Esqueça aquele Felipe Neiva de “Chegou Fim De Festa”, disco que ele lançou em 2015 (leia, conheça e ouça aqui). Ele é outra pessoa. Outro músico. Outro artista. Outra cabeça.
“Naquela época, eu trabalhava na Marinha do Brasil… Sou técnico em meteorologia, formado no CEFET aqui do Rio e fiz um concurso pra entrar por motivo de desespero financeiro, pra comprar instrumentos que meu pai nunca teve grana pra me dar. Durante esse processo na Marinha, entrei numa depressão que eu nunca tinha enfrentado, comecei a tomar remédios e tentei me matar duas enquanto estava lá dentro. Mas foi como consegui comprar os instrumentos que tenho hoje em dia. Foi o único jeito que eu consegui, mas quase me custou a vida”, conta, com exclusividade ao Floga-se.
“Esse EP foi meu exorcismo dessa merda toda. Pus muita energia e tudo o que eu tenho em mim dentro dele. A música negra é historicamente triste, mas alegra. Quando eu penso no Stevie Wonder que é, pra mim, o melhor compositor da história da música pop, eu vejo músicas que as pessoas consideram alegres, mas que, harmonicamente, pra mim, são bastante intrincadas e tristes mesmo. Se você pensar, por exemplo, no ‘Innervisions’, acho superficial achar que é um disco alegre. No caso do meu disco, as letras entregam”.
O processo conturbado de amadurecimento (aceitação, independência, busca de realização pessoal) fez Neiva chegar a “mEu EP Ou À Vida E Seu Potencial Sarcástico Infinito”.
“O ‘mEu’ é tanto pra servir de adjetivo de posse mesmo, porque de alguma forma eu percebi que colocando mais gente e trabalhando mais em cima, ele foi ficando muito mais com a minha cara, então ele é totalmente meu, totalmente sincero no sentido das coias que eu sinto e ao mesmo tempo, se você for sagaz, ele pode ser dividido em ‘Meu Eu’, já que ‘Eu’ é o uso mais correto pro termo freudiano que na literatura brasileira traduziram como ‘Ego’ e esse disco parte muito de como eu passei a me perceber pós-psicanálise Lacaniana (que é discípulo de Freud e deu continuidade ao trabalho dele em certo sentido). E tudo isso da psicanálise foi muito relevante na época da minha última tentativa de suicídio, que é quando se inicia o processo do EP”, revela.
Já o segundo título, “À Vida E Seu Potencial Sarcástico Infinto”, tem a ver com um período em que a vida parecia não lhe ser parceira – “dá pra ouvir a vida rindo de mim, se você prestar atenção ao final da faixa-título do disco, já que ela dava mil voltas e ainda assim eu não chegava a concluir nada e continuava apanhando dela; parte muito desse contexto de total desespero, desesperança mas até que eu achei coisas lindas durante o processo, que me fizeram ficar bem e me sentir muito mais maduro e seguro e tranquilo como eu me sinto agora”.
O disco é, pois, uma vitória. A vitória de Neiva.
Talvez por isso essa sonoridade que varia entre o sessentismo psicodélico brasileiro e o pop oitentista radiofônico, quase popular (não popularesco). É um disco feliz, embora incômodo.
“Se eu quisesse fazer um disco deprimente, eu o teria feito. Eu sei o que eu tô fazendo. Eu tinha que fazer harmonias não tão deprimentes pra expurgar tudo de ruim que tinha em mim, ao mesmo tempo em que eu digo tudo que eu quero dizer nas letras, verso por verso, acorde por acorde”, diz.
Ter Stevie Wonder como “mentor espiritual do processo de finalização” do disco ajudou Neiva a fechar conceito e repertório. Mas a influência não é tão óbvia e não está em um só lugar. “mEu EP Ou À Vida E Seu Potencial Sarcástico Infinito” tem um bocado de linhas que o ouvinte pode se identificar.
Felipe Neiva ainda é jovem, tá na angústia que quase todo mundo enfrenta na fase dos vinte e tantos anos (há outras angústias dez anos depois, vinte anos depois, trinta anos depois, sempre há). E suas músicas refletem isso, aliado ao histórico que desencadeou a obra.
“A ‘Saindo De Casa’ é sobre como eu não aguentava mais morar com os meus pais e sobre como a nossa relação é sufocante. A ‘Zen’ é da época que eu tava saindo da Marinha e tinha que me defender dos religiosos e militares escrotos patéticos revoltantes lá de dentro, que vinham cheios de certeza com deus e essas coisas, e a música é uma resposta a essas pessoas cheias de certezas e que oprimem exatamente por não olharem pra si, por não se porem dúvida em relação às coisas. A ‘mEu’ é tudo que a letra tá dizendo mesmo: ela é a que sintetiza melhor essas ideias todas e é bem explícita nesse sentido. A ‘Conte Comigo’ é pra minha melhor amiga, que tentou se matar não muito depois de mim. A “X Factor’ é sobre insegurança e amor dentro de uma relação poliamorística que não deu certo. Mas a gente, que é preto e pobre, não pode se deixar entregar à depressão, a gente tem que continuar lutando e dançando e sorrindo. O ‘mEu EP’ é como o meu povo e sua música: é música pra fazer sentir bem e restaurar energias, feita por gente que não sabe como aguenta mais e se guia na maior parte do tempo por fé”.
Ouça na íntegra:
O disco levou um tempo mais pra ser produzido, gravado e executado, porque Neiva dessa vez, ao contrário do que fez no trabalho anterior, quando gravou por conta própria em casa, resolveu levar tudo a um estúdio. Além disso, entrou pro conservatório de música de Niterói, cidade onde mora, e passou a se dedicar mais aos arranjos, demandando mais tempo nas harmonias e escrevendo letras em português com maior frequência, numa tentativa de se expressar melhor.
“Eu sempre me senti um pouco incompreendido dentro da cena, sentia que as pessoas não estavam entendendo as coisas com as quais eu tava dialogando, então eu quero garantir o máximo de precisão possível em cada escolha de intervalo dentro da harmonia da música, em cada verso das músicas e foi um processo de muito trabalho, de muita dedicação. Só a ‘Zen’ teve um período de cerca de seis meses de trabalho, entre a pré-produção e a versão final. E o resto do EP foi gravado de abril até setembro deste ano, o que é muito diferente de como era meu processo em casa, sozinho, que era muito mais prático e simples e intuitivo”.
Além do mais, teve a comunhão com os músicos que tocaram com ele na obra, o sufoco de conjuminar as agendas. Tocam com Neiva Barbanjo Reis (bateria, da Café República), Octavio Peral (baixo em duas faixas, também da Café República), Victor Oliver (guitarra e co-produtor do disco, ex-baixista da Beluga), Augusto Feres (produtor de “Zen”), Leonardo Dias e Filipe Teixeira (bateria e baixo, respectivamente, em “Zen”) e Philippe Meyohas (vocal de apoio em “Conte Comigo”). Não é fácil juntar todo mundo.
A diferença entre “Chegou Fim De Festa” e “mEu EP”, segundo Neiva, está longe de ser só a produção e o tempo de maturação. “O ‘Chegou Fim De Festa’, na real, é uma compilação de canções minhas desde 2011. Então, é como se abrisse um espaço temporal de 2011 e 2012 até o final de 2014, e agora, 2016. É como se tivesse um espaço de maturidade enquanto compositor que tem uma diferença de cerca de quatro anos. Eu fiz o ‘Chegou Fim De Festa’ em uma tarde de Quarta-Feira de Cinzas, gravei tudo sozinho, assumindo todos os erros, não regravei nada. Acho que ele tem uma intenção muito conceitual e que o fim dessa ideia data de quando eu tava saindo da direção cinematográfica. Eu não dirijo mais nada desde 2014, eu mudei muito enquanto artista, enquanto pessoa, cresci mesmo. Tô com 23 anos, é o início da minha vida adulta. É como se esse EP agora fosse o meu primeiro trabalho da vida adulta”.
Com tanta carga por trás, era de se esperar o peso da mensagem, mas Neiva deixa claro que não é um disco pra ficar mal. “Não é essa a intenção, quero é que todo mundo fique bem e que a minha música possa levar paz, serenidade, alegria e sentimentos bons pras pessoas”.
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O disco saiu pela Lixo Records e Transfusão Noise Records, em 29 de setembro de 2016.
1. Saindo De Casa
2. Zen (clique aqui pra ver o vídeo)
3. mEu (Ou À Vida E Seu Potencial Sarcástico Infinito)
4. X (Factor)
5. Conte Comigo