Em 2016, Felipe Neiva lançou “mEu EP Ou À Vida E Seu Potencial Sarcástico Infinito” (ouça aqui na íntegra e leia a matéria), que já era uma mutação do Felipe Neiva anterior. Passado um ano, em setembro 2017, Neiva se juntou a Lucas Pires e Negro Leo pra apresentar sua peça musical “Jornal Anos 20”, dentro do projeto Espaço Sideral, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, numa nova formatação do seu eu-artista.
A mutação vem com o tempo pra todos, com o elevar da idade (assim se espera). No caso de Neiva, parece ser uma saudável ambição de experimentar e descobrir novidades próprias.
O projeto “Jornal Anos 20”, apresentado unicamente dentro do Espaço Sideral e gravado ali, ao vivo, e que Neiva lança dia 15 de agosto de 2018, foi uma experiência que valeu os meses seguintes no trabalho de formatar a gravação em um disco. É o retrato daquele momento do artista Neiva, bem como de um futuro batendo à porta, os anos 20 deste novo século no qual estamos nos aventurando.
“Eu, por algum motivo, em algum momento do ano passado”, disse, em bate-papo com o Floga-se, “senti que tinha uma espécie de ligação entre algumas das canções que eu tava fazendo e trechos instrumentais antigos e ideias antigas; daí me veio a ideia de juntar tudo isso numa peça, que tivesse alguma ideia ambiciosa, de vida, morte e ressurreição por trás… mas ficou, de alguma forma, só no papel; então, por coincidência, fui convidado com Negro Leo pra fazer uma apresentação no CCBB e ele sugeriu que trabalhássemos numa peça colaborativa e aí eu mostrei pra ele, pro Carlos Oliveira e pro Alberto Harres (que fizeram a parte de videomapping da apresentação), esse conceito de peça que eu tava desenvolvendo e basicamente foi em torno dessas ideias que a gente foi pro CCBB, deixando partes em aberto pra que rolasse improvisação livre entre nós – eu, Negro Leo e o Lucas Pires”.
A parceria com Leo, Pires e o videomapping levou a obra a outros caminhos, como a interpretação livre de um tema, de uma partitura. “A participação do Lucas Pires, por exemplo, que tava tocando fitas k7, deu uma textura maravilhosa ao trabalho, e no fim das contas, acabou que o trabalho ficou com a cara da minha sensação sobre os dias que estamos vivendo, em antecipação aos anos 20 do século XXI”, revela.
Se a história se repete – como farsa, como comédia, como estupidez – é preciso aprender com os erros e acertos passados, especialmente com o erros. Neiva, como muitos os que estão atentos, sabe que o momento é de atenção e apreensão. Num país que reinventou o golpe-parlamentar, o presidencialismo-parlamentarista, já não parece estranho se imaginar numa “ditadura-democrática”, ou uma ditadura alçada pelo voto popular.
“Acho que o trabalho tem uma espécie de atmosfera enlameada, suja, dolorosa. Acho que essa talvez seja a atmosfera que eu sinta em antecipação aos anos 20. Não tem uma grande argumentação. Agora, o que é mais evidente são os discursos de instituição do AI-5 (na faixa “O Retorno Do Cânone Europeu”) e o término com o ‘extra omnes’ da igreja católica. E “O Retorno Do Cânone Europeu” tem a ver com isso de alguma forma, mas ainda assim é mais intuitivo do que parece. Enquanto pessoa, e eu não sei o quanto a obra bebe disso, vejo uma relação bastante clara entre a esquerda, a igreja católica, a noção que se tem de Europa e sua influência cultural. E essa coisa de achar que a história vai se repetir, que vai vir outra ditadura”, diz.
“O problema, pra mim, é que a esquerda tem uma coisa um pouco quixotesca, talvez até pra se auto-intitular icônica e veículo de transformação, que nos impede de enxergar as coisas no presente e são mais sonhos de repetição e de auto-importância. A ditadura já tá rolando, mas dentro das pessoas. Essa ascensão totalitarista pelo voto, por exemplo… Nem precisa mais dos votos, né? Só a popularidade que tem o Bolsonaro, os líderes religiosos protestantes todos, todos esses filmes de super-herói… Agora, a gente precisa de super-herói preto também, porque ninguém tá dando conta, sabe? Isso é muito mais perigoso do que os militares e parece que a esquerda partidária não se liga ou não quer se ligar. Acho que é mais diagnóstico do que futurista (este disco). Por isso, acho interessante pensar num jornal. Não tem grandes generalizações teóricas ou conclusões relevantes num jornal”.
A partir daí, Neiva desenvolveu um roteiro que dá ordem às faixas apresentadas. Depois de “introdução”, “Sonho Meu” vem como desejo do artista de viver um sonho bom, algo que anestesie da realidade, que traga felicidade. Só que isso não é facilmente encontrado em vida, apenas chegando “em algum lugar depois da morte”, “Post-Mortem”.
“‘Post-Mortem’ tem muito a ver com a igreja católica também. E é uma música que escrevi pensando no meu pai – ‘pra uma vida tão dócil / tão pouco afeita aos prazeres carnais / cadê minha recompensa, afinal?'”, canta.
Após a morte, temos a ressurreição, em “Inês (Ressuscitade)”, que Neiva chama de “uma canção com tantas seções”, pra dar conta de uma vida inteira, aquela experiência que dizem haver antes da morte, de passar a vida toda em um segundo, e que aqui acontece num momento de renascimento. “É meio que um manual de como abordar a vida, de aceitar o abismo”, diz.
Depois da ressurreição, acontece os momentos de desespero e confusão, perde-se totalmente o critério – em “Sem Critério”. Então, a “Calmaria”, o momento posterior à confusão e ao desbunde e fartura. O passo seguinte é o medo do futuro – e a alegoria do medo está em “Os Pássaros”, a partir do temor que Neiva tem do filme de mesmo nome dirigido por Alfred Hitchcock. Por fim, o resultado de tanto medo e incerteza resulta n”O Retorno Do Cânone Europeu”.
A alternância de vida e morte, ilusão e desilusão, expectativa e frustração é tão rápida no século atual que caberia numa manchete descrevendo a falência de uma boa ideia que foi o ser humano. A ruína total, como se ouve na faixa-título, ruidosa e despedaçante, como alguém de um futuro bem mais distante que os anos 20 buscasse elementos pra entender o que se passou nesse período e não encontrasse nada mais do que fragmentos do que um dia foi essa sociedade esmigalhada pela falta de compreensão.
Curiosamente, “Jornal Anos 20”, com sua temática e suas gravações resgatando a ditadura brasileira, remete mais ao passado do que ao futuro – o passado se reinventando: “a gente tá vivento cem anos depois da belle époque (pensando história ocidental),
o início do século passado teve a introdução da arte abstrata, teve Stravinsky, psicanálise, o ocidente descobrindo filosofias e cosmogonias orientais e esse encantamento todo. Acho que este trabalho formalmente tem de tudo (gravação de campo, canção, noise, trechos instrumentais, uso de samples passando por delay, passando por pitching) e a intenção é de se perguntar sobre as potências estéticas que estão acontecendo agora, tentar usar de tudo um pouco que rolou no século XX e que nem a população, nem a comunidade artística, apreendeu, e de alguma forma esse é um registro sonoro de uma performance audiovisual, né? Registro de uma performance, que é um troço efêmero, do presente, pode ser obra? Ela perde o valor? É um pouco ambição de revisar os anos 20, olhando pra trás mesmo. No fundo, não acredito em passado ou futuro, acho que só tem o presente, mas a ciclicidade e a sincronicidade são algumas indicações que nós temos”.
Junto com o disco, Neiva, Leo e Lucas Pires têm um vídeo (amadorístico, mas que dá ideia de como foi a apresentação original). O vídeo está no YouTube desde 2017 e pode ser visto aqui:
Ouça na íntegra:
A captação de áudio tem assinatura de Rodrigo Brayner e Marcelo MDM. A mixagem e masterização são por conta de Felipe Neiva.
1. Introdução
2. Sonho Meu (Vida)
3. Post-Mortem
4. Inês (Ressuscitade)
5. Jornal Anos 20
6. Sem Critério
7. Calmaria
8. Os Pássaros
9. O Retorno Do Cânone Europeu