Aline Vieira e Gustavo Paim criaram em 2012 o Meia-Vida, selo de MTB de Curitiba, que segue angariando admiradores pelos subterrâneos do país.
Não é à toa. A trajetória artística dos dois se confunde com a do selo, é algo bem pessoal, o que sempre exala maior autenticidade: “eu e o Gustavo resolvemos fazer um drone/noise juntos e começamos a tocar como Cama Desfeita. A gente sempre foi do D.I.Y. e pra lançar nossas paradas a gente pilhou em montar o selo… aí a gente lançava alguns amigos e alguns sons nossos”, conta Aline.
Daí, Aline se viu envolvida no Círculo Avesso e no Nenhures e em projetos-solo, como Excria Reverbera, Corpo Código Aberto e, agora, o Flores Feias.
“O Círculo Avesso tem uma pegada cyberpunk-noise apocalíptica, eu escrevo uns textos/comunicados sobre vigilância e biopolítica e construímos umas estruturas sonoras e performáticas em cima desses textos… é tipo uma criptoguerrilha, é um conceito em si bem forte pra nós; quando você inverte um círculo ele se torna algo aberto e perde o centro, isso é um movimento político”, diz.
Já o “Nenhures é um projeto que apareceu de uns encontros entre eu e o Gustavo com uns amigos de São Paulo: o Igor e o Nicolau (que tocavam no Mito da Caverna o no Narayama). Aí, a gente se encontrava e tocava e gravava e sempre foi lindo, a gente tem uma afinidade de improviso muito massa. O som é mais noise rock psych“.
Aline é curitibana e tem 25 anos. Tem esse fervor jovem de fazer as coisas acontecerem, embora poucos metam a mão na massa como ela. O Meia-Vida é seu púlpito, onde pode declamar sua poesia, sua arte, sua ideologia, através de sons, ruídos, música-não-compreendida. Toda obra do Meia-Vida você pode ouvir aqui.
E como o ímpeto é veloz, não dá sempre pra esperar os outros. Vieram os trabalhos solo. “O Excria Reverbera é um som que eu faço mais drone também, que eu projeto umas sonoridades ritualísticas. É nome que eu inventei, neologismo, motto mágico, seja lá o que for, que invoca a ressonância e a reverberação como uma subjetividade”, conta.
Com o Flores Feias, Aline empunhou a guitarra como novo panfleto, embora com discurso mais pessoal: “é um som que eu sempre quis fazer com guitarra, de ficar tocando em casa e reunir um monte influência na minha cabeça”.
Como Flores Feias, Aline lançou em 31 de outubro de 2015 o magnífico “F .˙. F .˙.”.
Veja, “magnífico” não é exagero. “F .˙. F .˙.” pode ser transportado pro meio da década de 1980, quando a 4AD lançava discos do Dead Can Dance, do This Mortal Coil e afins. Faz o recorte de uma época, mesmo sem essa intenção. Suas grandes influências são Corpses As Bedmates, Der Golem, Dead C, Grouper, Lau Nau e outras coisas, mas afirma que escuta “muito pós-punk também”.
Começa com a soturna “Fetiche” e passa pra fantasmagórica “Feitiço”. Se você não ficar atento, vai pensar se tratar de alguma brincadeira jovem com “bruxas e afins”. Nada. Longe disso. “F .˙. F .˙.” tem um discurso bem interessante: “os sons são sobre um cenário apocalíptico, em que o capital enfeitiça as pessoas e que depois de um tempo tudo para de nascer”. Apocalíptico, é o que o disco é.
Em “Fetiche”, ela fala sobre uma pessoa que é uma logomarca, que vive normalmente, que morre e que mata. Quando chega na post-punk “Foice” (a melhor do disco), ela diz que “nada mais vai viver, nada além, nenhum grão, nenhum trigo, nenhum grão”.
Daí, percebe-se, Aline construiu uma trilha sonora competente não sobre o fim do mundo, mas sobre o apocalipse da sociedade de consumo atual. “Vai desde o fetiche da mercadoria, uma logomarca que começa a virar gente, uma luta entre o feitiço da Xawara (monstro que o Davi Kopenawa diz que existe) e o feitiço combativo de resistência, mas isso tudo acontecendo no meio de muita morte”.
Mas há beleza nesse cenário. E o próprio nome do projeto sugere isso. Flores Feias “remete a alguma coisa que é rejeitada, estranha, parece frágil, mas na verdade é muito forte e bonita. Procurei na Internet esse nome e tinha umas flores que as pessoas falam que são feias, mas elas são incríveis. Tem a ver com algumas questões que são feias e condenáveis nas mulheres porque contém um dispositivo libertador; e não que seja algo que é feio e quando cresce fica bonito, e sim algo que é bonito por ser feio”.
Ouça na íntegra
O disco foi produzido por ela e Paim no apartamento de Aline. “O Gustavo me deu uma mão pra gravar os vocais porque o apê é pequeno, dava muita microfonia, eu tinha que ficar longe… Quase tudo foi gravado direto em tape“. Foram cinco meses de gravação, de abril a outubro de 2015: “eu não gosto muito de ter pressa. Cada som tem essa velocidade imersiva”.
O Meia-Vida lança a obra em cassete, com tiragem limitadíssima, claro. Tente de qualquer forma botar a mão em uma delas. Não precisa esperar essa flor desabrochar pra ficar vistosa: ela já é exuberante.
Lado A
1. Fetiche
2. Feitiço
3. Semsimesmado
4. Flutuar
Lado B
5. Foice
6. Flores Feias
7. E A Faca