foram meio reticentes no começo, porque – elas me falaram depois – que estavam acostumadas com entrevistas de jornalistas padrão e isso não interessa a ninguém. Conversei muitas horas com as pessoas, porque eu estava interessado na história de vida delas. Me interessa a história das bandas, mas a história de vida das pessoas que montaram as bandas é o que explica porque as bandas são como são. Procurei as pessoas dessas nove bandas, as visitei e a gente conversou bastante. Fiz 220 horas de entrevistas”.

Sim, você fez um trampo admirável! Na grande imprensa musical brasileira só vejo jornalista padrão.

“O Brasil tem um problema muito sério de autoestima, de reconhecer no aqui e no agora algumas qualidades. Isso faz parte do nosso rock, do underground, e como um todo em nossa sociedade. Porque somos habituados, desde criança, a odiar o que a gente tem aqui. Isso repercute no nosso conceito de comunidade. E o underground tem uma qualidade muito grande – é um universo comunitário. O Brasil é muito grande, muito rico, muito interessante e a gente perde em não olhar pra ele”.

Aqui na coluna eu venho martelando na questão da mentalidade da maioria das pessoas da cena independente – uma mentalidade que eu considero extremamente dependente…

“Tem uma questão na música, uma tensão, uma ansiedade, uma sombra sobre o underground, de deixar de ser underground; isso faz com que as bandas acabem prematuramente, com que as pessoas fiquem frustradas muito facilmente e destrói um pouco; é muito prejudicial. As pessoas querem fazer a vida delas fazendo o que amam, muito louvável, a questão é que é muito difícil fazer dinheiro com música. Tem essas contradições, né, que podem ajudar e atrapalhar também”.

E atrapalham, sim, impedem uma cena autossustentável.

“O problema da autoestima aqui é algo mais antigo do que o rock no Brasil, mais antigo do que o jornalismo; vem dessa coisa de colonizado, de terceiro mundo, de achar que o melhor está lá fora sempre. A televisão, a grande mídia, quando fala do folclore nordestino, por exemplo, tem sempre um tom pejorativo, que trata o entrevistado e o espectador como criança. Basicamente dizendo que a cultura brasileira é uma piada. Isso é feito há muito tempo e é feito cada vez com mais capacidade”.

Sim. Qual a sua formação?

“Eu me formei em jornalismo mas nunca exerci a profissão exatamente, porque desde quando me formei, eu já tinha visto que o jornalismo estava morto. Eu nunca quis porque sempre achei muito difícil trabalhar pra esses veículos, esses jornais grandes, essas revistas, e televisão. Eu estudava a história da imprensa, estudava as publicações e via como a abordagem era sempre ridícula”.

Na tal cena musical, até os jornalistas mais descolados daqui continuam importando e ignorando ou subestimando a produção local.

“Olhar pra fora não pode te cegar pro que está acontecendo ao redor. O que é interessante é que os jornalistas estão muito interessados somente com o sucesso, o que é uma falta de visão, algo muito curioso. Porque na verdade existem milhares de bandas no Brasil e dezenas de milhares de pessoas produzindo música e assistindo shows, envolvidas nesse mundo. É muito curioso que as pessoas não vejam isso. E quem não enxerga isso é justamente quem não faz parte disso”.

É incrível como a tecnologia pode ter avançado tanto e a mentalidade não.

“Hoje temos uma série de questões que achamos novas mas elas não são novas e mesmo com Internet e toda essa tecnologia, existe uma linha de continuidade muito explícita entre essas bandas, desde o começo dos anos 90 até 2016. O que o Pin Ups passou quando começou a tocar é muito informativo pra gente em 2016 olhar pras nossas bandas e pensar: ‘olha só que interessante, isso já era uma questão lá em 1989’. Como essas pessoas resolveram essas coisas? Isso a gente pode descobrir no livro; podemos também ver como se moldaram às mudanças no decorrer desses vinte e poucos anos; acho muito importante que isso tudo seja registrado”.

Claro, o esquecimento é amigo da preguiça (risos); o livro traz memória, pra nos confrontarmos.

“Agora estou preparando uma coletânea digital com as bandas do livro, pois algumas delas não são fáceis de serem ouvidas na Internet – Biônica, por exemplo” (a coleta pode ser baixada aqui).

Vou baixar!

“O Butchers é uma das bandas mais clássicas de rock brasileiro, uma puta banda de rock. As pessoas não conhecerem o Butchers é meio chocante”.

Pode crer, como pode?!

“Pode num país, num ambiente em que esse espírito de comunidade, essa questão da autoestima, o senso de comunidade, é corroído todo o tempo, de várias formas”

LEIA AQUI A PARTE 2

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