A passos lentos e de forma ainda tímida, a MTB vem gahando força e novos adeptos em território nacional, extrapolando os limites de tudo que é popularmente conhecido e feito por aqui. E apesar da pequena demanda, são notáveis e de uma enorme importância o surgimento de bandas que trilham por rumos ainda pouco convencionais e explorados atualmente na música produzida dentro país.
Nomes como Sobre A Máquina, Labirinto, Chinese Cookie Poets, Bemônio, Gimu e Herod Layne, além de praticamente todo o catálogo da Sinewave, vem dando ao Brasil diferentes perspectivas sobre a produção da nova música brasileira, ao virarem as costas pra tentaviva de revitalização indie e frustrada da bossa nova e mergulharem de cabeça em propostas artísticas não inéditas, mas que desafiam as concepções e obviedades propostas por uma grande parte dos músicos e absorvidas também por um grande número de ouvintes.
Gustavo Jobim, músico carioca, que há cerca de uma semana ainda era desconhecido por mim, pode ser facilmente acrescido a esta sublime leva de novos artistas que há pouco mais de uma década vem optando pela não adptação as tendências na criação de suas obras – embora, nessa entrevista, com bons argumentos, renegue a etiqueta de MTB. Ex-integrante da banda underground Zumbi Do Mato, Gustavo assina o projeto solo de mesmo nome desde 2000, sendo seu primeiro registro o álbum “Round Mi”, lançada em CD pela Som Interior, em 2003. Dentro de sua discografia rica e extensa totalizando doze discos, um dos destaques fica com o belíssimo “Belles Alliances”, que entre os dez colaboradores de várias partes do mundo, está o lendário artista alemão Conrad Schnitzler, membro fundador das bandas Kluster e Tangerine Dream. Schnitzler também foi homenageado em “Connection – Tributo a Conrad Schnitzler”, disco lançado em março deste ano.
Dono de uma sonoridade peculiar e inspirada principalmente na avant garde e música progressiva da década de 70, Gustavo Jobim nos brinda com excluvidade o disco “Manifesto”, lançado oficialmente hoje através de seu site oficial em pareceria com a coluna “Ezquizofrenizando”, aqui no Floga-se.
“Manifesto” é um álbum, conforme explica o próprio músico, “dividido em duas partes”. A primeira parte é uma descida constante ao terror. Na virada da primeira pra segunda metade, então, há um pouco de esperança mas, no final, é eterna mágoa”. Dentro do conceito de “Manifesto” há referências a dois dos artistas favoritos de Gustavo. Na primeira, a principal figura é o H.R.Giger, pintor surrealista suíço; na segunda, a referência é o Augusto dos Anjos, um dos maiores poetas brasileiros.
Ao todo, a obra conta com quatorze faixas, apresentando gravações que datam de 2001 a 2008, classificados pelo músico como sendo um disco onde as composições mais importantes e pessoais se encontram.
Guiado principalmente pelos sintetizadores Roland XP-30 e MicroKorg executados por Gustavo Jobim, “Manifesto” também traz as participações de Thelmo Cristovam (trompete), Filipe Giraknob (guitarra) e Eduardo Pletsch (guitarra) na canção “Eternal Sorrow”, faixa que encerra o disco com imensa intensidade. Enfim, “Manifesto” é uma obra singular, que apresenta a visão íntima do músico a respeito de seu passado, presente e o futuro, sempre tratados com genialidade e devoção à própria arte.
Confira abaixo a entrevista com o músico e descubra um pouco mais de suas particularidades, influências e pontos de vista.
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Floga-se: “Manifesto” trata-se de um apanhado de composições gravadas durante um longo período de sua carreira, certo? Conte um pouco sobre o processo seletivo das canções e sobre o conceito por trás da obra como um todo.
Gustavo Jobim: O Manifesto não é uma coletânea, é uma composição que levou dez anos pra ficar pronta. O álbum começou como conceito imediatamente depois de eu ter finalizado o trabalho no primeiro álbum. O conceito foi mostrar uma música que fosse mais “a minha cara”, sem a presença das influências tão óbvias como no primeiro álbum. Naquele momento, em julho de 2002, gravei um embrião deste novo projeto no período de alguns dias. Já estava inserido nesse conceito a ideia fazer algo à luz de um dos meus pintores preferidos, o H.R.Giger – a quem logo se juntaram o Augusto dos Anjos, o Erik Satie e no final o Giorgio de Chirico, representado pelo título da primeira faixa, “Disquieting Muses” (“Musas Inquietantes”). Estes quatro entram na história não exatamente como homenageados, mas como faróis, diretrizes. Aquele embrião gravado em 2002 já tinha a duração de um álbum, porém o resultado do conjunto estava muito aquém do meu objetivo. Aproveitei pouca coisa. Ao longo dos anos este continuou sendo meu projeto principal; enquanto isso, explorei uma variedade de outras formas de expressão musical, e publiquei os dez álbuns entre “Sinfonia No.1” (2005) e “Naïf” (2013). Mesmo assim, o repertório do “Manifesto” no conjunto continuou sendo o que eu tinha de mais importante. Como explico no encarte do “Manifesto”, só comecei a ver a luz no fim desse túnel em 2008, quando tinha todas as peças. Finalmente em 2012, quando o quebra-cabeça estava armado e o álbum recebeu o título definitivo, “Manifesto”, foi uma questão de tempo, pois eu precisava colocar os tijolos da minha obra nos seus devidos lugares, antes de mostrar este trabalho. Minha obra é em longo prazo.
Ouça “Disquieting Muses”:
F-se: Qual a repercussão dos discos lançados até o momento? Vale a pena investir neste tipo de música?
GJ: Não faço música pra atender a demandas externas. Faço em primeiro lugar pra mim mesmo, como quem costura as próprias roupas ou constrói a própria casa, tijolo por tijolo. Mas desde o início, venho recebendo respostas positivas seja de ouvintes, de pessoas que escrevem resenhas, de músicos novos e mais experientes. Isso é estimulante. Acho que as duas perguntas foram respondidas!
F-se: Fale um pouco sobre sua formação musical e o porquê de manter um projeto solo. Você já participou ou participa de bandas ou colabora com outros artistas?
GJ: Minha formação musical veio primeiro de gostar de música clássica, pra depois criar minhas próprias estruturas musicais imaginárias, e finalmente constatar ideias semelhantes na música eletrônica antiga da década de 1970, junto com os diferentes tipos de rock progressivo. Imediatamente comecei a realizar minhas ideias também, e fiz alguns cursos pra ter fundamentos teóricos e um mínimo de técnica instrumental. Meu som é muito pessoal. Das minhas expressões artísticas, minha música é a mais elaborada. É natural que eu continue fazendo sozinho, “mantendo um projeto solo”, como você define. Mas acho bom colaborar, sempre fiz isso desde o início, seja no contexto de bandas (já estive em diferentes contextos assim), seja em projetos pontuais. São oportunidades de explorar novas formas, e de alcançar outros ouvintes. O mais recente lançamento dessa linha é o “Normal Music”, feito com dois músicos experimentalistas da Sérvia e lançado em 2013, um trabalho bem interessante. Todas as minhas colaborações têm sido downloads grátis, o que creio servir também como estímulo aos ouvintes pra que se aprofundem no trabalho. Tenho várias colaborações em andamento atualmente.
F-se: São doze discos lançados em cerca de dez anos, como manter-se ativo sem grande apoio de gravadoras e público pra este tipo de música no Brasil?
GJ: Nesse ponto acho que meu modelo cada vez mais é o Conrad Schnitzler. É como comentei nas perguntas anteriores. O escritor escreve, o músico faz suas músicas. Se eu ficar pensando muito no tamanho do retorno que tenho, então paro de fazer, mas como o músico tem que fazer suas músicas, e por sorte o retorno existe, então não paro de fazer.
F-se: Em sua biografia, li sobre participações com grandes lendas da música experimental alemã como Faust, Damo Suzuki e Conrad Schnitzler. Fale sobre a experiência e o quão significantes foram estes acontecimentos pra sua carreira.
GJ: A música feita por esse pessoal é importante na minha formação, desde o início. O lance com o Damo Suzuki foi o primeiro reconhecimento mais significativo do meu trabalho, ainda em 2005, quando eu tinha somente dois títulos lançados. Então o convite que recebi por e-mail, do pessoal que organizou a banda de apoio do Damo, foi algo chocante e recompensador, ainda que eu tenha que ter financiado todo o processo da minha parte: obtenção da carteira da OMB, e as despesas da viagem. Já o Conrad Schnitzler sempre foi bem fechado no seu próprio mundo, porém recebia de portas abertas quem o procurava com boas intenções. E assim foi. Também em 2005 comecei o contato com ele via e-mail, mostrando minha “Sinfonia No.1” que havia sido dedicada a ele e ao Gustav Mahler. Ele gostou e retribuiu mandando alguns exemplares de álbuns da série privada dele (que consiste de 830 títulos). Alguns anos depois eu o convidei pra uma participação em álbum de colaborações, ele respondeu prontamente: “Sim”. O resultado é a faixa sem título misturando nossos dois pianos, no álbum “Belles Alliances” (2008). O lance com o Faust foi mais recente e veio também depois de um contato que eu vinha mantendo com uma das figuras originais da banda, o Jean-Hervé Peròn, que também conheceu e gostou do meu primeiro disco. Todas essas situações pra mim são reconhecimentos, estímulos pra continuar com meu trabalho. Desnecessário dizer também que todos os contatos foram emocionantes.
F-se: Como é o processo de criação, gravação e produção de seus álbums?
GJ: Como venho trabalhando em escritórios oito horas por dia desde os 17 anos, essa restrição é o que vem definindo a forma da minha música até hoje. Conto com a improvisação e a composição instantânea em quase tudo que faço, mas quase sempre com a intenção voltada a um determinado clima ou conceito dentro de um determinado projeto de álbum. Gravo uma ou mais camadas e as misturo. Muitas vezes, o resultado tem um único timbre/camada, e é suficiente. Tenho alguns álbuns inteiros em que cada faixa é uma faixa solo, feita e encerrada durante o tempo que foi gravada. Basicamente é assim que funciona. Como faço tudo sozinho, estas três etapas são geralmente uma só. Normalmente meus álbums se iniciam com uma ideia e faço meus esquemas pra atingir essa meta. Mais recentemente, lancei alguns álbuns fundamentados em gravações de arquivo, mas busquei organizá-los de maneira a dar uma experiência interessante ao ouvinte, não apenas fazer um grupamento de peças sem relação ou sem um ordenamento interessante. Minhas publicações são sempre chamadas álbuns pois acho que esse formato é mais interessante, eu já gostava de sinfonias antes de conhecer a música progressiva e eletrônica, então a seleção, edição e ordem das faixas é sempre um fator muito importante que consome tempo.
F-se: Há um pequeno porém significativo crescimento dentro da MTB nos últimos anos. Você partilha desta visão? Qual o seu ponto de vista a respeito da atual música independente feita dentro do país?
GJ: Essa expressão, “Música Torta Brasileira”, dá a entender que a “Música Certa” seja aquela que segue fielmente a tradição ocidental, e que a “Música Torta” a despreze completamente. As vanguardas do século XX nos ensinaram que qualquer coisa pode ser arte ou música, e um número incontável de compositores ocidentais já vinha derrubando a grade das doze notas ocidentais já no século XIX, antes das vanguardas. Se continuarmos pensando que essa música é torta, estaremos desprezando o sacrifício de muita gente que esteve no extremo da intelectualização musical, tendo como retorno pouco mais que a incompreensão, ou no máximo ficando restrita a círculos muito pequenos. Tudo sendo feito hoje que a gente acha super experimental e de vanguarda, na verdade dificilmente é, porque se você procurar, vai encontrar os mesmos resultados alcançados décadas antes. Isso tem a ver com a escolha do nome do meu álbum colaborativo recente, “Normal Music”. As gerações que vêm desde mais ou menos 1970, quando as vanguardas desaceleraram, têm a oportunidade de criar as novidades, porque a quebração de pedra já foi feita. Meu objetivo é dar uma colaboração relevante nessa reconstrução, sendo cada vez menos experimental e cada vez mais sólido. Explico: minha música sempre teve as entranhas expostas, sempre teve os fundamentos experimentais à mostra. A experimentação é importante pra quem está experimentando, mas nem sempre e nem tanto pra quem está ouvindo. Por isso acho que é mais interessante mostrar resultados cada vez mais sólidos, abrangentes, profundos. Isso sim pra mim é a Música Certa, não Torta: é o futuro, aproveitando todas as Histórias das Músicas. Respondendo à pergunta: parece mesmo que o mutirão está aumentando, isso é bom, tem muita gente aí buscando caminhos interessantes, mas conheço muito pouco ainda. Temos que continuar trabalhando e também estreitar laços, parcerias e colaborações. Temos que nos conhecer melhor pra realizar o potencial que existe.
F-se: Quais suas principais influências e o que você tem ouvido atualmente? Alguma recomendação?
GJ: Atualmente, posso considerar como influências importantes as três figuras do Kluster/Cluster, seus trabalhos em conjunto e também suas carreiras solo: Conrad Schnitzler, Dieter Moebius e Hans-Joachim Roedelius. Tenho ouvido bastante discos deles, principalmente do Roedelius, talvez o mais enigmático dos três. Eu recomendaria qualquer álbum desse universo. Um exemplo é a faixa final do álbum de estreia do Cluster, logo após a saída do Schnitzler (que transformou o Kluster em Cluster). Esta peça foi gravada em 1971, quarenta e dois anos atrás. Ela demonstra algumas das minhas afirmações anteriores (o vídeo é irrelevante, o que importa é a música). O Glenn Branca é outro grande cara, olha um exemplo de como ele está no futuro.
F-se: Conseguir locais pra shows dentro deste gênero de música é certamente uma batalha. Como são suas apresentações ao vivo e qual a reação do público?
GJ: Meus primeiros shows solo foram em 2005 e seguiram o mesmo repertório: uma seleção de faixas do primeiro álbum alternada com trechos de improvisação livre. Mas essa batalha eu preferi não lutar por um longo tempo, porque minha construção era mais importante e minhas poucas apresentações deram retorno insuficiente, apesar de grandes esforços. Mas recentemente mais pessoas entraram nessa luta e conseguiram levantar um circuito legal aqui no Rio. Então, hoje a coisa está mais favorável. Em 2012, voltei a tocar ao vivo em duas ocasiões, quando revivi as antigas explorações de drone de piano (como na “Sinfonia No.1”) e mostrei semelhantes resultados com o micro-instrumento Korg Monotron Delay (como na “Sinfonia No.2”). Até o final do ano, pretendo formar um novo repertório pra shows, usando outra variedade de instrumentos.
Ouça “Sinfonia No.2”:
F-se: Quais os planos para o futuro?
GJ: Os planos são apenas pra este ano. Gostaria de tocar ao vivo com mais frequência, mostrando novidades, e certamente ainda publicarei mais títulos solo e em colaborações. Devo incluir aí a reedição do meu primeiro álbum, celebrando os dez anos de lançamento, em formato digital e com faixas extras.
F-se: Algum recado pros leitores?
GJ: Agradeço pela oportunidade! Acompanhem meu site porque está tudo lá! Abraços a todos!
Ouça na íntegra e em primeira mão:
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Álbum – Manifesto
Selo – Independente
Lançamento – 2013
Gravado e composto entre 2001 e 2012
Tempo total – 75 minutos e 49 segundos
Gustavo Jobim: Sintetizadores Roland XP-30 e MicroKorg
Músicos convidados em “Eternal Sorrow”: Thelmo Cristovam (trompete), Filipe Giraknob (guitarra) e Eduardo Pletsch (guitarra)
Pra baixar – site oficial
SEÇÃO 1
1. The Disquieting Muses
2. Biomekanik
3. The Spell
4. Origin Of The Obsessions
5. We Atomic Children
6. The Mystery Of San Gottardo
7. At The Bottom Of The Shaft
SEÇÃO 2
1. Hallucination By The Seashore
2. Living In The Light Of The Immortal Worlds
3. The Eleventh Hour
4. Apparition Of The Ghost Of Erik Satie
5. The Flock Of Birds
6. Iconoclast’s Despair
7. Eternal Sorrow
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PERFIL
Gustavo Jobim
Cidade – Rio de Janeiro (Rio de Janeiro)
Gustavo Jobim – todos os instrumentos
[…] O disco é o primeiro após “Manifesto”, de maio de 2013, tema da coluna “Esquizofrenizando”, de Al Sche…. […]