DE BOWIE À VOGUE: A AUTO-DESTRUIÇÃO DE GIA CARANGI

Texto: Cristiano Bastos

O showbusisness é uma varinha de condão com dupla magia: feitiço que produz fama e tragédia quase na mesma medida. Uma legião de almas já escoaram pelo ralo do mainstream. Mas, das célebres vidas ceifadas por excessos, quantas partiram de verdade seu coração? Poucas histórias superam em tristeza a apressada trajetória, na vida e nas passarelas, da modelo norte-americana Gia Marie Carangi (1960-1986). A morte de Gia, vítima das consequências da AIDS, da fama, do vício em heroína – e especialmente de si mesma – já tem mais de trinta anos.

Gia teve uma carreira tão curta e glamourosa e um final tão infeliz e degradante que, na ficção, nem o óbito misterioso da personagem fictícia Laura Palmer aproxima-se dos requintes de degradação física e moral auto-indulgidos pela modelo. Perto do hecatombe pessoal de Gia, as mortes de Kurt Cobain e Sid Vicious, dois dos mais aclamados ícones da heroinomania, são brincadeiras estúpidas de dois descerebrados. Gia é dessas almas perdidas que gostaríamos de incluir em nossas preces diárias.

Em 1977, aos 17 anos, Gia Carangi, uma ex-caixa de lanchonete da Filadélfia, vai pra Nova Iorque apostar na carreira de modelo. Sua ida ao topo foi veloz. Em menos de um ano, sua beleza desnuda (cuja pele, considerada perfeita, poucas vezes era preciso maquiar) ganhou as capas da Cosmopolitan, Glamour e Vogue, as mais importantes revistas de moda do mundo.

No intervalo de quatro anos, tempo que sua carreira durou, Gia representou marcas famosas, como Christian Dior, Giorgio Armani, Levi’s e Yves Saint Laurent. Foi a modelo favorita dos fotógrafos Francesco Scavullo e Richard Avedon e a mais requisitada dos estilistas Gianni Versace e Diana Von Fustemberg.

Em abril de 79, a carreira de Gia decolou de vez quando estrelou na capa da Vogue Paris, fotografada por Chris Von Wangenheim. Nessa sessão, conheceu Sandy Linter, que trabalhava como assistente e com a qual teve ardente (e polêmico) caso de amor dos bastidores da moda.

Nos anos 80, Gia causou rebuliço na pele da primeira mulher a desfilar com roupas masculinas e, também, por aparecer no estúdio de cara lavada vestida num velho jeans rasgado. À paisana, pra ressaltar seu lesbianismo Gia vestia-se com indumentárias masculinas; por debaixo da roupa, porém, escondia-se o corpo feminino mais lindo que sua geração podia oferecer pra esse mundo da moda excessivamente fútil e opressivo que temos até hoje e que estava nascendo ali.

No final da década de 70, literalmente, o universo da moda ainda estava “dentro do armário”. Gia foi a primeira modelo a assumir-se como homossexual. Entretanto, segundo confessou em seu diário, sua vida teria sido inteiramente diferente se, no fim das contas, gostasse de homens. Muitas pessoas que cruzaram pela vida de Gia e descreveram-na como mulher de enorme presença – a mais linda e cool da sua época. Por outro lado, sua vulnerabilidade psicológica era ainda mais notória.

A morte de sua amiga e agente, Wilhelmina Cooper (de câncer no pulmão), em 1980, devastou a frágil psiquê de Gia. Foi quando começou a se revolver na areia movediça da dependência química. De acordo com a biografia “Thing Of Beauty”, de Stephen Fried, provavelmente o fato alterou todo o curso de sua vida, “transformando seus dias num inferno de drogas”. Hoje, apreciando suas fotos, é difícil perceber que mulher tão linda como Gia dissimulasse vício tão infeliz.

Os problemas enfrentados pela da top model tem gênese nos traumas de infância: ainda criança, sua mãe abandonou lar e marido. A bipolaridade extrema (nunca tratada) – oscilante entre picos de felicidade e tormentas emocionais – foi a porta de entrada da infernal trip junkie na qual, sem volta, jogou-se a modelo.

Celebridade, logo Gia virou habitué do Studio 54, clube novaiorquino onde a drogadição rolava solta na fritura hedonista da era disco. Não tardou pra introduzir-se na cocaína e, bem rápido, foi apresentada à heroína. Se não estava louca de coca ou herô, Carangi chapava-se de ambas as substâncias – o speedball, combinação perigosa que fazia a cabeça de seu maior ídolo: David Bowie.

Como ressalta Fried na biografia, quando adolescente, Carangi foi uma “Bowie Kid”: “em 1973, ser um ‘Bowie Kid’ era ato de rebeldia individual completa, com seu próprio grupo de apoio subcultural. ‘Indignação é próxima à piedade’, diziam. O álbum conceitual que Bowie lançou em 1972, ‘The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars’ (e a história de capa da Rolling Stone e a turnê estadunidense) tornaram-no um fenômeno internacional. Mas ele estava gravando na Inglaterra desde 1966, e ele estava usando vestidos em capas de discos e publicamente declarando sua bi-ou-homo-sexualidade (dependendo de como a presença de sua esposa Angie era interpretada) desde 1971”. Isso mexia em meninas como Gia.

“Um dia”, escreve Fried, “uma garota chamada Karen Karuza estava saindo da aula e teve um a visão que a surpreendeu. Era umagarota da sua idade, Gia, aos quatorze anos, só que mais alta, usando um macacão de cetim vermelho e botas vermelhas brilhantes, com plataformas pretas. Ela usava o cabelo grosso cortado e murchado nas costas. Parecia que um boné havia sido colado em seu couro cabeludo. A menina fez contato visual e se aproximou dela… E passou pra ela um envelope, saindo fora em seguido. No envelope, havia um cartão com a imagem de David Bowie. Atrás, rabiscado, a mensagem: ‘porque você me lembra a Angie’ – que qualquer fã reconheceria como uma referência à esposa do astro. No dia seguinte, a garota alta estava aguardando novamente na sala de aula de Karen. E ela continuou a voltar todos os dias depois disso. Em pouco tempo, eram amigas, e sua relação – e roupas – eram tópico constante dos comentários e alunos da escola. Como Bowie, eram como mulheres que ‘caíram na Terra’ (o autor faz referência ao filme de Nicolas Roeg,’ The Man Who Fell To Earth’, com Bowie, de 1976)”.

O autor sublinha a questão Bowie de um jeito que traduz a própria Gia de anos mais tarde: “Ziggy era simplesmente a embalagem mais bem sucedida dos temas básicos do Bowie de vinte e seis anos: alienação, androginia, extraterrestre, valores. E seu ato altamente teatral era a inovação perfeita no mundo do rock (…) Havia ‘Bowie Kids’ por todo o EUA e Inglaterra. Em cada município e subúrbio, um certo número de pessoas havia ouvido falar de Bowie – ou de seu personagem, Ziggy – expressando qualquer coisa que os fizesse sentir diferentes: sua sexualidade, sua aspiração intelectual, sua insatisfação e sua rebeldia. Era marketing de massa pra aqueles que queriam estar separados das massas”.

“Pra Gia, Bowie e a adolescência estavam interligados. Seu primeiro corte de cabelo – a primeira vez que pôde escolher um corte de cabelo – era um corte a la Bowie, quase perfeitamente replicando o olhar dele na capa de ‘Pin Ups’ (de 1973)”, escreveu.

A primeira experiência dela com maquiagem também está intimamente ligada a Bowie. Ela e sua tia ficaram a tarde inteira ouvindo discos do cantor e tentando fazer o famoso raio que se vê na capa de Aladdin Sane, também de 1973.

O autor não diz se, depois de famosa, ela chegou a se encontrar com ele pessoalmente. Mas ela teve seus contatos no mundo da música, como era de se esperar.

No vídeo de “Atomic”, do Blondie, ela aparece em quatro momentos, com seus cabelos compridos, balançando a cabeça com fúria (aqui, pra identificação, nas minutagens 1.51, 2.34, 3.15 e 3.55):

Gia, de 1,70m, teve dois importantes títulos. Um deles foi ser a primeira modelo da história a ser chamada de “super top model“. Na linha cronológica do fashionismo, ela é mãe de Gisele Bündchen e madrinha de Cindy Crawford. A semelhança entre as duas era tão notável que, na estreia, Crawford recebeu o apelido de “Baby Gia”. Na incipiência devastadora da AIDS, Gia foi a primeira “mulher famosa” diagnosticada com o vírus nos Estados Unidos, vírus contraído pelo compartilhamento de seringas.

O vício custou carreira, dinheiro e, por fim, a vida de Gia Carangi. No auge do sucesso, numa única temporada, a modelo chegou receber cachê de US$ 750 mil – cifra elevadíssima pros padrões da indústria da moda no áureos anos 80. O cachê diário de Gia, em média, era de US$ 10 mil. No fim da carreira, em 1984, não lhe sobrara um mísero tostão. Começou a prostituir-se com homens pra conseguir dinheiro pras drogas. Na sarjeta, foi preciso declarar-se indigente pra tratar sua doença no sistema público de saúde. No final da doença, que, em dois anos, a devastou completamente, os músculos de Gia descolaram-se inteiramente do corpo.

A carreira de Gia começou a ruir quando, durante uma sessão de fotos, as marcas de picadas foram descobertas em seus braços. Foi o fim de sua carreira. A modelo passou pra lista negra do mercado da moda. A capa da Cosmopolitan (veja abaixo) foi a última aparição de Gia numa publicação especializada. O fotógrafo e amigo Francesco Scavullo teve de forçar a barra pra que Cosmopolitan publicasse o ensaio de Gia na edição de abril de 1982. Note que a foto esconde os braços de Gia por trás do vestido. Essa história é retratada na premiadíssima cinebiografia da HBO “Gia – Destruição E Fama” (“Gia”, lançado em 1998, com direção de Michael Cristofer).

No Brasil, o telefilme foi lançado diretamente em vídeo. Merecidamente, Angelina Jolie, que interpretou a modelo, ganhou o Globo de Ouro pela atuação, e alavancou sua carreira de atriz. Ela mostra porque sua bissexualidade fez fama em cenas ousadas em uma produção televisiva – tão picantes que cerca de seis minutos de cenas foram cortadas; e são achadas apenas na versão alongada do filme. A escolha de Jolie pro papel foi a mais acertada possível. Não lembro de nenhuma atriz em Hollywood que reúna beleza e personalidade complexa pra representar uma vida tão perturbada como a de Gia.

Drogas e moda são velha combinação, tanto quanto são drogas e música. Antes de Gia, a musa de Andy Warhol, a modelo e socialite norte-americana Edie Sedgwick enlouqueceu até morrer abusando de remédios e de drogas psicodélicas. Sua história é contada no filme “Uma Garota Irresistível” (Factory Girl, de 2006, direção de George Hickenlooper), com Sienna Miller no papel de Edie.

Um documentário lançado em 2003, com direção de J.J. Martin, “The Self-Destruction of Gia”, também é uma importante fonte de informação sobre ela.

Aqui, um trecho com entrevista dela:

Em 1997, a morte do fotógrafo de moda Davide Sorrenti por overdose de heroína, aos 20 anos de idade, escancarou o temário das drogas pesadas nas manchetes dos jornais. Na época, sua namorada era a modelo adolescente James King. Ela tinha 14 anos quando lhe ofereceram heroína numa sessão de fotos: “eu vivia cercada por drogas. Era algo que estava sempre presente. O editor, o fotógrafo, todo o mundo fumava ou injetava drogas”, revelou King.

A heroína gozou seu “momento fashion”, em 1993, com a chegada da moda grunge. Fotografada pela Vogue britânica, Kate Moss tornou-se o rosto do “heroin chic”. Algumas modelos afirmam que nunca viram drogas sendo consumidas no mundo da moda. “Ouço boatos, mas nunca vi”, disse Cindy Crawford – a Baby Gia.

Hoje, Gia Marie Carangi é mais conhecida por ter sido dependente de heroína e morrido das consequências da AIDS do que, exatamente, pelo seu trabalho. No final da vida, Gia queria essa história fosse contada pra que outras pessoas tivessem a oportunidade de aprender com a tragédia. Dessa forma, nem tudo teria sido em vão. Do mundo da moda, ninguém compareceu ao funeral.

Um clipe de imagens dela, com “Beautiful”, do Goldfrapp:

Cristiano Bastos é jornalista. Autor dos livros “Gauleses Irredutíveis” e “Julio Reny – Histórias De Amor & Morte”. Atualmente biografa, ao lado do jornalista Pedro Brandt, o artista Júpiter Maçã. Em paralelo, trabalha na biografia “Metralha”, ao lado do quadrinista bissexto Márcio Jr (um dos criadores da Monstro Discos) e do ilustrador Gabriel Renner, sobre o mitológico cantor Nelson Gonçalves. Também dirigiu, ao lado de Leonardo Bomfim, o “road doc” “Nas Paredes Da Pedra Encantada” (em DVD pela Monstro Filmes), sobre o álbum “Paêbirú – Caminho Da Montanha Do Sol” (1974), de Lula Côrtes e Zé Ramalho. O texto acima foi publicado originalmente em 24 de novembro de 2008 em seu antigo blogue (original aqui). A publicação aqui foi revisada pelo próprio Cristiano Bastos, especialmente pro Floga-se e estará no livro “Nova Carne – Para Moer”, que reunirá 20 anos de produção jornalística escrevendo pra veículos como Rolling Stone, Bizz, Aplauso etc.

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9 comentários

  1. Belíssimo texto. Não conhecia a história dessa mulher… e me senti sufocado, agoniado e extremamente triste, principalmente nas linhas finais: “Do mundo da moda, ninguém compareceu ao funeral”.

  2. Eu me lembro bem quando vi no jornal o comunicado do falecimento dessa bela modelo … Eu era adolescente e fiquei profundamente impactada com a breve estória de vida dela publicada no jornal.
    Foi como um sussurrar de ajuda, realmente depois de ter lido o jornal, imediatamente ergui uma prece a ela.
    Gia, essa top model famosa por sua beleza e degradação, ficou muitos anos no meu subconsciente e agora, me deparando com essas bonitas linhas, Gia é reavivada no meu coração.
    Uma estória densa e perigosa, selvagem na sua essência mas talvez genial no tempo e no espaço.

  3. Gia Carangi só precisava de mais amor carinho e principalmente amigos verdadeiros! Só o que restou para ela foi autodestruição!

  4. Gia Carangi só precisava de mais amor carinho e principalmente amigos verdadeiros ! Só o que restou para ela foi autodestruição! Uma mulher belíssima

  5. Muito triste o fim desta linda modelo, que tinha tudo na mão para prosseguir na vida. Cadê os amigos no enterro? Isso prova que muitas pessoas só se aproximam pelos bens que você tem e não pelo que você é. Eu vi o filme e achei muito bom. Espero que isso sirva de lição para nós, pois é difícil subir, mas para descer é num instante.

  6. Belo trabalho, parabéns.

    Mas a introdução é horrível, nunca diminua o sofrimento e a história de outras pessoas.

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