ENTREVISTA: GRAFTON TANNER – ASSOMBRADOS POR ASSOMBRAÇÕES ANTERIORES

Preso no inumano e após passar horas e horas no notebook, comecei a ler “Babbling Corpse: Vaporwave And The Commodification Of Ghosts” (2016), de Grafton Tanner, em que o autor explícita a relação entre capitalismo, retromania e produção musical e vê na vaporwave uma possível interrupção no ciclo estático do consumo musical. Como sempre ocorre quando um livro te atinge certeiramente, senti-me perturbado e identificado com a descrição de Tanner sobre a mundanidade que a mídia eletrônica exerce em nossas vidas, deixando-nos alheios em nossos próprios espaços secretos e privados.

Entre todos os pensadores que Grafton pega emprestado pra dar corpo a sua teoria, destaca-se a voz do autor sobre um mundo em que a centralidade humana passa a ser dividida com a mídia eletrônica e, consequentemente, deixada de lado pela aceleração tecnológica. O escritor norte-americano acredita que a “estranheza da contemporaneidade” reside no fato de que nosso reinado privilegiado está sendo apagado por nossas próprias ferramentas auxiliadoras. A tragédia não reside somente aí, mas numa fobia constante ao realismo que urgentemente precisa ser desfeita pra que se possa repensar as relações intramundanas. Já não me lembro de nenhuma relação que eu tenha que não seja fortemente mediada pelos bens de consumo e é urgente a necessidade de especular outra realidade que não essa aparente e superficial.

As formas novas de fazer música podem auxiliar neste processo de “voltar ao humano enquanto hospedeiro do pensamento”. Uma produção musical que possa atravessar o sons abafados das televisões e não se sujeitar a aceleração da rede mundial de computadores e evidenciar uma outra realidade, descoberta dos sintomas virtuais que fraudam todo um universo. Desnudar a realidade devolvendo-lhe aspectos de estranheza que foram camuflados pelos bens de consumo parece ser uma das propostas mais intrigantes que Tanner vê na vaporwave. Agarrados ao passado comercial, nos transformamos em meros objetos alheios às outras possibilidades, pois estamos demasiadamente mergulhados nas delirantes cores emitidas pelas mídias eletrônicas (como em “Blade Runner”). A falência das relações significa que o “imediatismo preciso” inaugurou um espaço não-humano em que simulações de humanidade (curtidas, matches etc.) irrompem nos espaços de conexão. Ainda é mais importante que tanto um gênero musical quanto diversas outras expressões culturais atravessem esse espaço autogerido pelas simulações virtuais e irrompam aspectos problemáticos desse clima do século XXI. O tema de Tanner funciona como forma de repensar essas relações enquanto também descreve na vaporwave uma forma de evidenciação deste estágio do capitalismo, a partir daí talvez seja possível construir uma resistência.

O nascimento da vaporwave possibilita essas reflexões porque sua fonte originária (normalmente) reside nos momentos históricos em que o fundamentalismo de mercado passou a ser a regra. É necessário especular outra realidade porque a expressão humana em todas as mídias está à beira da extinção. Um visão simplista sobre o gênero diz que isso é um excesso de apego ao passado, mas enquanto se mergulha nos fóruns e nas mais diversas plataformas em que os artistas se expressam, a dubiedade da simples afirmação anterior se ergue pra deixar evidente que é possível expressar nosso fracasso cultural ainda que não intencionalmente. Hoje está na morda referir-se à morte das utopias do século passado, porque a aceleração das informações torna toda história obsoleta. Restam os bens de consumo fáceis e acessíveis e os resíduos do passado não são mais a contracultura dos anos 1960 e 1970, mas a fascinação pelos comerciais e videogames que emergiram a partir da década de 1980. Contra esse realismo virtual forjado, que descentraliza o humano e incorpora um niilismo baseado em fáceis distrações, é preciso especular uma outra realidade e uma forma de acessá-la sem que seja por meio de distúrbios psicológicos ou a erradicação taoista em algum campo isolado do planeta.

Tudo isso foi possível perceber a partir da leitura de “Babbling Corpse: Vaporwave And The Commodification Of Ghosts”. Eu fiquei curioso sobre a posição de Grafton Tanner em relação a alguns temas e ele foi gentil o bastante pra me responder por e-mail:

Floga-se: Ei, Grafton, uma coisa que me pergunto é sobre o que você acha da “evolução da vaporwave“. Parece que temos agora mais faixas baseadas no ambiente do que os primeiros discos subversivos, interagindo mais com a tradição musical do que desafiando nossa noção de passado musical.

Grafton Tanner: Eu não me deparei com ambient vaporwave tanto quanto vaportrap, future funk etc. Eu considero estes menos como subgêneros de vaporwave e mais como apropriações. Colocar “vapor” antes de qualquer coisa implica um tipo específico de técnica de sample ou uma fonte de sample específica. Se é ou não subversivo, não posso dizer. Não parece assim.

F-se: De que formas os gêneros subversivos da música podem nos despertar do pesadelo capitalista? Como escritores sobre música, como identificamos esses gêneros na produção musical excessiva hoje em dia?

GT: Qualquer coisa “nova” pode ser um choque. Se a música é descaradamente nostálgica, fico imediatamente suspeito. Isso não significa que toda a nostalgia é politicamente retrógrada. Certamente, podemos ser nostálgicos pela contracultura dos anos sessenta ou por vários movimentos sociais do passado, desde que entendamos que a resposta não está em retornar completamente ao passado. Mas esses momentos históricos não estão em circulação. Em vez disso, a cultura ocidental é nostálgica nos anos oitenta e noventa – períodos durante os quais surgiram as primeiras tensões do fundamentalismo de mercado. Como escritores sobre música, devemos procurar o novo e sinalizar essa “armadilha” da retromania quando a ouvirmos.

F-se: Há uma passagem em seu livro que você cita Marshall McLuhan de que a mídia assombrada como a televisão e o rádio são “capazes de gerar seus próprios mundos espirituais autônomos”. Mais precisamente, como essa relação de mídia conosco pode criar os fantasmas modernos?

GT: No século XXI, somos assombrados por fantasmas dos fantasmas que se manifestaram a partir da tecnologia pré-digital nas décadas anteriores. Somos assombrados por assombrações anteriores. A mídia contemporânea está repleta de mortos-vivos: reinicializações, remakes, sequências, prequels, retrospectivas e easter eggs.

F-se: Pra Derrida, existem apenas restos, vestígios de traços. Como alguém que escreve sobre música, posso sentir essas palavras profundamente. Em que formas o gênero vaporwave pode escapar de seguir os vestígios do seu próprio material de busca e dar aos ouvintes uma alternativa à música mainstream atual?

GT: Vaporwave é inteiramente sobre vestígios. E é uma boa interrupção da retromania. É meio que uma lógica hacker, que desconstrói enquanto se move dentro dos sistemas.

F-se: Como um alguém que escreve sobre música e, mais importante, um ouvinte de música, o “aborrecimento” soa como um aspecto importante pra você ao verificar novos álbuns?

GT: Eu não diria que estou aborrecido quando escuto música nova. Eu não encontro novas músicas mainstream que eu gosto muito. Neste ponto, tenho a tendência de filtrar músicas que considero frustrantes politicamente ou esteticamente.

F-se: Como pensador cultural e político, como soa pra você esse sintoma da contemporaneidade: a humanidade se apagando das expressões culturais atuais? É um sintoma, uma expressão artística? Ou um grito desesperado por ajuda?

GT: Os seres humanos ainda estão muito no centro da contemporaneidade. As tendências da filosofia, como o OOO, o pós-humanismo e o materialismo especulativo, buscam descentralizar o humano, porque essas ideias circulam muito bem na sociedade pós-fordista (na qual os algoritmos geralmente têm mais articulação do que pessoas). Mas ainda há pessoas por trás desses algoritmos e expressões culturais.

F-se: Há um termo Lovecraftiano no seu livro que eu amo; quando você falou sobre “Far Side”, de James Ferraro, usou “horror cósmico”. Especificamente sobre este álbum, e eu mesmo acho as obras de Ferraro perturbadoras, como isso faz você se sentir assim?

GT: O horror cósmico, pra mim, é um horror do exterior. O que quer que exista no caos fora do limite do pensável é sublime e horripilante. Os pensadores têm tentado chegar ao exterior ou dissolver os limites entre o exterior e o que está dentro (ou seja, o sujeito humano, a realidade, o conhecimento e qualquer outro termo ontológico ou epistemológico ocidental que você queira). O trabalho de Ferraro soa como a entrada do exterior – a intrusão de tecnologia e mídia no mundo da vida humana. Como vaporwave, assemelha-se à música feita por máquinas (ou fantasmas) ou em elogios a máquinas (ou fantasmas). Mas também é crítico de tal invasão maquínica.

F-se: De maneira mais pessoal, como a Internet afetou a maneira como você consome e busca música?

GT: Pra mim, a Internet mudou tudo. Antes de comprar meu primeiro laptop em 2009, comprei CDs e os escutei no meu Walkman. Quando adolescente, eu reclinava na minha cama e ouvia um álbum inteiro do começo ao fim. Eu cresci em uma casa sem um computador até que eu fizesse dezessete anos, e então meus pais compraram um. Depois disso, eu fiz muito streaming de muita música no Limewire, que era uma réplica do Napster. Mas tudo mudou quando comprei um laptop e meu primeiro smartphone. Eu ainda faço questão de comprar CDs apesar disso. Eu gosto da qualidade do som mais do que um MP3.

F-se Como os microgêneros (como a vaporwave) ainda podem ter poder político quando tudo o que vemos ao redor são bens de consumo etc.?

GT: Embora as realidades das corporações e da mídia muitas vezes pareçam apagar o Real, o Real – com seu poder político – ainda existe. E mesmo em uma sociedade consumista, as possibilidades políticas continuam a existir. O Real sempre se rompe em fissuras. Receio que, uma vez que começamos a pensar que não existe realidade fora do consumismo, não vamos mais lutar por metas emancipatórias.

F-se: Tenho notado, pelo menos na crítica musical brasileira, que a chamada “experiência sensorial” está perdendo muito espaço pro que eu gosto de chamar de “tag music”. Uma breve explicação: as resenhas de música gostam de ter um tipo notório, técnico e específico de escrita: é mais fácil abordar “tags” e gêneros específicos do passado do que descrever a maneira como a música se relaciona com as experiências. Eu não sei se você pensa o mesmo, mas como você se sente sobre a crítica musical contemporânea?

GT: Pra mim, a boa musica evidencia a música derivativa quando a ouve. James Parker e Nicholas Croggon escreveram sobre isso pro Tiny Mix Tapes. De vez em quando, eu leio uma ótima crítica musical, mas na maioria das vezes elas são retrospectivas ou reedições. Muita escrita sobre música é relacionada a marcação e hyperlink. Estou sempre interessado em jornalismo musical que não comece a partir de uma perspectiva pré-decidida, que não apenas se apaixona por um artista simplesmente porque esse artista é aclamado, e que se abstém de lançar rótulos de gênero em um álbum porque esses gêneros têm algum tipo de cachê cultural.

F-se Em seu livro, quando você falou sobre o New Dreams Ltd e o Internet Club, você usou o termo “não-lugar”. O que é esse “não-lugar”? Está além do capitalismo ou é um vácuo que podemos encontrar quando estamos andando pelo shopping?

GT: Não-lugares foram primeiro teorizados, no meu conhecimento, por Marc Augé. Ele os considera espaços anônimos onde o capital flui – aeroportos, shoppings, salas de espera, cadeias de lojas etc. Eles dissolvem noções de localização e ajudam na criação de uma monocultura.

F-se: O quanto você acha da vaporwave como uma crítica consciente ao capitalismo tardio ou são apenas alguns adolescentes através de memes e trolls?

GT: Independentemente da intenção, podemos lê-la como uma crítica ao capitalismo de consumo, bem como críticas de temporalidade, gênero e afeto. Mesmo que seja troll, ainda estou interessado em estudá-la. Nós temos dito essas mesmas coisas sobre Warhol por meio século.

F-se: Eu não assisti, mas o novo filme de (Steven) Spielberg (“Jogador Nº 1”), pelo menos no Brasil, está sendo anunciado como uma regressão à nostalgia. É exatamente o tipo de fantasma mercantilizado que você nos alertou em seu livro?

GT: Absolutamente. O filme de Spielberg não é apenas uma armadilha retrógrada pura, mas também um plugue sem vergonha pro mito cansado do sublime digital, que é a crença de que a tecnologia digital descentraliza o poder e tem a capacidade de introduzir algum tipo de utopia. No meu próximo livro, no qual estou trabalhando agora, dedico uma seção inteira pra criticar esse filme.

F-se: Como fã de música, tenho gostado muito dos trabalhos da Dream Catalog. Quais são os outros selos chamando sua atenção?

GT: Não me atualizo muito na vaporwave porque não a considero tão atraente quanto algumas das obras anteriores. Oneohtrix Point Never sempre me surpreende, mesmo que ele não seja estritamente um produtor de vaporwave (ele, intencionalmente ou não, ajudou em sua invenção). Eu ouço muita música além de vaporwave também. O novo álbum do Iceage (“Beyondless”, 2018) é ótimo, assim como o lançamento de Torres no ano passado, “Three Futures”.

F-se: Há uma passagem vibrante em seu livro quando você usou palavras de Adam Harper pra descrever a música aceleracionista. Quais são alguns álbuns que você acha que podem se encaixar nessa categoria? E por quê?

GT: Neste estágio, a música pop contemporânea é aceleracionista. Suas batidas, produção e letras denotam uma espécie de transcendência através da velocidade e do consumo. Artistas como Taylor Swift, Ed Sheeran, Drake e a maioria dos músicos de country são financiados por grandes quantidades de capital pra vender grandes quantidades de produtos, sendo a música um deles. Eles se encaixam perfeitamente dentro de uma sociedade agro-capitalista.

F-se: É a última pergunta. Obrigado por isso. Como os escritos de Mark Fisher podem se envolver, simultaneamente, com o capitalismo e a crítica musical?

GT: Mark sabia como criticar com precisão tanto a indústria da música quanto o capitalismo em geral. Ele considerou muita música contemporânea como regressiva. Pra ele, qualquer coisa verdadeiramente nova seria subversiva pro capitalismo, mas o capitalismo não gosta de ser subvertido. Então acabamos em uma espécie de estase onde nada radical está invadindo o mainstream. Em vez disso, tudo fortalece os pilares do capital. Ele continua a ser uma das vozes mais importantes do nosso tempo e sinto muita falta dele.

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