Estamos transportados pro meio do mato. Mas não há só grilos, animais simpáticos, ventos tranquilizantes e o odor característico das folhas. Algo inadvertidamente vai se transformando e os ruídos se acumulam pra oferecer uma experiência mais sinistra e menos cômoda. Assim, o Fronte Violeta apresenta uma visão nada singela de um pedaço do mundo – um mundo palpável e vizinho à loucura diária.
“Cri”, o título da canção em questão, é tão curioso quanto engraçadinho ou preguiçoso, mas define bem como a dupla Carla Boregas e Analena Toku conseguem distinguir o que é realidade e o que não é. A onomatopeia do grilo é um exemplo de como a língua busca tangibilizar sons que não são correntes no léxico e a música delas faz o mesmo com sensações e experiências. É como se você as tivesse vivido também.
Desde “Fuga”, um pós-punk-kraut-lento e sinistro, passando pelos mistérios de “Alta Sensibilidade”, a manipulação de sons a partir dos brinquedinhos eletrônicos da dupla, coloca o Fronte Violeta no terreno da certeza, comprovando a excelência estipulada no primeiro registro, “Travessias” (ouça aqui), um dos grandes trabalhos de 2015 (pra mim, o melhor).
Se em “Travessias” a dupla fez um longo tema de vinte e sete minutos, costurando suas seções, aqui elas pontuam tais sensações e experiências em cinco temas (além dos já citados, temos “Exílio” e “Esse Som”, que tem até vocal), se aproximando daquilo que costumamos chamar de “canções” (especialmente “Exílio”). Pode ser uma influência da própria outra-banda de Boregas, a igualmente excepcional Rakta (o que essa moça mete o dedo dá certo, 100% de aproveitamento), ou pode ser um Fronte Violeta constantemente se reconstruindo, afinal de contas quem transforma experiências em música, transforma experiências quaisquer e elas nunca são idênticas – que vida chata e monótona e irritante é a de quem sempre experimenta as mesmas sensações!
Com a Fronte Violeta, não há tal perigo. Monotonia passa longe. Se admitirmos que até mesmo a “loucura diária” é uma peça monótona do nosso cotidiano e a ela nos acostumamos, e nossos gatilhos de escape são sempre os mesmos (praia, campo, bar com os amigos, futebol, cinema), a chama que transforma nossa vida em algo prazeroso está justamente na suspensão por algum tempo do “ser normal”. É a provocação e o inconformismo. A desilusão e o querer. A inveja, o ódio e o amor. A apreciação de si próprio.
A chama do Fronte Violeta está nas experiências subterrâneas, raras, únicas. E assim é a sua música.
“Flama”, o segundo disco do Fronte Violeta, chegou sem alarde dia 26 de julho de 2018, num lançamento em fita cassete, pelo selo japonês Depth Of Decay. A gravação e mixagem é de Rafael Bordalo (Ricardo Mansur, Laura Zimmermann e Benoit cuidaram de “Cri” e “Esse Som”). Alexandre Fenerich, Zimmerman e Matheus Vinhal fizeram as gravações de campo em “Cri”. A masterização é de Bruno Palazzo.
1. Fuga
2. Alta Sensibilidade
3. Exílio
4. Cri
5. Esse Som