Uma das bandas mais estimulantes dos últimos quinze anos, o Ulcerate, com o recente “Stare Into Death And Be Still”, tem estendido as barreiras do death metal, com uma abordagem cada vez mais atmosférica e transição entre a bateria violenta dos primeiros álbuns e uma espécie de caos em decomposição dos últimos trabalhos.
Conversei com o baterista Jamie Saint Merat sobre disciplina artística, composição e novas direções pra uma banda tão extrema e técnica.
Floga-se: Vocês têm um trabalho imponente que se estendeu ao longo das últimas duas décadas e ainda assim conseguiu surpreender positivamente os ouvintes com a técnica e dissonância do último álbum. No estúdio, você se auto-impõe o desafio de não repetir seus lançamentos anteriores, ou é algo que acontece porque vocês estão juntos há tanto tempo e são grandes músicos?
Jamie Saint Merat: É definitivamente uma auto-imposição. E, naturalmente, fica muito mais difícil quanto mais material você escreve. Então, estamos seguindo uma rotina muito mais rígida e rigorosa tanto pra escrever quanto pra pré-produção. Definir restrições e limites bem definidos pro álbum desde o início tem nos rendido resultados muito satisfatórios. O mesmo pode ser dito de qualquer empreendimento criativo, nada pior do que olhar sem rumo pra uma folha de papel em branco. A estagnação também é uma morte lenta e de merda, que gostaríamos de evitar.
F-se: A mudança de direção pro “Stare Into Death And Be Still” foi inteiramente planejada depois do “Shrines Of Paralysis”, ou estava acontecendo enquanto a banda estava em turnê e ensaiando?
JSM: Tivemos um ano inteiro sem sequer pensar em escrever uma única nota após a conclusão de “Shrines…”, o que é bastante normal pra nós. Gostamos de sentar com um álbum e focar na execução ao vivo sem distração. Isso tende a nos dar o melhor senso de retrospectiva. Normalmente, também estamos bastante esgotados com o processo de composição. Então, quando parecia que era hora de começar a pensar em novo material, no início de 2018, começamos a delinear pra onde precisávamos que as coisas fossem. Depois de seis álbuns, era hora de traçar uma linha divisória entre pra onde os últimos cinco álbuns nos levaram e pra onde precisávamos mudar a partir daqui.
F-se: É algo que podemos esperar da banda a partir de agora, lançamentos menos obcecados com bateria furiosa e algo voltado pra uma profundidade rítmica que é algo mais “desolado”?
JSM: Nossos gostos coletivos estão obviamente mudando conforme envelhecemos, e há algo infinitamente mais poderoso em explorar esse território sônico. Pessoalmente, estou muito mais interessado em um território mais profundo e escuro do que em uma surra sonora claustrofóbica. E, independentemente disso, temos cinco álbuns anteriores que funcionam mais nesse espaço. Mas não somos nós evitando o death metal em nenhum nível, estamos apenas recalibrando os elementos do nosso próprio som pra nos manter com fome.
F-se: Quando pude ver toda a arte do “Shrines Of Paralysis”, a sensação um pouco angustiante que o álbum havia me causado aumentou. É quase como uma rigidez inescapável de inércia em face da morte. Como você percebe essa complementar relação que a arte gráfica pode causar à entidade sonora?
JSM: Acho que é uma reação perfeita, pra ser honesto. Esse é exatamente o ponto, ela fornece uma representação visual do som, uma relação simbiótica. Mesmo capas objetivamente ruins (não necessariamente estéticas – mais no sentido de que não retratam uma caracterização forte da música) farão crescer uma forte associação com o tempo, onde os dois são inseparáveis – há um milhão de álbuns clássicos que sofrem tal doença. A música é um forma de arte intensamente forte – as pessoas penduram toda a sua identidade em uma coleção de álbuns, por exemplo, então, pra mim, cada peça do quebra-cabeça tem que estar se comunicando da maneira certa.
F-se: A condição humana, parece-me, tem sido o tema central de seus álbuns. Esses conflitos internos são apenas uma extensão artística de como vocês percebem o mundo enquanto seres humanos?
JSM: Absolutamente. Não há espaço pra ironia ou irreverência. Então, cada faceta é uma extensão de nós mesmos. Todos nós vivenciamos no dia a dia as falhas e fraquezas do homem, não importa quão pequenas ou aparentemente triviais. E apesar de todo o bem que a humanidade alcançou, a espécie é, em última análise, maligna e egoísta como um todo. A história mostra que somos uma mistura mortal de profunda arrogância e ignorância, e está vindo à tona que nossos erros provavelmente serão o nosso fim.
F-se: A arte de seus álbuns é totalmente controlada por você e são totalmente digitais. Isso está relacionado a ter controle total do processo artístico da banda ou é algo que você já trabalhou antes da formação da banda?
JSM: Uma combinação de ambos, com toda a honestidade. Quando começamos a banda, nasceu da necessidade – morar na Nova Zelândia com fundos limitados foi um grande fator, mas também me pareceu totalmente natural pegar essa fatia, já que eu já estava estudando design gráfico. E uma vez que as coisas estavam bem encaminhadas, a estética em que havíamos tropeçado ao adotar uma abordagem DIY começou a parecer menos um compromisso e mais algo de que poderíamos nos orgulhar, no sentido de que era nosso e somente nosso.
F-se: Embora sonoramente vocês divirjam muito do catálogo da Debemur, foi incrível como seu conceito pareceu “fazer sentido” junto com as outras bandas de lá. Como tem sido o processo de trabalho em conjunto com a Debemur?
JSM: O catálogo da Debemur Morti pra mim sempre foi incrivelmente diverso, nunca pensei que haveria um desalinhamento ali. E a ideia original pra colaboração veio da parte deles. Então, nunca duvidei disso. Em termos de trabalho até agora – facilmente nossa parceria de selo mais natural e conceitualmente bem alinhada. Que é exatamente o que estamos procurando neste momento. Estamos apenas falando a língua um do outro, e a base lógica pras ideias sempre nasce de um ponto de ‘o que é melhor pra arte’ – uma qualidade incrivelmente rara de se ter em um selo, em que normalmente muito tempo e esforço são gastos simplesmente tentando aumentar a capacidade de ganho de uma banda. Mas a Debemur é gerida como um projeto-paixão, não como um “negócio” per se, que é como todos os verdadeiros projetos undergrounds devem ser executados – certamente sempre foi como dirigimos a banda.
F-se: Quem acompanha o metal há algum tempo sabe o quão inacessíveis algumas bandas são e que isso costuma fazer parte da cultura da música extrema. Como você avalia se vale a pena dar uma entrevista?
JSM: Estou feliz em colocar o trabalho em uma entrevista se houver algum tipo de ideia que o entrevistador esteja procurando que possa ajudar as pessoas a entenderem melhor de onde viemos. Mas não temos interesse em entrevistas como ferramenta promocional. É também a parte de ser uma banda que realmente parece “trabalhar”. Então, pode facilmente ficar cansativo responder ao mesmo conjunto de vinte perguntas repetidas vezes.
F-se: Como tem sido todas essas turnês ao longo dos anos?
JSM: Viajar pra nós sempre tem sido uma explosão total. Desgastante, obviamente, mas isso é parte do trabalho. Nunca tivemos como certa a capacidade que temos de viajar pelo mundo tocando as músicas que escrevemos, é a cereja do bolo pra nós.
F-se: Muitas bandas são conhecidas por incorporarem algo (positivo ou negativo) de onde se originaram. Como você acha que a Nova Zelândia está incorporada em seu trabalho?
JSM: Acho que todos os aspectos do nosso trabalho são moldados pelo nosso ambiente – o mesmo vale pra qualquer cena global, há sempre uma certa característica definível que a natureza insular de comunidades “isoladas” proporciona. Provavelmente, mais antes da explosão das mídias sociais, que é obviamente a época em que a maior parte do nosso trabalho de desenvolvimento aconteceu. Os neozelandeses normalmente têm um temperamento semelhante ao dos escandinavos – existe um estereótipo de que somos ultra-reservados e odiamos falar sobre nós mesmos, o que eu acho que flui por meio de nossa produção musical. A ideia do artista anônimo ou semi-anônimo é muito atraente – deixe a obra falar por si mesma. O paradigma atual da merda pessoal saindo pra que todos vejam na Internet é grotesco, mas não mostra sinais de desaceleração – e é absolutamente prejudicial pro trabalho criativo.
F-se: Você se sente um pouco frustrado porque geralmente é impossível conhecer, mesmo um pouco, as cidades que você visitou durante uma turnê?
JSM: Sim e não, já retornamos o suficiente pra maioria delas, de modo que sempre conseguimos planejar uma hora roubada aqui ou ali pra conhecer os principais locais. O que direi é que isso nos deu um grande gostinho de lugares que adoraríamos retornar e explorar fora do contexto de turismo.
F-se: Escutei seu último álbum várias vezes durante a quarentena e essa ideia de “petrificado, vendo a morte” é uma trilha sonora muito pertinente aos dias trancados, que parecem todos iguais enquanto observamos o mundo, como conhecíamos, caindo aos pedaços. Você sente essa relação?
JSM: Pra ser honesto, não tanto, nunca tivemos a intenção de documentar esse tipo de cenário, muito embora, de alguma forma estranha, o disco mapeia o que estamos vivendo quase perfeitamente.
F-se: Li que sua primeira turnê europeia envolveu o Krisiun. O Krisiun tem uma importância seminal por aqui. Como foi essa primeira experiência europeia? Na época, por que vocês estavam fazendo uma turnê europeia, pensaram “é isso, nós provamos algo”? E como era a relação com os caras do Krisiun?
JSM: Aquela turnê, pra nós, como nossa incursão inaugural, foi insana – grandes multidões e locais profissionais quase todas as noites, bem como um nível de camaradagem entre todas as bandas que foi realmente divertido pra caralho. Acho que definitivamente provamos algo pra nós mesmos – fazer uma turnê internacional da NZ sempre pareceu uma quimera. E o Krisiun foi ótimo, um prazer total fazer uma turnê com esses caras.