Na cosmoPOPlitan anterior tivemos a primeira parte da conversa que ocorreu no CCSP, em 20 de janeiro, com Yury Hermuche, autor do livro “RCKNRLL” (leia aqui), que conta as histórias das pessoas que vieram a participar de nove das bandas que constituíram o underground do rock brasileiro nos últimos vinte e poucos anos.
Mais de 300 dessas bandas são citadas pelos mais de 50 músicos e produtores entrevistados por Yury pro livro.
Sem delongas, aqui vai a última parte da conversa com o autor de “RCKNRLL”, Yury Hermuche:
“Eu acho que o livro é um documento, porque são as pessoas das bandas contando suas histórias, antes e durante a passagem por essas bandas. É muito interessante a forma como eles vêm o que aconteceu, como viram, como eles pensam o mundo, essas questões que na verdade afetam cada um de nós. Essa coisa de ser ou não aceito, ter ou não dinheiro, realizar algo na vida ou não, como realizar algo na vida…”.
Pode crer, legado.
“O que eu sinto pelo livro e pelo que eu tenho conversado com as pessoas é que tem uma coisa de criar um encontro, propiciar um encontro e mostrar o que você está fazendo e o que outras pessoas isoladas estão fazendo. Eu estudei muito pouco de sociologia na universidade, mas isso é muito interessante, pessoas criando espaços pro encontro, pra compartilhar e fazer trocas, pois o underground é isso, as pessoas se viram como podem pra criar espaços onde há o encontro, de artistas, de pessoas que estão querendo ver uma coisa diferente, que não aguentam mais o que tem no mainstream, vendo a banalidade disso tudo, o quanto essas coisas que estão por aí dominando a paisagem são horríveis. Elas estão atrás de algo diferente, não estão contentes de ficar babando na frente da televisão seis horas por dia, então elas saem de casa e vão buscar algo diferente. E o underground é o lugar dessas pessoas. No underground são as pessoas se envolvendo, não o dinheiro atrapalhando tudo”.
Eu senti algo assim, desse mesmo jeito, no EC Walden.
“Pois é, o Walden é um bom exemplo disso tudo”.
Mas a impressão que me ficou clara é que no geral não souberam lidar com o Walden, com a proposta.
“Os brasileiros não se respeitam, basicamente isso. E o dinheiro manda muito, controla a sociedade. Então, esses espaços em que há o encontro, eles são fugazes, eles são realizados quando é possível, porque as pessoas têm muitas questões pra resolver do outro lado; essa precariedade… O Walden é um típico lugar que se a gente vivesse com uma outra cabeça, se a gente olhasse pra nossa cultura de verdade, teríamos documentários ou livros sobre o Walden. (minha nota: apesar de realmente não haver um documentário que cubra a trajetória do Walden, o coletivo Teletílica fez um minidocumentário sobre o fim do Walden, veja clicando aqui) Porque um casal criar um espaço daqueles e receber 600 bandas em dois anos e propiciar encontro pra tanta gente é um fato memorável, um evento memorável, pro qual a gente infelizmente ainda não sabe olhar da forma merecida”.
Tenho muitas lembranças boas e sou orgulhoso do trampo meu e da Mariana, e de tantas outras pessoas queridas no Walden, apesar do prejuízo financeiro…
“É saudável até certo ponto se meter em confusão. A questão é como a gente consegue, ou não, envolver o próximo; como a gente consegue concorrer em um mundo em que essas cantoras como a Lady Gaga lançam um vídeo de manhã e de noite já tem 16 milhões de views. É uma coisa que todo mundo sabe, mas os jornais ainda estampam a capa dos seus cadernos culturais praquela bosta; os sites, as revistas, a televisão, dão destaque, sabe; a gente vive uma cultura da celebridade, do lixo midiático. As pessoas são reféns, cheias de certezas que não valem nada”.
Pois é, achamos melhor fechar o Walden, ao invés de desfigurar o lance.
“No mainstream, tenho a impressão de que o dinheiro muda um pouco a perspectiva das coisas artísticas; talvez os artistas comecem a pensar como empresas e as empresas têm uma lógica bem particular. É raro ver uma empresa respeitando o espaço público e o indivíduo, o cidadão. Elas envenenam as pessoas, humilham as pessoas, enganam as pessoas, é isso que as empresas fazem, através da publicidade, do jingle, da trilha sonora pra comercial de televisão… No mainstream não se faz música, se faz trilha sonora para campanha publicitária, se faz marketing“.
Uma questão que considero determinante é perceber a motivação de cada um.
“Eu me interessei mais pela história das pessoas, ouvi milhares de histórias, sobre dificuldades, roubo, traição, essas coisas, mas o que eu vejo é que essas experiências das pessoas com o underground, com o rock, são mais importantes do que música. As pessoas não fazem o que fazem só pela música. A música é demais, é uma paixão, mas as pessoas estão fazendo mais do que música, elas estão realizando coisas, viajando, conhecendo, trocando, criando cenas, coisas que o mainstream proíbe. Você estar na rua, indo num buraco que o mainstream diz que é perigoso, mas na verdade é só um lugar com pessoas querendo compartilhar coisas, é muito mais enriquecedor pra cabeça e pros afetos. É libertador, interessante”.
Aliás, você mesmo acabou de voltar de uma viagem agora, né?
“Eu fiz uma viagem agora pra lançar o livro. Saí de Brasília, vim pra São Paulo, depois fui pro Rio de Janeiro, depois Vitória, aí pra Feira de Santana, pra Recife, Natal, Fortaleza e terminei num dos lugares mais incríveis do Brasil, a Serra da Capivara, no Piauí”.
Que da hora, gosto demais de viajar.
“Viajar dentro do Brasil é demais, e está ficando mais fácil pois as estradas estão ficando cada vez melhores, porém as distâncias são muito grandes, é muito caro. É muito difícil pra uma banda do underground viabilizar uma turnê pelo Brasil”.
Algumas das bandas no “RCKNRLL” foram pioneiras nisso, de viajar pra tocar pelo Brasil de forma independente, como a FireFriend, que está no livro e que tocou nos eventos de lançamento no nordeste.
“Tem uma coisa que é interessante no livro, que é a questão da viagem, as bandas viajam muito. Nessas viagens elas têm verdadeiras epifanias, descobrem coisas muito interessantes. Os relatos de viagens que estão no livro são muito legais. Gosto muito de ouvir os músicos falando das viagens, porque frequentemente inclusive, entre os amigos deles, eles são os únicos que conhecem o Brasil, só por causa das bandas que eles inventaram pra poder viajar”.
Com certeza, eu mesmo já conheci muito lugares somente por conta dos shows que fui fazer ou ver.
“Não tem coisa melhor do que viajar pelo Brasil e conhecer pessoas que estão fazendo coisas diferentes. Eu percebo alguma similaridade no que as pessoas falam nessas cidades em que estive, em todas. Há um senso de comunidade e só falta conexão, um entendimento da importância disso”.
Sempre que converso com alguém que já fez turnê no Brasil, ouço histórias engraçadas e legais! Já ouvi também um monte de gente que toca em banda dizendo que gostaria muito de fazer turnê pelo Brasil…
“Eu estou fazendo uma série de vídeos agora, sobre essas cidades, conversando com essas pessoas sobre como é o underground por lá”.
Opa, coisa boa vem por aí!
“Então, quando eu fiz esta viagem, eu lembro que, quando eu saí de São Paulo e no meio do caminho eu tinha a infelicidade de cruzar às vezes com alguma televisão ligada, eu sempre via notícias ruins, mas na viagem eu vi uma coisa muito diferente, na estrada eu vi um Brasil bem diferente. A mídia não está interessada em deixar as pessoas… Simplesmente não dá pra acreditar no que passa na televisão. E o que eu sei é que essas pessoas do livro perceberam esse tipo de coisa e foram atrás, isso que fez elas irem de madrugada em algum buraco qualquer, ouvir música estranha, barulhenta, encontrar gente diferente, porque estavam cansadas desse mundo ridículo que é o mainstream“.
Concordo plenamente. A Internet pode ser vista de duas formas antagônicas, como parte do mainstream ou como saída ao underground. Falando de Internet nesse contexto, você acha positivo ou negativo?
“Muito positivo. Eu me lembro como era difícil conseguir ouvir discos de bandas como o Joy Division, por exemplo. Se eu não desse a sorte de topar com um fanzine ou um show eu nunca teria conhecido algumas das bandas do livro. E hoje em dia está tudo na Internet, então eu acho demais. Mas tem uma coisa que é mais interessante ainda com a Internet, que é a forma que podemos perceber que não estamos sozinhos, porque no livro tem muitos relatos de pessoas que cresceram se achando as mais estranhas, verdadeiros ETs; quando você é pequeno isso é muito sofrimento, muita angústia. Você acaba se disfarçando de ‘normal’ pra poder ser aceito, quando não é necessário, hoje em dia é muito mais fácil, porque existem muitos canais pela Internet pra você descobrir pessoas com os mesmos interesses”.
Mas e agora, o que podemos esperar a partir do seu livro?
“Tomara que outros livros como o meu apareçam daqui pra frente, porque é fácil fazer. É caro mas é fácil, só precisa ter mais atenção no olhar e no ouvido”.
Mas a parte técnica, na hora de produzir o livro, não costuma ser chata?
“Não”.
O livro tem ficha catalográfica da CBL (Câmara Brasileira do Livro)?
“Não, eu não estou nem aí pra isso. Porque esse órgão que é responsável por isso é uma bosta. Não fazem nada direito. Fiquei semanas trocando e-mails com os putos e não saiu”.
Vou te dizer, “RCKNRL” vai se tornar fonte de pesquisa, pode crer que vai.
“Já tem gente me procurando pra fazer trabalho acadêmico sobre o livro”.
Olha só!
“Eu gastei sete meses da minha vida e fiz uma dívida muito grande pra fazer este livro. Ainda não consegui o retorno financeiro, nem mesmo do valor investido na feitura do livro, mas tenho certeza de que vou conseguir, porque as pessoas estão adorando o livro.
Fiquei impressionado com a velocidade com que as pessoas estão lendo o livro. As pessoas estão envolvidas com as histórias das bandas, porque são histórias de pessoas normais mas com uma sensibilidade diferente, porque cresceram olhando pro mundo e percebendo coisas estranhas. E isso foi levando essas pessoas ao underground, que é um lugar que não está dominado por essas regras absurdas, por essa falta de caráter exagerada que vemos no mainstream, que é um sistema doente”.
Por falar nisso, me conta sobre o “não” que você mandou pra Livraria Cultura (risos).
“A Livraria Cultura queria colocar o livro pra vender no site deles e também pra encomenda no balcão das lojas deles, mas pra cada pedido eu teria que levar lá um livro, pra então receber só metade do valor – e noventa dias depois. É uma falta de vergonha, um absurdo, não tinha a menor condição de eu aceitar”.
Mas onde o livro está sendo vendido?
“Ele é vendido no site do livro (clique aqui), com pagamento através de PagSeguro. E eu estou montando uma rede de locais pra venda; já tem Brasília, São Paulo e no Rio. Em São Paulo, por enquanto, o livro pode ser encontrado na Locomotiva e na Casa do Mancha. No Rio, lá no Escritório; e, em Brasília, na loja Dom Pedro. São lugares que respeitam o autor, que fazem parte do contexto do livro”.
Aí sim!
“Quero ver se o livro agora circula mais, ainda preciso vender muito. Mas já estou começando a escrever o segundo volume”.
E no segundo volume quem vai aparecer?
“Quero contar a história da Monstro, de Goiânia; o Supercordas que era pra estar no primeiro mas não coube; a cena mod da zona leste de São Paulo, através do Transistors; o Auto; uma banda de Pernambuco que chama Quarto Astral que vai entrar também; tem o Prot(o) de Brasília; o Jupiter Maçã… Eu amei ir pro nordeste, mas se eu tivesse ido pro sul teria feito a entrevista com ele, mas vou escrever de qualquer jeito”.
Fico na torcida! Valeu demais, considerações finais?
“Uma coisa que eu espero, com este livro, é que as pessoas conheçam as histórias das bandas; a coisa mais importante que eu fiz ano passado foi escutar essas pessoas, mudou minha cabeça”.
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É isso aí pessoal, até a próxima cosmoPOPlitan aqui no Floga-se!
Yeah.