Os elementos dispostos nos mais diversos tipos de música podem significar um encontro com o conhecido mas também uma abertura entre suas inumeráveis multiplicidades. Se a realidade é demasiada concreta, o realizável (o que se extrai da objetividade) é subjetivo e ilimitado. Considere que cada músico traga consigo seu modo territorial de ver as coisas. Ainda assim, estranhamente, numa época cyberssistemica, o que se repara muitas vezes é a reprodução de preferências que negligenciam adventos externos. “Reconhecer-se em instâncias desconhecidas/instáveis”, apesar de parecer um troço sem sentido e chato, é uma maneira de ampliar possibilidades e território. O artigo a seguir é uma tentativa de expansão e interação com a produção contemporânea.
I – Fragilidade e Incertezas
Dor tem muito a ver com sobrevivência. Em um sentido mais direto, a possibilidade da dor evoca reações que estimulam o combate, a reação etc. O Eletrique Zamba, em “Vol. I”, afirma a dor como matéria-prima pra compartilhar seu “furacão tranquilo”, ou seja, é admitida a complexidade do que se vê pela frente mas também a tranquilidade – apesar da dor – pra prosseguir fazendo o que acredita ser certo. Os elementos sonoros também podem ser adjetivados de “furacão tranquilo”, pois apesar da considerável diversidade sonora (e há muitos instrumentos divergentes reunidos) eles são guiados por uma certeza estética que contrasta com as letras que admitem fragilidade e incerteza.
Há de se reparar que a dor não impede o “viver” em nenhum instante de “Vol. I”. Com uma noção relativa da chegada da morte (ou dor, ou fim), o ser é impulsionado ao amor entorpecente, ao roçar de pernas – enfim, aos transtornos e fantasias sentimentais demasiados humanos. Ao ponto em que o realizável é imprevisível (compor, dizer, escrever) e o destino é conhecido (morte, dor, fim), tudo deve ser enaltecido e, pelo menos, tentado.
Assim como as letras de tímidas afirmações amparadas na noção plena (consciente ou semiconsciente) estremecem e soam – apesar da limitação da língua – abstratas ou oníricas, evidentemente a sonoridade segue por este caminho. As guitarras ficam psicodélicas, vozes duma espécie de tribo surgem atrás da voz principal, a percussão faz o pano de fundo pra uma canção de amor se transformar num rito. Em Teresina, no Piauí, há com certeza muita coisa pra se observar.
Consideravelmente, é tudo simbólico. São todas externalizações pra preencher um ente ávido por complemento e lotado de desejos. Deixando de lado o fato que cada um carrega o seu tipo de desejo, nesta abstração universal (desejar), a música aponta caminhos: fatores sonoros, líricos e imposição de mercado. O mercado contemporâneo é um pouco mais revestido de uma suposta democracia que, efetivamente, nunca teve (não se enganem, as pessoas ainda ouvem as mesmas coisas, apenas se tem o conhecimento das variações dos nichos).
O desejo por rebelião (evidentemente justificada, considerando que se vive no Brasil) é também uma forma de preencher uma entidade abstrata que se pode caracterizar como pessoa, consumidor, ouvinte, criador etc. Os temas do Eletrique Zamba percorrem desde a hipocrisia individual, a descrição da pessoa amada à liberalização da maconha. Esta, segundo eles, desencadeia uma liberdade. Pra além do importante assunto sobre legalização das drogas, surge uma gravação (em “4I20”) que relaciona o nascimento da bossa nova à cannabis. O Eletrique Zamba utiliza duma ferramenta histórico-cultural pra turbinar sua luta. É uma espécie de reconhecimento, apesar do tempo ou localização territorial.
Em “Samba Vadio”, a faceta identitária expõe uma contrapartida à “4I20”. Se você não está do meu lado, eu não posso fazer muita coisa por nós. É uma canção que certamente elogia a preguiça e a vadiagem. O tal do “furacão tranquilo” retorna em “O Dia Todo”. Na música, uma hipnótica guitarra repetitiva e distorcida introduz, em conjunto com uma mulher apresentando a previsão do tempo e som ambiente, a divergência possível de sensações atravessáveis num dia.
O desejo está em desacordo com a previsão e almeja um dia diferente, que em sua complexidade relembre e traga a pessoa amada. Depois, é admitida a possibilidade de fingir um amor. Este fingimento é resultado da dor citada no começo do texto. Longe dum julgamento moral, nós fingimos, nós fumamos, nós dizemos coisas por dizer e ouvimos coisas por ouvir pra tentar justificar uma instabilidade. Quando compartilhada com outrem, a dor fica mais tragável, embora a incerteza e fragilidade não se dissolvam. Além disso, ambas são instrumentos que permitem um envolvimento cru com algo além de si.
Recorre-se ao que quiser: à formação histórica, a um dia chuvoso entediante, a uma memória perdida a qual se tenta reconstruir através de experiências novas que ressignifiquem tudo, até mesmo o esquecimento. O movimento errante é encontrado nas poesias, nos verbos, na arte cênica, no cinismo, na ironia, na sinceridade. Pra além da qualidade suposta de tais multiplicidades, reside um movimento inaugural, um gesto originário. A música aponta um movimento que jamais paralisa.
O movimento errante pode ser encarado como um processo de loucura. A loucura detecta as representações bruscas e entorpecentes de músicas do “nicho”. O sujeito ouve o que gosta, o sujeito fala sobre o que gosta. Até se chegar num ponto bem básico que eu enrolei: é possível acessar diversas instâncias através do escape do terreno saturado da imposição do “gosto” e se reconhecer em trânsitos, anteriormente, completamente alheios ao que tua experiência imaginava, criava ou antecipava. A música, enquanto discurso múltiplo, legitima interpretações mas estas só existem quando provocadas.
II – Identidade Musical
Uma tese de identidade musical “própria” é afirmada pela maioria das pessoas.
A música contemporânea é discursivamente dominada pelo espelhamento de afinidades, a ponto que estas reproduzem microanálises que falam mais sobre a delimitação de alguém do que a relação entre a música analisada e o contexto. Pro God Pussy, a música possível, a música que diz “algo a mais”, deve cavar fundo no arquitetado pra explorar outros terrenos. O principal símbolo desta “destituição do estruturado” é, claro, os próprios discos lançados incessantemente pelo músico.
Não, a música não é este processo de destituição. A música é cega, uma concretude física vagando por um Nada. É sintomático que ela seja tratada como símbolo pleno da afirmação de alguém – se fala do “background” de certo movimento, como um suposto gênero nasceu, suas histórias e fofocas. Pra além da identidade, o God Pussy trata a música como manifesto que, embora carregando as revindicações sociais e políticas do criador, enfrenta o ouvinte sem a armadura simplista da imposição de convicções.
O debate levantado em “negerplastik” não foge desta manipulação barulhenta que, paradoxalmente, é uma fonte mais acolhedora pro ouvinte que habita nas possibilidades. “negerplastik” (traduzido pro português como “Escultura Negra”) é um trabalho do escritor Carl Einstein sobre a avaliação estética impossível da arte africana através do colonialismo europeu. O ceticismo com que a arte africana é tratada pela crítica europeia insulta as multiplicidades possíveis advindas de qualquer criação artística.
O processo do músico em se alinhar a uma análise importante da escassez crítica sobre uma movimentação artística valiosa (a africana) reflete um mercado que cria seus produtos e simplesmente anula qualquer outra esfera criadora. Pois este mesmo “reconhecimento” que muitos afirmam quando citam uma penca de bandas favoritas pelas quais “se identificam” é um retrato cruel do empobrecimento das possibilidades. A música se torna apenas consumo incessante. Com isso, é apontada não apenas a problemática da arte africana como pode ser reinterpretada no ciclo vicioso que é a produção/crítica musical atual.
Assumindo a ironia de que o God Pussy também é “música de nicho”, há de se notar no trabalho do músico uma espécie de não autoridade que justamente permite uma radicalização extrema. Pra “encarar” esta música o ouvinte tem de ir despido de necessidades tais como “se identificar” porque é justamente no movimento desconhecido que se reconhece a autoridade da existência alheia. Como Einstein afirma, pensar arte é diferente de criar arte. Há a necessidade de se despir dos seus preconceitos. Praticar o desconhecido requer mais trabalho e é mais cansativo, mas certamente andar noutro terreno carrega mais possibilidades. O instável há de se expandir:
1. O Testemolde em “Pausa” (veja mais aqui), em primeira instância, parece permanecer refém duma fórmula perceptível em outros lançamentos. Mas, logo pelo meio da primeira faixa, a ofensiva é estabelecida e, embora eles não trafeguem necessariamente por algo imprevisível, o desenrolar (baixo arrastado, guitarras sujas e melódicas) não permite naturalidade (enquanto reprodução do óbvio) e a complexidade das duas canções do EP entram no clímax lá pelos dois minutos da segunda faixa. Eu sinto uma aproximação intensa em tão poucos minutos do EP – é como se ao mostrar a indecisão sobre como prosseguir o embate criativo da banda interagisse com o ouvinte. Mais um vez: reconhecimento. Não saber o que surgir – mais do que “surpreender” o ouvinte – implica na aceitação contínua do desconhecido. Eu tento seguir, por exemplo, a bateria em “ASR13″ – Diego Dias/Marcos Thanus/Michel Munhoz – Live at Jazz no Hope 8” mas guitarra, clarinete e saxofone interrompem qualquer continuidade possível pra estabelecer outra continuidade – uma de tensão, que alterna em cortes bruscos.
2. Agora, não dá pra desconsiderar a sedução que a música identitária causa. Eu diria, de forma bem óbvia, que ninguém é obrigado a ouvir nada. O ouvinte, no entanto, anula a difusão e isso bloqueia a inferência e fortalece uma possibilidade dentre tantas. Se a música contemporânea continua no impasse da centralização de consumo, fica evidente que há uma sala duma mansão bem lotada enquanto todas as outras estão apagadas e desocupadas. Qualquer que seja o canto que a pessoa está localizada nesta sala, ela está vendo muito pouco e presenciando basicamente nada.
3. Há a História Musical e se o estudo acerca desta aponta apenas extremismos tais como música de massa ou música erudita, um turbilhão de coisas passa desapercebido. Até aí tudo bem, há uma produção incessante de livros e artigos que abordam toda a larga produção entre estes dois polos e até mesmo além destes. No entanto, não é apenas neste tipo de estudo que a música precisa ser apresentada. Há de se fazer um projeto impossível, o próprio-ouvinte, uma variação entre estes extremos e ele mesmo descobrir a imanência de estéticas anteriormente inimagináveis.
A base de se locomover no possível é uma ideia muito particular. A música mesmo não precisa duma crítica especializada sendo que sua assimilação é muito mais fluída se o ouvinte simplesmente for nela. Isso afirmado, pretende-se por este diagnosticar as multiplicidades que a música consegue me levar e, esperançosamente, apresentar pro leitor estas multiplicidades percorrendo um pouco da produção contemporânea nacional.
III – Assimilação da Realidade
O perigo é ficar estagnado. O perigo é passar o resto dos meus dias com uma dor de cabeça depois de tanto ver televisão, aquela tímida dor de cabeça depois de ficar basicamente horas e dias no mesmo transe passivo. Eu encaro o ceticismo desta possibilidade como uma espécie de ameaça. Talvez tudo escrito até aqui seja mesmo uma crise dos vinte e poucos anos, mas se for encarado deste modo, o ponto da interação musical ainda permanece fortíssimo. Sua representação, suas mais variadas formas arremessadas no mundo aguardando um contato – pra além da produção excessiva, há de revelar o diferente. O Outro. Confiar na potência do desconhecido. Uma Verdade potencialmente oculta. E é a partir do discurso da busca de todo este estranhamento que estas palavras são devotadas.
Empiricamente, os músicos sempre suspeitam de que o crítico não tem ideia do que fala e isso, naturalmente, desorienta o ouvinte. Concordando ou não com os músicos, a variação crítica se mostra fragilizada ao estabelecer resenhas/ensaios/artigos pautados na adjetivação. Adjetivar (tal instrumento está bem afinado, tal música fala mal sobre aquilo) é o reconhecimento – na maioria das vezes não intencional – de que uma relação de distância foi estabelecida com o objeto e apenas dialogamos sobre este de um ponto longínquo. Em suma, não há interação.
Nada é mais representativo da dissolução desta distância do que o split “Macronympha / Natural Nihilismo” em que a abordagem brusca barulhenta inicial impede um relação pautada no distanciamento. Aqui está um dos trabalhos mais radicais neste ano. Além disso, ele recoloca a abordagem do horror-inicial (fome, frio e esquecimento) ao lugar do incômodo e densidade incontestáveis. Todo debate acerca do tema não pode perder o elemento-espanto. No entanto, ao avançar do split, a violência é horizontalizada. De modo que talvez fique mais assimilável mas também – cada vez mais – figura em todo horizonte. O Macronympha e o Natural Nihilismo constroem um cenário-morto. Pra eles, a finalização não ressoa em paz – mas um desencantamento expandido com a assimilação da realidade ao redor.
A conclusão do Macronympha e do Natural Nihilismo aborda este horror, mas também exige um corpo ativo. Eles garantem a dificuldade da interação, mas nunca negam esta possibilidade.
Por mais paradoxal que isso seja, o ser é retirado da contemplação dum horizonte que se expande em horror pra interagir com o movimento expansivo – a microfonia extremamente incômoda da primeira faixa não dá espaços, ao passo que a terceira parte desta mesma faixa deixa no ouvinte uma reação possível (não é preciso mais abaixar o volume, dá pra ir aumentando aos poucos etc). A razão pra aproximação lenta baseia-se no radicalismo originário, é claro, mas também no método de abordagem utilizado pelos músicos.
Macronympha e o Natural Nihilismo exemplificam o movimento de abordagem (mais especificamente nas três peças do Natural Nihilismo) e da destituição completa de qualquer distanciamento (a soma integrada da última peça, pelo Macronympha). A música, pra eles, tem um fundo bem racional que aparentemente se desintegra na aproximação do fim. Eles não hesitam e criam o momento deles. Eles tomam tudo. Eles podem não ter letras, mas falam dum espaço bem específico.
Se você conferiu estes últimos citados, é perceptível uma ampliação múltipla, ao ponto que tais audições engajadas auxiliem na movimentação dum novo ouvinte.
A parceria Bella e (Thomas) Rohrer, em “In\On” (leia aqui em detalhes) cita o filósofo neoplatônico Plotino e nos remete a uma alma humana e também aos polos (“em cima”, “embaixo”) situados tangencialmente a ela. Mas se estávamos tratando sobre a multiplicidade, o que se ouve no disco é uma movimentação em direção ao uno (ou alma).
Os músicos nos evidenciam fragmentos de seus processos criativos na confiança de que não permaneceremos passivos. E se estamos ativos, em algum ponto eles percebem o movimento do outro (por exemplo, a reação física numa performance sonora). Em última análise, é um ciclo oculto de circular nas multiplicidades pra atingir, em raros momentos, a unidade; a alma de que falam Bella/Rohrer.
Nós nos encontramos, portanto, em diferenças conceituais demasiadas abstratas mas reagindo fisicamente (aumentando o volume, abaixando em função de incômodo, encontrando uma evolução imaginada, encontrando um clímax impensável).
Desta maneira, o procedimento de descobrir, de permitir ramificações, se mostra produtivo de uma maneira que anula uma pretensa crítica e supostas demandas de mercado – o que está em jogo é o objeto musical e a interação do ouvinte. Se a música é movimento, a solução estática de referências conceituais ou genéricas não apenas reproduzem um discurso arcaico como também são um retrato considerável de certa estagnação presente. As novas produções de demandas jamais poderiam estimular todo o processo interativo evidenciado até aqui.
Por isso, é essencial relembrar de como se chegou aqui: através dum disco cuja matéria-prima é a dor, permitiu-se um olhar ao redor da música contemporânea nacional enquanto potência múltipla; este movimento intenso esbarrou em interações movediças, duradouras, surpreendentes e encantadoras. Não, não se espera de outrem semelhantes reações, mas é estimulante encontrar o que supostamente não existia fora duma demarcação delimitada por sabe-se lá quais críticos e sabe-se lá qual processo de massificação.
Consequentemente, é preciso notar que não há a ideia de “deixar de lado” produções hiperpopulares ou algo parecido, mas simplesmente aceitou-se ouvir os álbuns aqui mencionados em função da abrangência potencial. Somente a interação (que mira numa sinceridade) pode desbravar estes recônditos abarrotados de ruídos estáticos e sons indiscerníveis. Este movimento tem de ser crônico e não limitado (por exemplo, apenas passar por cima do disco uma única vez).
Nossa meta é evidenciar a exposição do ouvinte a certos fragmentos musicais e como estes recolocam cartas na mesa, seguindo um padrão específico de consumo nunca em jogo. Este objetivo é muito menos ganancioso do que parece: os discos estão aí, vagando pra uma simples apreensão.
A tese de que este tipo de música é apenas barulho também encontra esboços de contraposições aqui (óbvio que qualquer categorização é outro tipo de delimitação). Discursos (música) se estratificam em um mesmo processo volumoso; afinal, tudo citado aqui é, inegavelmente, música. A demonstração da exploração destes espaços é um processo bem básico – é simplesmente só ouvir os discos que eles provocam o pensamento, as reações etc.
Ou seja, não há caminhos, não há teorias (apesar de ser inegável a contribuição de uma penca de estudos) que assimilem melhor um espaço originário do que uma audição sincera. Naturalmente, estes fragmentos de interpretações de discos também podem auxiliar à medida que fornecem alguma rigidez, são apenas uma possibilidade rígida (o leque interpretativo é ampliado e não reduzido). Estes pontos foram ocasionalmente discutidos (a ampliação de possibilidades) e o ouvinte pode somar neste vago espaço criativo. Tudo que nós precisamos saber é que a disposição se multiplica e ornamentações de produção/identificação/consumo/preferências não deveriam ser evocações que desorientem a percepção de tudo o que a música pode trazer.