Alguém poderia tentar esclarecer a lógica da escalação de HEALTH e Guillemots numa mesma noite, no SESC Pompeia. Duvido que vá conseguir pela ótica da lógica. O argumento será provavelmente que “era o que dava pra fazer dentro do calendário delas”.
Os públicos de ambas as bandas são diferentes, mas tão diferentes, que há quem possa relacionar com duas torcidas de clubes rivais no futebol, tirando as agressões e as mortes (mas não as ironias).
Ficou claro que a preferência pelo indie-bebê do Guillemots era maior. Tanto que no começo do HEALTH havia pouca gente dentro da choperia. As mocinhas fofinhas, com suas roupas de brechó e óculos de aro preto, esperavam sentadas nas longas mesas de madeira, visivelmente tentando “aturar” a experimentação dos estadunidenses.
Há de se notar que o HEALTH não facilita. Sua música é barulhenta, alta, distorcida, provocadora, quase tudo o que o Guillemots não entrega e que seu público abomina. Os ingleses têm um público moldado pelas indicações do Lúcio Ribeiro – e de fato, o jornalista pode ser considerado o “padrinho” da banda por aqui – e o HEALTH, bom… o HEALTH tá preocupado mesmo em extravasar energia e não agradar exatamente.
E foi o que aconteceu… Benjamin Jared Miller, Jake Duzsik, John Famiglietti e Jupiter Keyes perderam alguns quilos e provavelmente ficaram desidratados de tanto suor.
O baixista japonês gigante Famiglietti, batia cabeça e sua longa cabeleira formava um arco de espetáculo (risível, de tão desengonçado) à parte. O baterista BJ Miller talvez seja um dos mais potentes nas baquetas na atualidade. Não seria nada aprazível ele descer a mão na cara de alguém com aquela força – for o ritmo e a inventividade.
Todos eles parecem estar extravasando de fato. Até 2009, acredite, o dia a dia de cada um deles era em empregos ditos “normais”. Jake Duzsik, um arquivista médico, que assumiu o vocal principal, além da guitarra. Faminglietti, um especialista qualquer na Ernst And Young, que ficou com o baixo e barulhos. Jupiter Keys, o homem dos efeitos e de eventuais guitarras, é professor; e Miller, o baterista, trabalhava num antiquário.
Em disco, eles parecem menos potentes que ao vivo. Isso talvez pelo fato de você não conseguir ver aquela energia em forma de cabeças batendo, pulos, transe, camisetas suadas, bateria quase sendo destroçada. Não tem como não se contagiar. Por outro lado, é compreensível que o público médio do Guillemots precise de protetores auriculares pra enfrentar esses quase cinquenta minutos de show.
Sem dizer praticamente nenhuma palavra e sem bis, o HEALTH fez uma apresentação daquelas de impressionar quem estava disposto a se impressionar. Era só manter a mente aberta. Não era preciso conhecer profundamente o trabalho do quarteto (são dois disco até aqui, sem contar os remixes e EPs: “Health”, de 2007; e “Get Color”, de 2009) pra perceber que ali no palco havia uma banda de respeito.
Os barulhinhos, as paradinhas coreografadas, o enxerto tecnopop – às vezes exagerado – o vocal arrastado… Sinceramente, o HEALTH faria mais sentindo abrindo pro Helmet ou mesmo pro Nine Inch Nails, como faziam nos primórdios da carreira.
Aqui, tocou pra pouca gente. Se deu bem quem soube e conseguiu dividir em duas partes a noite e procurou aproveitar os momentos distintos.
Veja o HEALTH tocando “Heaven”:
Agora, engana-se quem achava que eu ia chegar dando voadora no show do Guillemots. Pelo contrário e é preciso sublinhar: pelo contrário. Fui ao SESC Pompeia pra ver o Guillemots e ganhei o HEALTH de presente. Sim, eu estava com um pé atrás – e isso é sempre salutar quando se trata de bandas que um dia foram hypadas em demasia.
Embora eu considere o Fyfe Dangerfiedl uma espécie de Nando Reis da gringolândia, o Guillemots tem outras virtudes. E elas estão nas duas pontas do palco. De um lado, o guitarrista MC Lord Magrão, paulistano da gema, e sua guitarra imparável, inquieta. Do outro, a graça da canadense Aristazabal Hawkes, entre o baixo e o contrabaixo acústico, sorrisos e beleza hipnótica.
Fyfe é o cara que todo mundo fica de olho. Ele é o líder, de fato. É o cara que canta, faz as letras e tals. Fica no centro do palco, troca de guitarra, violão e senta-se às teclas. Mas ele deve reverenciar a sagacidade do seu guitarrista em preencher todos os espaços das músicas com seus efeitos, loops, distorções e agressividade. É a guitarra do brasileiro que dá o climão que a música do Guillemots (muitas vezes chatíssima em disco) ganha ao vivo. A guitarra dele e o baixo da canadense.
O Guillemots nem precisaria fazer muito esforço. Tava meio com a partida ganha, de goleada. Começou com “Kriss Kross”, a pentelha canção que abre o segundo disco, “Red”, de 2008. Mas depois melhorou um bocado, com “Made-Up Lovesong #43”, a nova “Vermillion” e “Trains To Brazil”, antes do mini-set acústico, só com violão de Fyfe, pra fazer muitos cantarem em coro e se emocionar e outros tantos aproveitar pra ir fumar, pegar uma cerveja ou ir ao banheiro.
É sintomático como justamente quando o senhor Dangerfield fica sozinho no palco, ou com todas as atenções, como em “The Basket”, o caldo desanda. Ele realmente precisa de Magrão e de Hawkes.
Mas isso foi uma pequena rusga da vaidade com o bom senso – com a desculpa válida de colocar a banda pra respirar um pouco. Logo em seguida, na sua segunda intervenção ao microfone (havia gracejado pouco antes um “é nóis na fita”), Magrão fez um discurso óbvio sobre as condições de vida no Brasil, “nos viadutos dessa cidade”, pra anunciar “São Paulo”, uma das mais intensas e que valeu a noite, junto com o ato final.
Seus mais de dez minutos foram de fato vigorosos, emocionantes e visivelmente gloriosos pro guitarrista, que colocou a vida difícil na ponta dos dedos, em cada nota tocada, lembrando os perrengues que deve ter passado na sua aventura rumo ao impiedoso do desconhecido no primeiro mundão. A plateia certamente sentiu um nó na garganta durante o trecho “sometimes i could cry for miles/sometimes i could cry for miles”.
Aí, veio o recesso merecido, pra volta ao bis, que previa “Walk The River”, preterida por “Yesterday Is Dead”, do mais recente e bom disco, “Walk The River”, de 2011. A escolha foi boa. A canção também bateu, ao vivo, os dez minutos, e foi tão intensa quanto “São Paulo”.
É aquela história: só por essas duas canções, o Guillemots já teria feito valer sua vinda ao Brasil. Mostrou-se nela uma banda maior do que os devaneios pseudo-poéticos de Fyfe Dangerfield, que é, veja bem, um boa-praça (conversou numa boa com a audiência no final, no téte-a-téte).
Aí, eu volto ao início do raciocínio: quem ousou colocar, mesmo que involuntariamente no propósito, HEALTH e Guillemots juntos, acertou. Acertou porque o público de “mente aberta” conseguiu uma noite daquelas significativas, ímpares por juntar duas bandas distintas, mas vigorosas em medidas semelhantes.
A chuva intensa que desabou em São Paulo nessa noite talvez tenha sido só pra tirar da frente a incredulidade e a rabugice e avisar: “hoje é dia de lavar a alma com dois grandes shows de música pop, aproveite”.
Setlist do Guillemots:
01. Kriss Kross
02. Go Away
03. Made-Up Lovesong #43
04. Ice Room
05. If The World Ends
06. Vermillion
07. The Basket
08. Little Bear
09. Trains To Brazil
10. I Don’t Feel Amazing Now
11. I Must Be A Lover
12. São Paulo
BIS
13. Yesterday Is Dead
Veja o Guillemots mandando “Made-Up Lovesong #43”:
E aqui, “Trains To Brazil”:
Mas reparem que lindo contrabaixo!!
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