DIA DA MÚSICA E FESTIVAL CULTURA INGLESA – OU A MINHA VIRADA CULTURAL

A Virada Cultural da prefeitura de São Paulo vinha sofrendo nos últimos anos: arrastões, violência e desorganização. A programação, porém, sempre ofereceu alternativas pra todos os gostos, em diversos pontos da cidade, de modo que todos os estilos encontram ao menos um show pra ver e se divertir. Mais do que isso, na Virada Cultural é possível de fato conhecer e viver a cidade. A intenção é essa.

Em 2015, a inovação veio com a integração, união de ideias e esforços, exatamente o que prega um evento tão democrático: unir as diversas classes sociais, tribos e gostos que vivem sob a mesma tensão diária.

Eis que durante um final de semana, São Paulo viveu momentos de primeiro mundo. Se um dinamarquês aportasse por cá nesse final de semana, quereria mudar pra cidade: cultura diversa por todos os lados (música de todos os estilos, corais, teatros) e gratuita, policiamento farto e presente, transporte disponível vinte e quatro horas, alegria transbordando pelas esquinas. Quem não quer viver numa cidade assim?

A ilusão de civilidade que a Virada Cultural traz é um alento. São mais de vinte e quatro horas de inclusão e sensação de alívio diante do estresse cotidiano. As pessoas percebem ser possível viver a cidade, e sem carro – não é uma experiência incrível?

Mas não é suficiente. Há quem fuja do evento, por conta do histórico violento das edições recentes – violência que se fez presente em 2015, embora em menor número. A prefeitura respondeu à desconfiança aumentando o evento a partir da união de outros eventos.

No caso específico do que o Floga-se acompanhou e participou, agregou-se o Dia Da Música, que aconteceu em vários pontos da cidade; e o 19º Festival Cultura Inglesa, que rolou mais uma vez no Memorial da América Latina. Ambos fizeram parte da programação oficial da Virada, inflando o número de atrações e trazendo alternativas de qualidade.

O Dia Da Música, ou Fête De La Musique, acontece no dia 21 de junho de cada ano, em mais de setecentas cidades de mais de cem países, simultaneamente. A data e a festa celebram a entrada do verão do hemisfério norte e do inverno no hemisfério sul. Segundo o site do evento no Brasil, “o Dia Da Música tem parceria com a Fête De La Musique, mas seu objetivo vai mais longe: realizar um instantâneo da produção autoral brasileira a cada ano, mostrando tendências e revelando os principais talentos do país”.

No Brasil, por conta da Virada, o Dia Da Música, rolou também no dia 20, sábado. Nesse dia, os shows aconteceram nas casas de shows e espaços conveniados; no dia 21, domingo, o festival aconteceu em palcos de rua e espaços públicos, com todos os shows gratuitos. Fui aum desses palcos, o do Razzmatazz, um dos bares mais bacanas de São Paulo – no Dia Da Música, o palco organizado pelo pessoal da Soundscapes tinha uma das melhores escalações que eu já havia visto.

Na ordem, desde três da tarde, Mahmed, Justine Never Knew The Rules, The Soundscapes, Loomer, Terno Rei, Kid Foguete e Wry, que subiu ao palco pra encerrar a maratona às nove da noite. Impossível perder isso.

A organização montou o palco na diminuta área da entrada do bar. Os músicos ficaram apertados e a calçada estreita fez com que a audiência, que durante as sete horas do evento variou em torno de cento e cinquenta pessoas, tomasse a rua (uma boa sugestão pra 2016 é que se consiga autorização com a prefeitura pra que o palco seja efetivamente na rua, fechando o trânsito e garantindo a segurança).

Todos os grupos tocaram por cerca de quarenta minutos, de modo que sobravam apenas vinte pra que a próxima banda montasse seu palco e acertasse seu som. Não dá pra exigir muita eficiência nesse cronograma corrido e apertado, e vocais e instrumentos sumiam ou ficavam altos demais, como era de se esperar. Não creio que alguém tenha reclamado ou se importado com isso, tal o clima de satisfação que imperava.


Justine Never Knew The Rules

Cheguei quando a Justine Never Knew The Rules mandava seus implacáveis ruídos e microfonias shoegaze. Apesar da pouca idade aparente dos integrantes, a banda não se intimidou e fez o barulho que sua música pede que seja feita. Urge assistir num espaço onde ela possa realmente tocar alto, estourando alguns tímpanos.


The Soundscapes

Os donos da festa Soundscapes já são velhos de guerra e fizeram um show bem ok, mas a banda carece de um som límpido pra que suas guitarras teenageanas se embelezem. Impressiona como eles se divertem fazendo o que fazem.

Fecharam a tarde de forma agradável e bem podiam tocar por mais uma hora, ninguém iria reclamar.

A Loomer, uma das preferidas aqui da casa (bem, quase todas as bandas aqui podem ser chamadas de “preferidas aqui da casa”), foi a que demorou mais pra montar seu palco e veio com uma proposta um tanto ousada: tocar quase que na totalidade músicas do disco que está gravando em São Paulo e que deve sair ainda em 2015.

Mas, por via das dúvidas, abriu com “Mammoth Butterfly”, do ótimo “You Wouldn’t Anyway”, lançado em 2013. Quase não se ouvia a voz de Stefano Fell, vocalista principal, mas as novas músicas se mostraram bem mais punk e cruas, pelo menos ao vivo, o que dá uma certa empolgação pelo o que vem por aí.

“Then You Go” é uma das novas.

Na sequência, a Terno Rei, a banda que mais destoa do todo aqui. Não consigo entender o que esse grupo tem de agradável. Mesmo assim, tentei ouvir as duas primeiras. Sempre dou chance pra bandas que não gosto, vai que uma hora me surpreendem. Não foi, mais uma vez, o caso da Terno Rei. E duas músicas foram demais. Hora de ir pegar umas cervejas num bar… na outra esquina, longe o suficiente dali, e bater um papo.

Algo que se pôde notar nesse Dia Da Música no Razzmatazz é que as bandas, mesmo aquelas que já haviam se apresentado, continuaram no local pra ver as outras bandas. E artista que não é público, meu amigo, não pode exigir muito do seu próprio público. Dessa maneira, quem chegasse ali, podia conversar com vários blogueiros, jornalistas, músicos, produtores, donos de estúdio… Uma boa parte do subterrâneo paulistano estava nas plateia (e quero crer que o mesmo tenha acontecido nos palcos mais legais do Rio de Janeiro, esse aqui e esse aqui).

O Kid Foguete fez um bom show, com Rafael Carozzi interpretando suas músicas emogaze com um digno grau de emoção. Foi a primeira vez que vi o grupo ao vivo e se não surpreendeu (em disco pareceu melhor), também não decepcionou.

Por fim, o grande nome do dia, o Wry, com anos e anos de estrada e que foi “reformado” há pouco tempo pra uma série de apresentações. Foi o maior público e o show mais intenso na interação com a plateia.

É uma maratona realmente cansativa, mas vibrante. É preciso até que a experiência se repita com mais frequência, e de alguma forma trazendo pra mais perto outros nomes do subterrâneo que se espalharam pela cidade nesse Dia Da Música/Virada Cultural, como Herod, Hierofante Púrpura, Testemolde, Thiago Miazzo, Againe, Bugio, Quarto Negro etc. Já imagino um festivalzão gratuito, dois dias, com tanta gente boa e juntando com os nomes do Rio de Janeiro (por ser mais perto de SP). Não quero crer que a gente precise de uma Virada Cultural pra viabilizar isso…

Meu primeiro dia de Virada terminou aqui, mas a cidade ainda fervilhava, com shows de nomes tão diversos como Jerry Adriani, Akira S E As Garotas Que Erraram, Faust e Os Paralamas Do Sucesso.

Perde-se muita coisa em eventos como a Virada. Paciência. É por isso que cada um tem a sua própria Virada e nenhuma texto analítico chegará próximo da veracidade experimentada por cada um. Este aqui não pretende-se a isso.


Metá Metá

No domingo, fui ao Palco Experimental da Estação da Luz. Foi ali que o sábado viu a boa sequência de ruído/mm, Hurtmold, anvil FX, Loop B, Faust, Insanlar e Burnt Friedman (o Boogarins também tocou aqui, embora não seja exatamente “experimental”). Fui especialmente pra ver o Metá Metá.

Kiko Dinucci e Juçara Marçal comandaram um dos melhores shows que vi no ano, sem exagerar muito nos elogios. A mistura de MPB com MTB que tanto se elogiou no disco solo de Juçara Marçal se embriona aqui. E ao vivo, apesar dos pesares (som baixo e embolado, por exemplo), é divertido pra quem gosta de MPB e um deleite pra quem aprecia guitarras sonicyouthianas.

Dinucci ainda tem lá seus recados políticos, diante da onda de intolerância religiosa que pastores como Silas Malafaia promovem nos seus templos. Ele leu uma série de acontecimentos recentes que mostram o quão maléfico o discurso desse tipo de líder pode ser. Nesse momento, um pequeno número de candomblecistas apareceu segurando um cartaz “+ amor – pedras”, com muitos aplausos. Oportuno.

Mas o discurso de ocupação das praças, das ruas, dos cantos da cidade, “que é nossa, não deles”, foi o menos óbvio que Dinucci desferiu. Ambos os discursos pareceram sinceros, entretanto, pra delírio da audiência de hipsters e hippies.

Dali, um pulo de trem (uma estação, pra ser exato) pro Memorial da América Latina. Já havia começado o ato final do 19º Festival Cultura Inglesa (que acontece durante um mês). Cheguei bem a tempo de ver Gaby Amarantos fazer o palco desabar.

A paraense, sem pudor, sem papas na língua e sem medo de ser vaiada, mandou sua mistura de funk, pancadão, arrocha e rock pra desespero de algumas cabeças puristas. Colocou samplers e fez coveres de Clash, Smiths, Morrissey, Information Society (que é estadosunidense), Erasure e irritou algumas pessoas. “Algumas” porque era o que dava pra ver ao meu redor. Mas deve ter irritado “muitas”, pelo teor da mistura. E, pra mim, se irritou, tá valendo. Não se faz arte só com bondade, com precisão, com seriedade. Gaby deve levar bem a sério o que faz, mas o faz com a provocação que certas pessoas teimam em não digerir. Ponto pra ela.

Gaby fez, afinal, um show mais honesto do que o de Johnny Marr. Quer dizer, o ex-guitarrista dos Smiths é um gênio, tem um estilo inconfundível de fazer soar sua guitarra, mas convenhamos ninguém ali dava lhufas pro seu repertório original. Todo mundo queria ouvir Smiths. Todos esperavam um show só de cover dos Smiths.

Ao contrário do que aconteceu em 2014, com o Jesus & Mary Chain, quando caiu uma chuva intermitente, gelada e irritante, e o show foi bem meia-boca, com o som muito ruim, aqui Marr contou tempo agradável, noite estrelada, e um som límpido e cristalino – embora baixo – o que contribuiu pra exuberância da sua guitarra.

Mas as pessoas só queriam Smiths. Ele atendeu esse desejo latente. Foram seis canções dos Smiths. E muito bem escolhidas. De cara, “Panic”. Ainda vieram a exuberante “The Headmaster Ritual”, os sucessos “Bigmouth Strikes Again”, “There Is a Light That Never Goes Out” (ambas contadas em coro) e “Stop Me If You Think You’ve Heard This One Before”, além da clássica “How Soon Is Now”, que fechou o show.

Outras versões também apareceram: a ótima “Getting Away With It”, do Electronic, supergrupo do qual Marr fez parte em 1991; e “I Feel You”, do Depeche Mode.

Infelizmente a grande maioria da audiência simplesmente ignorou as ótimas “New Town Velocity” e “The Messenger”, além da polpuda “Upstarts”. Nessa hora, ao meu redor, até alguns bocejos apareceram. Reduziram Marr e sua banda a um cover dos Smiths – e ele é bem mais do que isso. Seus dois discos solo, “The Messenger” (2013) e “Playland” (2014), não são maravilhosos, mas não são desprezíveis.

Não que Marr fique emburrado e não se divirta mandando clássicos que, afinal, foram escritos por ele mesmo. Mas pela reação do público – que é bem diferente – ficou a sensação de que o show no Lollapalooza 2014 foi melhor.

01. Playland
02. Panic (The Smiths)
03. The Right Thing Right
04. Easy Money
05. 25 Hours
06. New Town Velocity
07. The Headmaster Ritual (The Smiths)
08. Back In The Box
09. The Messenger
10. Generate! Generate!
11. Bigmouth Strikes Again (The Smiths)
12. Candidate
13. Getting Away With It (Electronic cover)
14. There Is a Light That Never Goes Out (The Smiths)

BIS
15. Stop Me If You Think You’ve Heard This One Before (The Smiths)
16. Upstarts
17. I Feel You (Depeche Mode cover)
18. How Soon Is Now? (The Smiths)

Fotos Johnny Marr: André Yamagami

O saldo é que foi um final de semana bacana. A Virada é um evento divertido e essencial, que ganhou em 2015 bastante robustez com a esperteza de ter agregado o Dia Da Música e o Festival Cultura Inglesa ao seu programa.

Música boa e diversa, pessoas na rua, transporte público funcionando o dia todo, a deliciosa sensação de segurança, gratuidade, inclusão social e o prazer de ocupar e viver essa cidade que é, sim, maravilhosa.

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