É curioso quando a gente se mete de cabeça nesse meio. Você acaba conhecendo toda sorte de pessoas ao vivo, ou mesmo online ou só por telefone. São tidas como artistas e por artista você compreende que são iluminados com o dom da criação, de transformar sentimentos e sensações, vida-vivida e projeções, em arte, em algo novo, em criação. Porém, a frustração vem a galope – e uma parte dessas pessoas novas que você conhece e que acaba fazendo um retrato mental da personalidade delas são, na verdade, destroços daquelas pessoas que você jamais gostaria de conhecer na vida.
Procuro fazer com que isso não afete a criação delas. Tento separar a pessoa física do seu produto criativo. Não é fácil, mas acredito que tenho me saído bem até agora (um sonoro “foda-se” ajuda, por certo).
Só que o inverso também é difícil – separar a qualidade da criação daquele criador que se admira. E, por sorte, a maioria das pessoas que conheci de bandas, produtores, jornalistas e afins são bacanas e correspondem à boa dose de admiração que projetei nelas. Alessandra Lehmen, vocalista da Lautmusik, é uma dessas.
Nunca a conheci ao vivo. Apenas batemos papo poucas vezes pelos chats disponíveis, algumas longamente, outras em tiro-rápido. Em todas elas, corroborou com a ideia que fazia dela: inteligente, sagaz, elegante, de bom gosto – imagem embasada nas letras da Lautmusik, principalmente na de “Mai”.
Olha que besteira: preconceituei alguém baseado numa simples letra – e em alemão! Nem entendo alemão, veja você.
Mas Alessandra (a quem nem intimidade tenho pra chamar de “Alê”) era tudo o que criei sobre o criador – ela e seus companheiros de banda, Cassio JD (guitarra), Murilo Biff (guitarra), Guilherme Nunes (baixo) e Rodrigo Prati (bateria). Pelo menos é o que mostram esses textos, uma explicação bem pessoal e até íntima de como nasceu cada música do “Lost In The Tropics”, o primeiro disco cheio da Lautmusik – e um dos melhores do ano de 2011, de acordo com o Floga-se.
Alessandra exala nos textos abaixo a humildade e naturalidade de quem sabe que fez seu trabalho bem feito – e cujo crítico maior são eles mesmos, os integrantes da banda. Parece discurso idealista, de que o artista cria pra si próprio e que se dane o mundo, mas a gente sabe que nunca é bem assim. Críticas acabam com qualquer um, de acordo com o nível que cada um tem de recebê-las. A Lautmusik parece um tanto imune a isso.
São textos leves, que expõem curiosidades de cada faixa, do processo de criação, do surgimento das letras, de bastidores, que valem como registro da personalidade deles pra quem não os conhece. Com esses textos, reforcei ainda mais a ideia de que jamais poderei ser artista, criador, ou algo do tipo. Não tenho essa veia – pra qualquer arte que seja. Não tenho essa paixão. O meu perfil, pois, é de admirador, e só. Mas fico feliz por isso – o outro lado está bem representado.
“Lost in the Tropics é um álbum que quase foi EP: gravamos quatro músicas (‘Mai’, ‘Lost In The Tropics’, ‘Jellybean’ e ‘Cloud Nine’), mas, quando estávamos prestes a lançar, entramos numa fase criativa tão fértil – músicas novas pipocando a cada ensaio – que achamos que valeria fazer um esforço concentrado de mais uns meses pra gravar as novas e fazer um full-length. Aliás, não exatamente ‘achamos’: na época, eu queria ver algo lançado ‘pra ontem’ – a gravação já tinha demorado mais do que a gente pretendia – e fui voto vencido nessa, mas os guris tinham razão.
“Entre agosto e novembro do ano passado (o álbum saiu em 27/11/2011), gravamos as sete músicas remanescentes. Apesar de tudo, acho que o álbum não tem crise de identidade: apesar de ter faixas gravadas em momentos diferentes, acabou saindo um conjunto bem coeso e representativo. Uma coisa que nos deixa contentes é que, quando as pessoas opinam, cada qual escolhe como favorita uma faixa diferente. Interpretamos isso como um bom sinal, de que o disco não tem uma ou duas músicas claramente superiores e outras nove ou dez só pra ocupar espaço.
“Somos cinco pessoas com gostos muito variados (e uns tantos em comum) e isso, inevitável e felizmente, reflete em como soamos (N.E.: confira a participação da banda em ‘Os Discos da Vida’, aqui). Como a gente gosta de muita coisa diferente, nosso som acaba ficando bem ‘sortido’. O Eduardo Suwa, a.k.a. ‘Japa gênio’, nosso produtor, entende muito bem isso, até porque ele próprio tem um conhecimento musical praticamente enciclopédico. Não gostamos de revival (pra frente é que se anda) e não tentamos emular ninguém, mas às vezes ouvindo, depois, as faixas gravadas, dá pra entender de quais escaninhos mentais saiu, espontaneamente, a referência pra essa ou aquela música.
“Tem uma anedota que eu costumo contar sobre uma gravação que fizemos anos atrás: nos perguntaram ‘como a gente queria soar’ e a resposta meio embasbacada foi ‘olha… como nós mesmos, pode ser?’. E também aquelas situações em que alguém que não conhece a banda nos pergunta ‘mas é tipo o quê?’ e todo mundo titubeia pra responder – acho ótimo, porque definir é limitar. Na minha opinião, apesar das referências 80, 90 e 70 (pós-punk, new wave, shoegaze e punk, só pra citar as principais), fazemos música de 2012.
“Outro motivo pra variedade do álbum é que tem contribuições de todos os integrantes nas faixas. O processo de composição é coletivo, em jams – às vezes alguém leva um teminha pronto de casa, senão improvisamos no ensaio – e cada um cria a sua parte, mas não temos melindres em sugerir coisas uns pros outros. É bem peculiar: baterista dando pitaco em vocal, baixista dando pitaco em bateria, vocalista (que nunca pegou numa guitarra) dando pitaco em efeitos e palhetadas, guitarristas dando pitaco em efeitos de baixo… e assim vamos arranjando, todos juntos, as músicas. No início, o Cassio talvez estranhasse quando eu pisava em um dos (milhões de) pedais dele no meio da música, mas acho que já acostumou. Agora, falando sério, nos divertimos bastante compondo. Estamos em férias até março, mas nos poucos ensaios que tivemos no fim do ano já saiu um possível single. Em 2012, além de continuar compondo, queremos executar ao vivo o álbum tanto quanto possível (aliás, leitores paulistas, temos show marcado pra julho em São Paulo). Mas vamos ao faixa-a-faixa”.
01. “Afraid To Fly”
“Na primeira vez em que tocamos a ‘Afraid…’, nossa sensação coletiva foi a de que tínhamos quebrado um paradigma: a música não se parecia melódica nem ritmicamente com nada que tínhamos feito até ali e foi provavelmente minha primeira aventura por tons mais agudos. A letra foi improvisada na jam (algumas letras eu escrevo antes e musico no ensaio à medida em que o instrumental vai saindo e outras, em geral quando o meu ‘estoque’ de letras prontas acaba, eu improviso na hora) e é um desabafo sobre o meu pavor de voar – quanto mais viajo, pior fica, mas acho que isso não deve impedir ninguém de correr o mundo. Se fosse pra definir, diria que o que mais me agrada nela é uma certa ‘agressividade lânguida porém festiva’ – sei lá se de fato dá pra juntar tudo isso, mas é o que eu sinto. Hoje, em janeiro de 2012 (isso muda toda hora), é essa a música que mais gosto de cantar em shows”.
02. “Mai”
“Essa faixa é especial por dois motivos: é a única do álbum cantada em alemão (antes dela tínhamos ‘Zeitgeist’, do segundo EP) e foi a música que escolhemos pro nosso primeiro clipe, dirigido pelo Filipe Barros e atualmente na programação da MTV Brasil. Pra mim, o ponto alto, aqui, é a harmonia das cordas: uma linha de baixo marcante e melódica, um lindo rife do Murilo e o climão onírico dado pela guitarra do Cassio”.
03. “Kino Kosmos”
“Essa faixa foi uma das últimas a serem compostas e ainda era um tanto crua quando começamos a gravar. Viajei pra Europa logo antes da gravação e o título e dois terços da letra saíram num voo Moscou-Berlim: Kino Kosmos foi um cinema na Karl-Marx Allée – uma alameda larga, ventosa e sem vegetação da antiga Berlim Oriental – famoso por, junto com o Café Sybille, concentrar o principal arremedo de badalação social disponível aos moradores da DDR. É uma letra sobre a queda do Muro, mas fala mesmo da derrubada de barreiras internas e da insegurança e da maravilha de sair de uma zona de conforto. Demoramos a nos acostumar com o modo como ela soava – diria, eufemisticamente, que ela era ‘peculiar’, mas na falta de um título, o Prati, nosso baterista, a identificava como ‘a ruim’. Piadas à parte, a música depois ganhou corpo e até virou a preferida de alguns ouvintes”.
04. “Jellybean”
“A ‘Jelly’ é uma de nossas músicas mais antigas – já estava no nosso CD demo caseiro gravado em 2007 (curioso em saber como ela soava nos primórdios? Clica aqui) – e também uma das mais curtas, com menos de dois minutos. Posso estar enganada, mas é possivelmente a única música a ter sido tocada em todos os shows. Gostamos do fato de ela ser energética e direta, mas temperamos isso com phaser, que é uma marca registrada do Cassio, e Moog, este timbrado quase como um fuzz e que também aparece na ‘Kino…’ e na ‘Lost…’. A letra, dependendo do viés do ouvinte, pode ser romântica, impublicável ou ambas as coisas – quem conhece Cramps há de entender”.
05. “Tugboat”
“O mestre baixístico absoluto do Nunes é o Peter Hook (tri mal de referências!), e acho que isso fica bem evidente nessa faixa. Ela é tão redonda e natural de tocar que hoje é difícil concatenar por que ela demorou um pouco a se criar. Foi o único caso em que, em vez de fazer o vocal na hora no ensaio, fiz sozinha em casa, sobre a gravação do instrumental. A letra é uma das minhas favoritas: é uma metáfora sobre o rebocador, que consegue conduzir um navio muito maior do que ele próprio – uma vez o navio esteja num porto seguro, ou em mar aberto, cada qual segue o seu caminho. Acho que é algo que acontece bastante, mas às vezes nem notamos: todo mundo pode aprender e ensinar alguma coisa em praticamente qualquer situação da vida”.
06. “Lost In The Tropics”
“Gosto do clima um clima angustiado, de perseguição e fuga, da faixa-título (‘oppression!’). É, talvez, a mais pesada do disco, e ao mesmo tempo soa, pro meu ouvido ao menos, bastante pós-punk. A letra – outra das improvisadas – fala de um personagem que se sente perdido e deslocado no Cairo, cidade que, aqui, pode ser real ou metafórica. Num sentido mais amplo, também descreve um pouco a Laut, que também pode soar um tanto perdida nos (sub)trópicos”.
07. “Merge”
“Essa é uma música de instrumental cru e áspero com o contraponto de um vocal quase new wave (que é um gênero de que eu gosto muito), dobrado e reverberento. Gostamos de criar esses contrastes pra deixar a coisa menos óbvia. Arriscaria dizer que é a faixa mais dançante do disco – pelo menos sempre que eu ouço começo a me balançar involuntariamente. O curioso é que essa música é resultado da fusão de dois temas, mas se chama ‘Merge’ por pura coincidência.
08. “Cloud Nine”
“Eu acho que a ‘Cloud…’ é uma boa combinação de barulho e melodia. Gostamos muito de noise, desde que sirva a um propósito (não aquela coisa difusa, ‘all over the place’), e esse propósito, pra nós, é o de complementar a melodia, nunca de substituí-la. Melodia é fundamental. A letra é a minha preferida, junto com a de ‘Tugboat’, e fala sobre as incertezas iniciais de um relacionamento promissor, num modelo em que as pessoas avançam juntas (as tais ‘parallel lines’) em vez de ficarem paralisadas olhando uma pra outra”.
09. “White Cliffs Of Dover”
“Os White Cliffs of Dover são um local escolhido por muitos suicidas ingleses. A música, porém, fala não sobre suicídio, mas sobre a desistência dele. O interessante é que, como as letras têm sentido aberto, dão margem a interpretações subjetivas, o que eu sempre acho bom. Quando esboçamos essa música, lá em 2008, o Prati estava ‘grávido’ da filha e associou à chegada dela (‘Steadfast improvement in the shape of things to come/Imperceptible movement stirring your loins and your guts’). Hoje pouco se dá bola pra letras, mas acho bacana quando elas significam algo pra alguém – sempre disponibilizamos todas junto com as músicas. Outra peculiaridade dessa faixa é que ela ficou engavetada durante muitos anos e entrou no álbum aos 48 do segundo tempo, quando o Nunes ‘descobriu’ uma gravação antiga e nos xingou por não termos pensado nela pro álbum. Na época em que ela foi criada tínhamos a sensação de que faltava alguma coisa – pra mim ela soava meio datada, mas foi ‘contemporaneizada‘ nessa nova versão, principalmente por conta das guitarras sujas que o Murilo acrescentou”.
10. “Gorky Park”
“Essa música também representou uma quebra de paradigma pra gente. Primeiro, por causa da estrutura: são praticamente três músicas em uma; três partes com andamentos diferentes. Não que isso seja a coisa mais rara do mundo, mas pra nós foi uma novidade. Segundo, porque foi a primeira vez em que externamos a veia rockão/stoner de alguns dos integrantes (Murilo e eu, acho, apesar de a faixa ter virado, surpreendentemente, uma das favoritas do Prati ‘Manchester man’)”.
11. “Walk The Walk”
“A ‘Walk…’ subverteu nosso processo de composição, que já não é rígido: começou com o vocal, que fiz sozinha em casa, e o instrumental foi acrescentado depois (meio tom acima do original, só pra complicar a minha vida!). Além disso, é a única a ter backing vocals e assobios (do Murilo) e nela eu também toco um chocalho, o que dá um certo clima de faroeste e encerra o disco reforçando o tema – ‘Lost In The Tropics’ e a capa com o cacto sob o sol a pino. Aliás, a capa, cuja arte é do Murilo, de certa forma reflete nossa mudança dos EPs anteriores pro álbum: de um som mais soturno e diluído, com capas em preto e branco, passamos ter músicas talvez mais ‘solares’, a merecer uma capa colorida. Como nunca seremos, porém, uma banda propriamente ‘feliz’, ali também há espinhos”.
Meu “disco do coração” de 2011. Perfeito do começo ao fim. Excelente matéria, e muito merecida.
Obrigada em nome da Laut, Fernando e Ron! É uma honra.
Ainda estou conhecendo a banda mas já estou gostando pra caramba, sinal de que o rock nacional não está acabando. E os gaúchos estão contribuindo muito pra isso, tais bandas como Wannabe Jalva, Lautmusik, Bidê ou Balde (que nasceu no mesmo ano que eu rsrs), e Tequila Baby (também mais antiga), são a PROVA VIVA disso. Parabéns ai a Lautmusik, estão fazendo um ótimo trabalho.
E VIVA AO ROCK GAÚCHO! /,,/
[…] que a moça tinha habilidade com as letras e uma visão perspicaz. O “faixa-a-faixa” que ela escreveu sobre o “Lost In The Tropics”, discão da Lautmusik, era boa […]
[…] A abertura fica por conta da ótima Lautmusik, gaúchos de Porto Alegre (clique aqui pra ouvir). […]
[…] Plácido de Castro, em Porto Alegre, executando “Tugboat”, a melhor canção do ótimo “Lost In The Tropics”, de 2011. Ou seja, é simples, o que surpreende é o esmero acima do normal dentro dessa […]