Pensando cá com meus botões, e pegando carona na conversa sobre o “RCKNRLL” (leia aqui e aqui), sempre que encontro algum amigo das antigas, que participou do underground, seja como público, seja como músico ou agente (fanzineiro ou jornalista, gente de venue, loja, estúdio, selo etc.), inevitavelmente surgem as lembranças de tempos passados – shows, demos ou discos, fanzines ou publicações – e também de episódios peculiares ou situações inusitadas envolvendo as pessoas.
Eu tenho 41 anos, comecei a acompanhar o underground no finzinho dos 1980 e a produzir minha arte nele a partir do começo dos 1990; minha geração fez história, sim, apesar de apenas agora, na segunda metade dos 2010, começarem a aparecer os registros disso em forma de arte. Exemplos bacanas são o livro “RKNRLL” (onde comprar) e o documentário “Guitar Days” (contribua aqui).
Iniciativas pioneiras como essas podem contribuir pro surgimento de cenas autossustentáveis, pode acreditar; pena que foi preciso esperar tanto tempo pra aparecerem…
A impressão que eu tenho, a partir das experiências nesses anos, é que aqui no Brasil há um tipo de confusão em relação ao(s) critério(s) usados pra (des)tratar a história dos artistas e agentes do rock brasileiro. Um tipo de confusão que eu não vi (ou vi em escala muito menor) na Inglaterra e nos EUA em relação a como eles tratam a história dos artistas, dos agentes e das cenas do rock deles.
Há quem ainda repita o velho bordão “o rock é o samba deles, está no sangue”, ou algo que o valha, insistindo que nunca seremos capazes etc; o que eu chamaria de “tese inatista intranacional” – seria como dizer que somente italianos são capazes de fazer boa pizza ou que somente ingleses são capazes de jogar bom futebol.
É triste pensar que ainda não conseguimos todos ultrapassar esse tipo de mentalidade; a espécie humana é uma só em qualquer parte da Terra e, indubitavelmente, as capacidades dos seres humanos não são distribuídas distintamente de acordo com o país onde se nasce. Felizmente muita gente já percebeu isso e a tendência, a meu ver, é melhorar.
Ontem assisti ao filme “CBGB”, que conta a história de Hilly Kristal e de seu bar, que acabou se tornando o mundialmente conhecido “lar dos punks”. O filme, de 2013, conta alguns dos episódios sobre aquela cena iniciada nos 1970. Achei que as bandas foram retratadas de forma bobinha; talvez pela atuação dos atores – visivelmente dublando, ou talvez porque o mais punk ali era mesmo o Hilly e não as bandas todas felizes por se tornarem empregadas das majors; mas não é o ponto aqui.
Além do próprio filme, já tivemos várias outras obras que se dedicaram a falar daquela cena, inclusive algumas delas mencionadas no próprio filme, como o livro “Mate-me, Por Favor”.
Mas a diferença primordial é que desde os próprios anos 1970 já tinha gente registrando aquela cena lá; não foi como o rock do underground brasileiro, que somente agora, muitos anos depois, começa-se a tentar registrar; no filme mesmo é mostrada a revista “Punk”, criada por fãs daquelas bandas no mesmo período em que elas estavam atuando; esse tipo de coisa ajuda a alavancar uma cena.
Em termos de rock brasileiro, como é nossa historiografia?
É possível fazer uma lista bem longa com nomes de jornalistas brasileiros “antenados” que influenciaram os gostos musicais da juventude daqui desde os anos 1980; eles escreveram em revistas e jornais de grande circulação, tiveram livros publicados e programas de rádio e/ou televisão; mas esses formadores de opinião se limitaram a divulgar as bandas de fora. Pras bandas daqui sobravam as seções ou colunas “demo”, com letras miúdas e/ou escondidas no cantinho, falando – e pouco – de poucas bandas e sempre de modo a deixar claro a nossa inferioridade e nossa irrelevância em relação à produção gringa.
Uma questão espinhosa aqui seria definir se essa postura negativa frente à produção local foi iniciada pelo público e então “lida” pelos jornalistas e demais agentes ou se foram estes que influenciaram o público. O fato é que menosprezamos sim.
Ao bem da verdade, no Brasil tivemos sim registros. Quem viveu o underground dos 1990 pode lembrar com carinho como era ter um fanzine xerocado nas mãos (ainda tenho muitos fanzines guardados), lendo ali sobre bandas brasileiras pouco ou nada conhecidas pela grande maioria, ignoradas ou menosprezadas pelos formadores de opinião que tratavam de rock na mídia, mas assim que chegou a Internet isso mudou e por mais que os blogues tenham de certa forma herdado o legado dos fanzines, não é a mesma coisa; havia também um outro tipo de registro, os guias ou listas, onde era possível saber – mesmo que sucintamente – da existência de uma imensidade de bandas e agentes (selos, venues, lojas etc.) do underground brasileiro; mas tanto os fanzines de então quanto esses guias eram registros “incompletos”, no sentido de não serem abertamente dedicados a registrar a história das bandas do underground brasileiro, de não serem produtos finais com uma estrutura interna que possibilite a transmissão de ideias e memórias da mesma forma que o são livros ou filmes como “RCKNRLL” ou “Guitar Days”. Sem contar que o alcance dos fanzines e guias era muito pequeno, tiragens pequenas, divulgação precária (ah, como a Internet teria sido bem-vinda!) e circulação mínima.
De qualquer forma, eu vejo três características principais que juntas poderiam ilustrar bem como tantos anos puderam se passar sem um nível mínimo de reconhecimento que fosse compatível com a produção no underground brasileiro (tanto em termos de quantidade como de qualidade).
Aqui vão:
1. A aversão em relação aos artistas que preferem (a) cantar em inglês ou (b) simplesmente fazer rock.
O preconceito costuma vir em duas formas: há quem diga que artista brasileiro deve cantar em português ou evitar o rock “puro” como seu objetivo, como se isso fosse demonstração de patriotismo ou identidade, e há quem diga que brasileiro não poderia cantar em inglês ou fazer rock por causa da péssima qualidade do inglês falado pela maioria aqui ou da incapacidade de se fazer rock “puro” por aqui (a tal tese inatista intranacional supramencionada).
2. Os próprios artistas do underground brasileiro ignoram ou não valorizam qualquer conceito de cena e mercado independente.
Sob a fachada de valorizarem a liberdade, de não estarem satisfeitos com rótulos, acabam por renegar os conceitos de comunidade e de orgulho próprio que existem por trás das cenas gringas onde estão muitos de seus ídolos. Os artistas no underground são independentes mas sem convicção, querem fugir do underground (cultivando a ilusão de que seria possível manter a integridade artística ao mesmo tempo em que são dependentes de majors ou reproduzindo o modelo de atuação usado no mainstream).
3. O atraso em se documentar no Brasil não se restringe ao rock, ou seja, há um problema grave de autoestima ou provincianismo, além de um jornalismo capenga.
Por mais que os artistas realmente não gostem de ser rotulados, pior ainda é quando não há alguém disposto a se dedicar ao registro da história dos artistas de um determinado tempo e local.
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Preferi nem incluir diretamente na lista a questão estética que trata da natureza da beleza e dos fundamentos da arte, pois ultrapassa meu ponto neste texto e considero ser uma questão perturbadora em todo e qualquer lugar, não somente no Brasil.
É uma questão filosófica muito antiga, há quem diga que o valor estético é algo objetivo e há quem diga que a ele é algo subjetivo; mas não se iluda, pois quem diz que a beleza é algo objetivo na verdade acredita na subjetividade e quem diz que ela é algo subjetivo na verdade acredita na objetividade!
Pra ilustrar: os idealistas (como por exemplo Platão e os teólogos) costumam defender que a realidade está dentro da mente humana e que a mente é que “cria” tudo o que sentimos e percebemos, pois não é capaz de ter contato com qualquer coisa fora dela, e ao mesmo tempo defendem que o valor estético é objetivo, o que equivale a dizer que a beleza seria uma característica intrínseca e absoluta do objeto em questão, hierarquizável, e que quem não enxerga isso é que é insensível ou deficiente; os naturalistas (como por exemplo Tales de Mileto e os cientistas) costumam defender que as leis naturais são as regras que regem a estrutura e o comportamento do universo e de tudo nele contido, que a mente humana é nada mais do que um dentre os tantos elementos integrantes do universo e é capaz de compreender um certo número dessas regras via percepção e raciocínio, que a beleza existe, mas não a priori, o que equivale a dizer que a beleza estaria nos olhos de quem vê, dependendo de gostos pessoais, que podem variar de acordo com quem cria o objeto em questão e de quem o vê.
Nem preciso dizer qual a linha com a qual me identifico, basta lembrarmos que condenei a tese inatista intranacional supramencionada.
Bem, aqui o meu ponto: sem registros não há reconhecimento e a memória se perde.
Como é que poderíamos considerar importante e sentir orgulho de algo que não conhecemos? Ou mesmo apenas falar a respeito?
De quebra, por mais que possam surgir polêmicas e causos lendários, com os registros acontece outra coisa, diminui o preconceito. Por isso que considero positivo o registro sempre, por mais que venha em forma de críticas “pouco elogiosas” (desde que dotadas de bom-senso e bem fundadas).
Enfim, que venham mais obras como “RCKNRLL” e “Guitar Days”, muitas mais!
A “cosmoPOPlitan” aqui no Floga-se também é um esforço no sentido de se registrar, mesmo que caindo naquela categoria de “incompleto” (mas quem sabe mais pra frente não adapto pra um livro?! Hehe).
Na próxima coluna estou pensando inclusive em abordar um episódio muito pitoresco e peculiar que testemunhei num show da cena experimental de São Paulo.
Até a próxima!
Muito pertinente o texto e ainda faço um adendo: muitas vezes as próprias bandas e atuantes da cena não valorizam o registro feito na boa vontade e muitas vezes não remunerado. É muito importante que tudo seja lançado, divulgado, compartilhado pois só assim as gerações futuras poderão saber como foi e quem foi parte da formação de cultura ano após ano.