Há um ano, quando os festivais de música no versão do Hemisfério Norte começaram a ser cancelados, caindo como dominós bem ajustados em fileiras hipnóticas, os jovens até trinta anos perceberam o quão grave era esta crise que até ali afetava apenas pessoas idosas ou com doenças em torno do coração e pulmão.
Quão errados estávamos – não só os jovens, mas a humanidade!
A covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV2, até a Quarta-Feira de Cinzas de 2021, já havia matado 2,44 milhões de pessoas em todo o mundo (oficialmente, claro, porque muita gente, especialmente em países negacionistas e subdesenvolvidos como o Brasil, morreu de “pneumonia”). Desses dois milhões e meio oficiais, muitos eram jovens, que partiram pra festas e clubes fechados assim que a Europa mostrou eficiência nos seus pesados bloqueios de circulação de pessoas, no meio de 2020.
Logo veio, portanto, uma “segunda onda” mais avassaladora de infectados pressionando hospitais e matando mais gente. É o ponto que estamos agora, com a diferença é que neste momento do inverno deles temos algumas opções de vacinas e até o momento mais de 190 milhões de pessoas já tomaram ao menos uma dose dos imunizantes disponíveis.
É pouco, muito pouco. Foi esse quadro que motivou, em 21 de janeiro deste ano, o tradicionalíssimo festival de Glastonbury a anunciar seu cancelamento pelo segundo ano consecutivo, lançando dúvidas sobre a temporada de festivais no verão que se avizinha do primeiro mundo.
With great regret, we must announce that this year’s Glastonbury Festival will not take place, and that this will be another enforced fallow year for us. Tickets for this year will roll over to next year. Full statement below and on our website. Michael & Emily pic.twitter.com/SlNdwA2tHd
— Glastonbury Festival (@glastonbury) January 21, 2021
Os organizadores do evento, Michael e Emily Eavis, disseram que, apesar dos ‘esforços pra mover o céu e a terra”, ficou “claro” que o festival não poderia prosseguir.
Eis que levantou-se a questão: os festivais estão condenados por mais um ano a não acontecerem?
Apesar desse mau sinal, os organizadores ainda parecem estar otimistas com a realização deles, “especialmente se o governo ajudar”, lembra a Mixmag, revista virtual de música.
Não é um esforço em vão e apenas por diversão. Há muito emprego não gerado e muito, mas muito dinheiro que deixa de circular e movimentar a economia.
Enquanto os idiotas bolsonaristas bradam contra o Carnaval brasileiro, que foi dura e sabiamente cancelado em 2021, dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) apontam que, sem a maior festa popular do país, cerca de R$ 8,1 bilhões deixaram de circular no país só no setor do turismo.
Os idiotas bolsonaristas gritam que Carnaval é coisa de “vagabundo”, mas com o cancelamento da festa de 2021, cerca de 25 mil empregos temporários também deixaram de ser criados – e desde pessoal da segurança e limpeza, até músicos, técnicos, montadores de palcos, pessoal da área de marketing, indústria de brindes, pessoal de confecções, transporte, hotelaria, bares e restaurantes, numa imensa rede econômica que ficou parada.
Uma dura matéria da Agência Brasil mostra o tamanho da encrenca nas principais praças.
O paralelo é pertinente. Os festivais de música no verão do Hemisfério Norte movimentam uma quantia significativa das economias locais. Pra se ter uma ideia, só no Reino Unido são £ 1,1 bilhão que circulam nessa indústria.
Paul Reed, Chief Executive Officer (CEO) da Associação dos Festivais Independentes (AIF, na sigla em inglês – Association of Independent Festivals), disse que o destino das centenas de festivais do Reino Unido que acontecem durante o verão depende de seu tamanho. Embora Glastonbury não seja capaz de receber 250 mil pessoas em Worthy Farm este ano, festivais menores ainda podem rolar: “há 975 festivais no Reino Unido”, disse Reed ao The Guardian. “Embora alguns dos eventos maiores vão decidir se eles vão em frente, pra muitos dos menores”, será possível esperar.
Depende muito do primeiro-ministro Boris Johnson e sua secretária do Interior, Priti Patel, que se recusam a antecipar até quando as restrições de circulação duram, não descartando que ainda estejam em vigor no verão. Isso tornaria os festivais – onde evitar o distanciamento social é o ponto principal – uma impossibilidade pelo segundo ano consecutivo.
Vale lembrar que Boris Johnson é um nome a se malhar no Reino Unido, significativamente pela classe artística. Ele foi o principal defensor do Brexit, um movimento separatista do Reino com relação à Europa, baseado em notícias falsas e, especialmente, em xenofobia. Além disso, o Brexit pode transformar a música na Inglaterra, tornando-a mais cara.
Johnson, no começo da pandemia, era um negacionista perverso como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Até que pegou a doença e foi parar no hospital, com risco real de morrer. Isso virou sua cabeça. Pelo menos com relação à pandemia. Parou de ser um negacionista, ao contrário de Bolsonaro, que segue defendendo a cloroquina, remédio sem eficácia alguma contra a doença, falando impropérios das vacinas e dando de ombros pros mais de 240 mil brasileiros mortos. Já Trump é página virada, podendo ser condenado em um processo inédito de impeachment em seu país, numa tentativa patética, mas grave, de golpe de Estado.
Em todos os três casos, as pessoas culpam seus líderes pela situação que seus países vivem.
Não há como Johnson, que agora até defende o Sistema Único de Saúde (SUS) local, antecipar quando os bloqueios vão parar. Depende, basicamente, do avanço da vacinação, que até o momento vem perdendo em velocidade pro alastramento do vírus.
Glastonbury tinha o início previsto pra 23 de junho. Muita gente questiona se haveria tempo hábil, mas um festival gigante desses não pode tomar decisões aos quarenta e cinco do segundo tempo.
Entretanto, não é só festival grande que cancelou. No início de janeiro, a banda de pop-rock The 1975 também cancelou seu festival de um dia no Finsbury Park, Londres, em julho, juntamente com o resto da turnê do ano, citando a segurança dos fãs e da equipe. Uma decisão acertada, embora angustiante.
O resto dos eventos do verão ainda estavam agendados até um mês atrás. Um deles, o festival Slam Dunk estava previsto pro final de maio. “Continuamos otimistas”, disse ao Guardian o diretor do festival Ben Ray, no final de janeiro. “Ainda temos algum otimismo. Mas se o distanciamento social ainda existe, não podemos ir em frente… e é uma chance muito pequena de que o distanciamento social pare antes do verão”.
Ainda assim, a organização espera uma luz das autoridades sobre como proceder:
O festival Isle Of Wight está agendado para 17 de junho: “continuamos trabalhando nos bastidores”.
O maior festival de rock do Reino Unido, o Download, espera receber oitenta mil pessoas a partir de 4 de junho – o proprietário do Festival Republic, que também organiza o festival Wireless (2 a 4 de julho) e os festivais de Reading e Leeds no feriado de agosto, disse que espera ter atualizações do governo até 1º de março. Seus festivais estavam vendendo ingressos até o fim do Carnaval.
O setor lançou uma campanha chamada WeMakeEvents, pra mostrar o tamanho da encrenca, ressaltando que “o governo não enxerga a gente”.
“Uma pesquisa realizada este ano descobriu que 93% dos indivíduos e empresas na cadeia de suprimentos de eventos ao vivo viram sua renda cair drasticamente como resultado da pandemia – 65% viram uma queda de mais de 50% e 30% uma queda de mais 90%. Como resultado, 50% dos indivíduos tiveram que trabalhar fora dos eventos ao vivo pra complementar sua renda. Um terceiro foi forçado a deixar – ou está pensando em sair – do setor. Além disso, 43% das empresas da cadeia de suprimentos de eventos ao vivo dizem que não têm recursos pra durar até o verão. Isso nos torna um dos setores mais afetados pela pandemia, mas, apesar disso, não recebemos praticamente nenhum apoio governamental direcionado. Simplificando, o governo claramente não consegue ver o impacto humano e econômico desesperado que a pandemia teve na cadeia de abastecimento do evento ao vivo”, diz o anúncio da campanha.
Assim, os profissionais pedem visibilidade no governo: “os indivíduos e empresas na cadeia de fornecimento de eventos ao vivo são frequentemente esquecidos, portanto, precisamos ser formalmente reconhecidos pelo governo como um setor e incluídos nos dados que eles usam para direcionar o suporte”.
Pedem também, num apelo dramático, “apoio para sobreviver: atualmente, muitos em nosso setor foram injustamente excluídos do apoio financeiro (que o governo deu, como o nosso auxílio-emergencial), isso deve mudar ou perderemos nossa expressão cultural e reputação de realizar eventos de classe mundial”.
E, por fim, pedem um “caminho pra reabertura: apesar de sabermos que leva muitos meses de trabalho de pré-produção pra que um evento ao vivo aconteça, não temos um caminho claro pra reabertura. Além disso, o governo se recusou a introduzir um esquema de seguro de cancelamento na pandemia, apesar de toda a indústria de eventos ao vivo exigir isso”.
No site da campanha, há dezenas de fotos de profissionais do meio. Ao passar o mouse pela foto, o visitante verá o quanto este profissional perdeu de renda na pandemia. É um artifício de apertar o coração.
Em agosto, na Alemanha, realizou-se uma pesquisa pra compreender o impacto dos shows no espalhamento da pandemia.
O resultado saiu no The New York Times no comecinho de dezembro. A análise sugere que o impacto de “eventos similares na propagação do coronavírus varia de ‘baixo a muito baixo’, desde que os organizadores assegurem ventilação adequada, rígidos protocolos de higiene e limite de capacidade”.
“Não há nenhum argumento pra que eventos assim não sejam promovidos. O risco de infecção é muito baixo”, disse Michael Gekle, da equipe da Universidade Martinho Lutero de Halle-Wittenberg, organizadora da pesquisa.
A comunidade científica acha a conclusão prematura e demanda novos estudos. Pra além disso, os cientistas consultados pelo jornal estadunidense disseram que um ambiente controlado como o da pesquisa é praticamente impossível de se conseguir no mundo real, aniquilando por completo a possibilidade de sustentar tal conclusão dos alemães.
A verdade é que, como diz o Guardian, a maioria do público jovem que comparece ao Slam Dunk não será vacinada a tempo, mas Ben Ray espera que um número suficiente de pessoas em todo o Reino Unido tenha sido vacinado pra tornar os eventos viáveis: “o governo vai acabar com o distanciamento social antes que toda a população do Reino Unido seja vacinada”, espera ele, mas não tem certeza de quando. “É quando chega a certo ponto que as pessoas param de morrer e encher hospitais? E eles ainda vão ter algumas restrições: você pode ir ao bar e se misturar com as pessoas, mas não há eventos acima de uma certa capacidade?”, questiona, esperando uma resposta que ninguém sabe ao certo ainda.
Se os festivais forem cancelados, significa mais um ano sem receita em um setor onde as margens de lucro já estão apertadas. As seguradoras não estão cobrindo os cancelamentos feitos por causa da pandemia, estimulando pedidos dos organizadores pra que o governo permita que os preparativos continuem.
A ideia de seguro com apoio do governo foi rejeitada pela ministra da cultura Caroline Dinenage.
Ao contrário do Brasil, onde os governos (federal, estadual e municipal) fazem vista grossa pra aglomerações, festas clandestinas, shows e apresentações (como bem se vê nas aterradoras imagens da televisão e de perfis como este) e tomam decisões pra “inglês ver”, as autoridades inglesas acertam no remédio, com bloqueios duros e inegociáveis, colhendo frutos de diminuição de número de casos e mortes, embora ainda sem planejamento adequado pra conseguir salvar financeiramente todos seus compatriotas.
Diante de tudo isso, há uma “quase certeza” de que com os cuidados que os governos estão tomando na Europa, é capaz de os shows voltarem primeiro por lá. Por aqui na Terra dos Negacionistas, só sendo inconsequente pra comparecer em eventos ao vivo.