Eu queria ser mais jovem. Ter mais disposição nas pernas e nenhuma vergonha na cara. Queria voltar aos tempos que mal havia completado duas décadas de vida e acabava com meu fígado e neurônios no interior e nas imediações de casas como o Espaço Retrô. Meu corpo tinha disposição, energia, voracidade, e uma raiva que não podia ficar muito tempo contida (hoje essa raiva ainda existe, embora ela canalize pra uma depressão nada bem-vinda).
Fosse, assim, logo que o trio Giallos pisou no palco da Sala Adoniran Barbosa, no Centro Cultural São Paulo, nessa dia 14 de julho de 2016, e soltou seu primeiro acorde, seu primeiro grito, seu primeiro murro na bateria, eu teria pisado junto, pulado junto, cantado junto, esmurrado a bateria também. Esse é exatamente o tipo de atitude que a música da banda pede – e ao vivo é ainda mais enérgica e barulhenta e gritada e suingada e raivosa e escrachada. É um convite à rebeldia, à rebelião, ao grito e à forra, ao desabafo e à dança. É um calmante que faz efeito ao fim de cada acorde. Extravasa.
Não é a primeira vez que vejo Flavio Lazzarin esmurrar com fúria sua bateria, Luiz Galvão distorcer suas cordas e Claudio Cox se esgoelar e torcer os punhos com suas maracas. Não vai ser a última. Não pode ser. Toda vez é essa vontade absurda de fazer o espectador se sentir jovem de novo ou ser realmente jovem, mesmo seja um jovem-velho (que é o que mais temos), pra sair esmurrando o ar e xingar as injustiças do mundo.
Nunca parece suficientemente alto o jeito com que o trio toca e passa sua mensagem. E é alto, muito alto. O cérebro e as pernas pedem mais. O tímpano vibra quando Cox grita as injustiças e que “Amor Só De Mãe” – o show é todo do disco novo (ouça aqui). É pra requebrar.
O diacho é essa idade e a vergonha que nos impede de não sermos jovens, mesmo quando somos. Havia um bocado de gente nos seus vinte, vinte e poucos anos ali. Uma plateia lotada (o show era gratuito, mas talvez não por isso, não vem ao caso) de gente estilosa, com roupas bacanas, barbas legais, cabelos de diversas cores, tatuagens reluzentes e tênis descolados. Gente que cantava junto até – juro que vi e ouvi alguns. Mas não tinha gente que pulava e dançava, que extravasava e cometia insanidades. Não, estamos numa época em que ninguém faz isso. Nem com uma trilha sonora convidativa dessas. As únicas gotas de suor vinham do grupo.
Mas o idiota aqui não arredou o pé também – ficou filmando, buscando o melhor ângulo pra eternizar um momento mágico. Sou como todos os idiotas dessa geração e desse tempo, que diabo!
O que o Giallos tem com isso? Nada! É a banda a ser ouvida hoje, em disco e principalmente ao vivo. É o nosso Cramps (junto com o Thee Dirty Rats, outra preciosidade), e a similaridade não está só na versão de “I Was A Teenage Werewolf”, é um blues-sujo e turbinado por volume. Cox se esforça, se agacha, grita, chacoalha. Lazzarin bate como se esmurrasse a cara dos piores problemas. E Galvão equilibra a energia toda. É muita informação pra ouvidos e olhos captarem. Seria melhor não ver, encharcado de suor que eu deveria estar, só ouvindo e pulando e quebrando tudo. Mas sou um velho com uma maldita de uma vergonha na cara (e uns vídeos pra fazer e reportar tudo aqui).
Giallos setlist:
01. Amor Só De Mãe
02. Pombo Bomba
03. Síndrome De Estocolmo
04. Dança Macabra
05. Eles
06. Eu Era Um Lobisomem Adolescente
07. Momento Mori
08. Baobá Blues
09. Açougue
10. Movimento
Veja “Amor Só De Mãe” e “Pombo Bomba”:
Veja “Eu Era Um Lobisomem Adolescente”:
O Giallos não saiu de cena. Lazzarin seguiu descendo o sarrafo em sua bateria quando o Conjunto Lê Almeida entrou no palco. Uma banda mais contida, que acabou turbinada pela potência do baterista.
Lê Almeida está em outra. Mais calmo, aderiu à fritação kraut e temos que agradecer por isso. Por algum motivo, a cabeça dele detém agora mais atenção aos circulares modos com que a música nos envolve.
Nos trinta minutos que cabiam ao seu conjunto, tocou três canções, as três do mais recente e magnífico disco de 2016, “Mantra Happening” (leia aqui). Mesmo com a ajuda de Lazzarin, o quarteto não quer fazer barulho, pisa no freio e entra em transe. É o oposto do apresentado pelo Giallos.
“Oração De Noite Cheia” toma dezesseis minutos da apresentação. João Casaes (guitarra) e Bigu (baixo) arrumam a casa, e Joab (bateria) se diverte viajando. Lê Almeida se prende ao seu universo e todos trabalham juntos. Agora, não é momento de extravasar, mas de respirar e reverberar a música que vem (igualmente alta), bate no peito e a plateia tem que se esforçar pras notas e vibrações não voltarem de onde vieram.
Esse novo Lê Almeida, no seu Conjunto Lê Almeida, é um artista mais maduro, ao que parece. Tão tímido quanto sempre, mais muito menos preocupado, aparentemente, com o que vão achar de sua obra. Ele saiu do mais fácil. O público, não me pergunte o motivo e me recuso a crer que é por conta da música, foi esvaziando o local assim que “Oração…” avançava. O mantra não é pra todos.
Talvez a calma cause um choque com a energia do Giallos. A mim, caiu como água gelada no verão brasileiro, perfeitamente e refrescante pra mente.
Se a banda tivesse pulado a segunda canção, “Enamorandius”, e ido direto pra “Maré”, seria perfeito. Não me entenda mal, “Enamorandius” é uma boa música e tals, mas “Maré” encaixada a “Oração…” formaria o quadro perfeito. Em “Maré”, o mantra de quase vinte e dois minutos, Lê Almeida invoca a reza “amar é demais, um dia eu chego lá” e é isso que vai ficar na cabeça de todos pelo resto da noite e no dia seguinte.
Nem mesmo o extasiante final, quando as duas bandas se juntaram pra uma jam ensurdecedora, dando a “Maré” um sentido apoteótico que ela não tem no disco, fez com que o recado de Lê Almeida fosse deixado de lado: entre a vigorosa energia adolescente e o amor, escolha unir os dois. Sua vida será bem melhor.
Lê Almeida setlist:
1. Oração De Noite Cheia
2. Enamorandius
3. Maré
Veja “Maré”, com a jam final:
[…] o instante único, capturado em vídeo pelo Fernando Lopes do Floga-Se, em que Lê larga a guitarra, atravessa o palco calmamente e pede a Cox uma maraca emprestada. Há […]