O que leva uma pessoa a sair de casa num domingo chuvoso (com chuva constante o dia inteiro, ainda por cima), com frio em pleno verão, pra ver três bandas do subterrâneo brasileiro? Melhor refazer a pergunta: o que leva por volta de cinquenta pessoas a fazerem isso?
Ora, a resposta está justamente no mesmo motivo que levam essas três bandas a continuarem tocando, criando, gravando sem que ganhem atenção de milhões de pessoas e consigam viver disso: é o fato de gostarem.
Ok, parece ingênuo: “esse público gosta de música”, “essas bandas amam o que fazem”… Mas quem esteve no Neu, reduto alternativo na zona oeste de São Paulo, sob essas condições, e em qualquer show de Música Torta Brasileira (MTB), consegue perceber que há, além do componente do “amor pela música”, o fato de gostar do “novo”, do “diferente”, do que é inquieto e daquele som que vasculha alternativas pra apresentar novas visões da arte de fazer música e de tocar música.
É uma diferenciação importante. Bandas como Vermes do Limbo, Bemônio e Elma, as três que tocaram nesse dia 17 de março de 2013 no Neu, encontram pouco espaço pra mostrar sua arte, por estarem fora dos ditames do mercado. Essa particularidade faz com que seus shows sejam raros mesmo em São Paulo, uma cidade que – dizem – abre espaço pra todo tipo de expressão criativa.
Ver um show com três bandas dessas tem um certo grau de dificuldade tanto quanto, pode-se dizer, o de uma banda gringa.
Cheguei à Neu exatamente à cinco da tarde. Fui recebido com um preocupante portão fechado e uma desculpa sincera: “não sabia que alguém chegaria na hora”. Pronto, ali vi que a programação atrasaria. Atrasou. Bastante. O primeiro show, do Vermes do Limbo, um proto-cru-rock com baixo-sendo-guitarra e bateria, de músicas muito, muito curtas, começou dez pras sete. A essa altura, mesmo com a chuva caindo, já havia bastante gente no local (ah, esse público que insiste em chegar atrasado).
O atraso, uma recorrência irritante em qualquer evento de música no Brasil, foi o único tropeço. Assim que o som saiu das caixas, numa incrível qualidade (como pouco se vê por aí, inclusive nas casas mais com pedigree), o deslize ficou pra trás e a impressão geral era um grande espanto: como pode esse tipo de manifestação musical ficar apenas no subterrâneo?
Era o primeiro show do Bemônio que eu veria. Paulo Caetano, o criador do projeto, mandava avisar que a apresentação é uma sequência ininterrupta de improvisos. Não há um set preparado. Pode durar meia hora. Aqui, durou dezoito minutos. Dezoito minutos acachapantes, com Gustavo Matos (com uma camisa do PIL) na bateria e Paulo Caetano, com sua máscara, na mesa de corte e programação. O show inteiro está no vídeo abaixo, na falta de adjetivos apropriados pra descrever o impacto de assistir o desenrolar:
Era preciso respirar um pouco. A apresentação do Bemônio é tão extasiante que demora pra ser assimilada. Caetano se contorce, aplica seus ruídos e drones a uma plateia atônita que pediu mais e não foi atendida: a dupla estava esgotada fisicamente. Há uma entrega impressionante na performance. Dezoito minutos foi pouco, mas dado o esforço físico do duo, compreensível.
Como nenhum show do Bemônio é igual ao outro, todo show é imperdível. Admira-me a capacidade de improvisação desses dois.
E é o inverso do Elma, cujo show é milimetricamente idêntico ao anterior. E igualmente impressionante. A música do Elma não permite erros e abre brecha pra poucas improvisações. Eis que o “Elma LP”, um dos melhores discos de 2012 (pelo Floga-se, pela comunidade da Sinewave no Facebook e por tantas outras publicações) foi apresentado com a força de quem está entrando no seu cérebro com uma furadeira pra que você saia da letargia.
Duas guitarras, baixo e bateria. Nenhum vocal. Porrada. A bateria de Fernando Seixlack e o baixo agressivo de Ricardo Lopes são destaques. Uma cozinha como nenhuma na MTB. A guitarra de Bernardo Pacheco aplica um certo molejo, oferece a oportunidade da plateia bater cabeça ou, mais timidamente, os pés, de leve. O quatro saem suados. A plateia, ainda mais atônita.
As três bandas deram uma amostra de que a MTB podia ter mais espaço – e mais público. Com todas as condições adversas, se mostrou mais profissional e instigante do que qualquer grande nome estampado nas manchetes usuais. Da próxima vez, faça chuva ou faça sol, você precisa ser arrebatado por uma dessas bandas.
Veja o Elma abrindo o show com “VATARNO: i. Cavalcante // ii. O Passo // iii. Trono de Sangue // (mental)”:
Fotos Bemônio: Elson Barbosa