Quando as primeiras notas de “The End”, do disco de estreia homônimo dos Doors (de 1967), são ouvidas em “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola, a música já havia feito a cabeça de muita gente e estava meio esquecida, cortesia da rebeldia calculada do movimento punk, que também, curiosamente, já havia sido um tanto sepultada ou atualizada em 1979, quando o filme chegou aos cinemas.
Jim Morrison havia morrido em 1971 e a banda já tinha virado um dinossauro extinto no coração e mentes da grande maioria dos novos jovens, que depreciavam tudo que vinha dos anos 1960 e da primeira metade dos 1970. A bem da verdade, uma música de mais de dois, três minutos era um suplício, algo digno de recepção de asilo de idosos.
Mas quando o filme foi escrito, o roteirista John Milius admitiu que o fez ouvindo apenas Richard Wagner e The Doors, porque pra ele a música dos Doors era “música de guerra”, declaração que horrorizou os integrantes da banda. Morrison ainda estava vivo quando Coppola e Milius planejavam um filme sobre o Vietnã – e a guerra, que só acabou em 1975, ainda rolava lá no sudeste asiático, empilhando mortos e enterrando bom senso (meio como toda guerra). Morrison, colega de classe de Coppola, na faculda de de cinema, chegou a dar o aval pro diretor usar a música do grupo como trilha sonora, afinal era um filme sobre a “loucura da guerra” e ainda hoje é um dos exemplos mais fiéis do que uma guerra pode fazer com a cachola de qualquer pessoa (não é o único), sem ser um dramalhão moldado pra arrancar lágrimas.
Ao contrário, “Apocalypse Now” é um filme desconcertante e incômodo. Não faz chorar e quando faz rir são sorrisos tímidos, impedidos pelo desconforto. A loucura é tema central nas suas duas horas e meia de duração “comerciais”, tanto quanto nas muitas versões comemorativas que saíram depois (o corte original tinha cinco horas e meia), em todos os personagens, em todas as situações mostradas. E, embora a cena inicial do bombardeio com napalm não estivesse originalmente nos planos, ela simboliza com precisão tudo o que o espectador verá depois: as cores são belas, mas o conteúdo é nauseante. E “The End” (no começo) sintetiza uma guerra: pode ser o fim, independente de quando começa e quando termina.
O corte original, com as cinco horas e meia, foi totalmente feito em cima da música dos Doors (embora o rock tenha sido usado em outros momentos no filme, incluindo os Rolling Stones, algo que inspirou Stanley Kubrick em seu igualmente desconcertante filme sobre o Vietnã, “Nascido Para Matar” (“Full Metal Jacket”), lançado oito anos depois). Um filme de cinco horas e meia com uma só música na cabeça. A loucura estava atrás das câmeras também!
Mas, como de praxe, foi contratado alguma alma boa pra tentar decifrar em música original o que aquela história tentava oferecer aos espectadores. David Shire foi o nome escolhido. Ele já havia trabalhado com Coppola em “A Conversação”, de 1974, que também envolve um paranoico, e compôs a trilha do maravilhoso “Todos Os Homens do Presidente”, de Alan. J. Pakula, de 1976. Não era um nome qualquer.
Entretanto, Shire teve um desentendimento com Coppola e não foi por questões artísticas, como se verá mais a frente. Shire, apesar do desentendimento, escreveu uma trilha completa pro filme. Ela foi recusada e esquecida. Sua trilha sonora era eletrônica, totalmente sintetizada, e incluía até mesmo sons de helicópteros. Oferecia uma certa tensão, mas parecia futurista demais, algo meio “Aliens” (forçando a barra), meio “THX 1138”, um tanto “1984” – já deu pra entender. De certa forma, Coppola queria em “Apocalypse Now” uma partitura totalmente tocada em sintetizadores analógicos. Mas o que Shire entregou, independente da qualidade, não era algo que resumisse “loucura”, não como os Doors fizeram tão bem – os Doors foram usados e voltaram a ser apreciados pelos novos jovens, que já estavam no pós-punk e conseguiam apreciar músicas de mais de dois minutos.
Só que o problema não foi exatamente artístico. As filmagens de “Apocalypse Now” foram intermináveis e Shire precisou arrumar outro trabalho pra pagar as contas de casa. “Apocalypse Now” parecia estar parado, então Shire aceitou uma oferta pra trabalhar na trilha sonora de outros filmes. Isso não caiu bem com Coppola.
“‘Eu tive que aceitar outro emprego’, eu disse. Coppola respondeu: ‘bem, não posso lidar com isso’, e fui demitido com um telefonema muito curto”, explicou Shire.
Shire criou a trilha pra quatro filmes em 1979. Um deles foi simplesmente “Norma Rae”, de Martin Ritt. Outro foi “O Segredo De Uma Promessa” (“The Promisse”), de Gilbert Cates. Aceitar esses trabalhos, pelo visto, foi uma boa escolha de Shire, afinal “Norma Rae” lhe deu o único Oscar de sua carreira, e “O Segredo De Uma Promessa” também lhe valeu uma indicação – ambos por canção original.
Mas não foi só o problema da exclusividade do emprego. Shire também estava passando, na época, por um divórcio com a atriz Talia Shire, irmã de Coppola e atriz reconhecida, inclusive com duas indicações ao Oscar.
O diretor, então, contratou seu pai, Carmine, que começou do zero na partitura. Shire lembra que ficou arrasado, mas diz que entende o que Coppola estava passando pra fazer o filme.
O próprio Shire afirmou, em matéria recente da NPR, que quase esqueceu a trilha que escreveu pro filme. Ele a ouviu novamente pela primeira vez há pouco anos, em 2013, reproduzindo de uma fita que estava acumulando poeira em uma gaveta, segundo Rick Karr, o repórter autor do artigo.
“Eu ouvi e pensei: ‘de onde vieram todas essas coisas?'”, disse Shire. “A razão pela qual Francis queria uma partitura totalmente sintetizada em vez de uma orquestra era precisamente porque tinha um pouco de frieza inerente a ela”, o que faz pleno sentido dentro da lógica de “Apocalypse Now”. Na trilha de Shire há, inclusive, uma versão de “Cavalgada Das Valquírias”, de Wagner (abaixo, no vídeo, a versão com a original).
Em 1976, enquanto Coppola se mudou para as Filipinas pra filmar “Apocalypse”, Shire começou a esboçar ideias pra trilha no Sound Arts Recording Studio, em Los Angeles. “Eu esperava que finalmente tivesse à disposição uma grande orquestra e um grande estúdio, agora que estava fazendo um filme de Coppola com bom orçamento, depois de fazer todos esses pequenos programas de TV e apresentações com orquestras diminutas”, Shire gracejou em uma outra entrevista.
Mas Coppola não queria orquestras, queria sintetizadores, embora não só isso: não queria que os sintetizadores simplesmente emulassem cordas, metais e sopros. Coppola queria ouvir instrumentos imaginários com novos tons. O diretor escreveu descrições grosseiras de sons que queria, como ‘celeste com gongo tocando’, ou um instrumento que ele apelidou de ‘scumbone’ – algo como um trombone enorme e sujo.
Mas embora Shire escrevesse pra sintetizadores há anos, ele nunca aprendera a programar um, muito menos um conjunto inteiro deles. Pra isso, ele recorreu a Dan Wyman, um músico ansioso pra mudar a forma como a maioria das pessoas ouvia sintetizadores. O trabalho de Wyman era descobrir como fazer com que os sintetizadores maciços gerassem os sons que Shire ouvia em sua cabeça.
“Os sintetizadores eram capazes de muito mais”, disse Wyman a Karr. “David sabia disso, Francis Coppola certamente sabia disso. Precisávamos, em nossas próprias mentes, provar que o instrumento poderia ser tão humano quanto os músicos humanos, mas mais maravilhoso”.
A trajetória das filmagens e do próprio filme foram marcantes, alucinantes, estafantes pra Coppola. Assim, não surpreende que o diretor, assim como o ex-cunhado, tenha esquecido a partitura abandonada. Agora, quase quarenta anos depois, os dois se reconciliaram e a trilha finalmente foi lançada comercialmente, com o título “Apocalypse Now – The Unused Score”, pelas mãos da La-La Land Records, com aval da American Zoetrope, produtora de Coppola, em 28 de novembro de 2017. Uma foto no encarte do CD mostra os dois sorrindo, lado a lado, no casamento do filho de Shire, sobrinho de Coppola. O tempo passou, as rusgas ficaram pra trás, e o sucesso de crítica que o filme teve, se tornando um dos mais importantes da história do cinema, ajudou certamente.
01. Into The Jungle
02. Delta
03. Village Assault
04. Hell-icopter
05. Long Travel Dossier
06. Dossier Reading 1
07. Orange Light
08. Tiger Tiger
09. The French Plantation
10. River Encounter
11. The Lure Of Kurtz
12. Ho Fat Bridge
13. Dossier Reading 2
14. Kurtz Calling
15. Ride Of The Valkyries (Piano And Synth Demo)
16. Ride Of The Valkyries (Studio Version)
17. Delta Gongs Test
18. Delta Ostinato Test
19. The French Plantation (No Viola)
20. Kurtz’s Compound
Ouça na íntegra: