“As emoções ainda estão muito frescas pra gente fazer um relato acurado do que foi a noite de ontem, e talvez seja melhor assim: contar tudo no calor do momento, mesmo sob o risco de esquecer coisas. Desde o anúncio de que abriríamos pra uma das nossas grandes influências tivemos duas semanas de muita empolgação, trabalho e alguma incredulidade. Deu tudo certo: a XYZLIVE nos tratou com a maior atenção. A equipe de palco liderada pelo Pedro Becker fez com que nosso som saísse bonito. Pudemos conhecer pessoalmente o povo gente finíssima da Herod Layne, que fez um show matador. O público nos recebeu super bem (com direito a bandeira do Rio Grande do Sul – ‘ei, alguém aqui quer nos ver!’)”.
O relato acima é da Lautmusik, publicado no dia seguinte ao maior show da carreira da banda. Um público que talvez ela nunca mais consiga igualar. Ainda não havia os divulgados trinta mil fãs que lotaram as pistas montadas no Sambódromo do Anhembi (a VIP e a “pobre”) pra ver o The Cure, mas havia por certo umas dez mil pessoas de ouvidos abertos.
Os gaúchos chegaram a São Paulo no final da manhã de sábado, 6 de abril de 2013, dia do show. Foram direto pro Holiday Inn, hotel de bom padrão que faz parte do complexo do Anhembi.
O esquema no Anhembi pra receber as bandas era menos confortável do que no Rio de Janeiro, na HSBC Arena. A produção adaptou os camarotes do Sambódromo pra virarem salas de apoio e camarins. Foi feito o possível pra proporcionar espaço e tranquilidade pras bandas.
Cheguei com a Herod Layne pouco depois das onze da manhã. Calor forte. A Lautmusik ainda não estava por lá. No camarim, não havia ar-condicionado, diferença significativa e incômoda. Mas a produção dessa vez esqueceu o “rider do Leoni” e abasteceu a banda com muito mais cervejas, refrigerantes, frutas e sanduíches.
Mas essas vantagens de “banda grande” ficaram só ali. A passagem de som, previamente marcada pras onze da manhã, foi sendo adiada pra um momento indefinido, que acabou se dando às três da tarde. Meia hora pra cada banda se virar. Às quatro, os portões seriam abertos ao público.
Com boas equipes de apoio, a Lautmusik e a Herod Layne se safaram bem desse apuro, definido o som que queriam.
A Lautmusik tinha seu camarim no Sambódromo, mas os integrantes preferiram descansar no hotel, antes do show. O pessoal da Herod Layne ficou no camarim, descansando como pôde, com frutas e cerveja. Ainda faltavam duas horas pra primeira delas, a Lautmusik, encarar a multidão.
O show no Rio de Janeiro serviu pra Herod Layne ganhar bastante confiança e pedir o que queria. A timidez e o “complexo de pequenez” diminuíram bastante entre uma apresentação e outra. Nesse mundo, se aprende fácil e rápido, ainda mais com uma produção disposta a ajudar de fato.
Essas duas horas, apesar da calmaria, pareceram o dobro. Havia, claro, um certo nervosismo no ar. Na hora certa, seis da tarde, lá estava a Lautmusik pronta pra enfrentar a massa. O dia ainda estava claro. A banda teria que olhar nos olhos daqueles desconhecidos doidos pra trucidá-los, sedentos pelo produto que pagaram, o The Cure. Toda a empolgação, o apoio da equipe técnica contratada, os ensaios, a felicidade pelo convite inesperado, tudo podia ruir fulminantemente. Mas o grupo gaúcho não é de meninos, adolescentes pós-espinhas. Eles têm seus empregos, suas famílias, suas carreiras. Aquilo ali era diversão que jamais imaginariam ter. Por que não aproveitar? Cassio Forti, guitarrista, era o mais sorridente, não aparentava nervosismo. Alessandra Lehmen, a vocalista, colocou um vestido curtíssimo: não há nenhuma vergonha embutida aqui.
Eles se abraçam. Tiram fotos do momento especial. Estão preparados. Não parecem ter certeza disso, mas sempre estiveram. É aquilo que sabem fazer, a música é deles, podem ser julgados pela qualidade delas, nunca pela execução, então não há nada a temer. Eles entram enfileirados, os cinco. Há aplausos. A plateia se mostra receptiva, um som acalentador. A primeira canção, “The Harbor”, começa com uma guitarra hipnótica. É a primeira vez na vida que aquelas pessoas ouvem tais notas naquela sequência. Tudo é novidade, mas o pequeno espaço de palco onde a Lautmusik está confinada permite poucas ousadias visuais. É melhor segurar no som.
Eles não sabem, mas lá pela terceira música, “Tugboat”, com seu baixo neworderiano, surge uma presença ilustre, discretamente, na penumbra do lado esquerdo do palco (esquerdo pra plateia). Ali está Robert Smith. Ele veio ver a banda, na surdina, um músico prestigiando outros. Reeves Gabrels também comparece. Mas não querem se mostrar, sabem que podem causar mais estragos no sistema nervoso daquela pequena banda do que toda a plateia do mundo. Ídolos têm esse poder… estranho.
A sensibilidade de Robert Smith e a história com a Lautmusik continuariam no resto da noite. Ali, durante o show, os gaúchos cumpriram bem o papel pro qual o chefe do The Cure os escolheu. Foram sete músicas, incluindo algumas novas. Satisfação total da banda – e surpreendentemente também da plateia, que não os conhecia.
“O capítulo à parte é que o Cure é uma banda simplesmente fenomenal. No palco, 3h15min de um show mágico; intenso e leve ao mesmo tempo. Fora dele, uma gentileza que nos deixou profundamente emocionados. O Robert Smith assistiu nosso show inteiro – discretamente, num canto do palco. Depois foi até o nosso camarim nos presentear com champanha e elogiar o show, e nos deu a melhor resposta possível sobre o porquê de nos ter escolhido: ‘escolhi uma banda que eu quisesse ver'”, lembra o mesmo texto que abre esta matéria, publicado pela Lautmusik.
Sim, Robert Smith esteve no camarim da banda gaúcha, como havia feito com a Herod Layne no show do Rio de Janeiro. Um papo rápido, a promessa de uma cerveja após o show do The Cure e um champanhe de cortesia. É um ritual estranho, mas admirável, pra um pop star.
1. The Harbor
2. Budapest
3. Tugboat
4. White Cliffs Of Dover
5. Mai
6. Bury My Heart In Warsaw
7. The Purples And The Greens
Veja “The Harbor”:
A Herod Layne não entrou imediatamente no palco. Meia hora separou o término de um show pro outro. Tempo pra cumprimentos entre os integrantes das bandas. Ambas parecem que necessitam de tal força.
Mas o quarteto paulista está pronto. Aparenta menos nervosismo, mas a espera só piora a situação. Johnny, o baterista, se alonga. A banda se abraça, como antes de uma partida de futebol. Johnny puxa as palavras de incentivo. Sem nenhuma sensibilidade, enfio minha câmera ali no meio, tentando capturar aquele momento. Por mais externado que seja, ele é íntimo dos quatro. Só eles sabem o que significará a próxima meia hora pra vida deles.
Já experimentaram isso uma vez, dois dias antes, porém a sensação de ineditismo se reforça, aquela confiança de bastidores se esvai. O palco é maior, a plateia – as luzes ambientes dão conta – é infinitamente maior. Há um mar de gente ali, a poucos metros. Estão todos querendo o The Cure, oras. O trabalho da Herod Layne será hercúleo e sua música não é nada palatável. A seu favor está no fato de que Robert Smith em pessoa os escolheu. Eles estão ali a convite do anfitrião, quer a turba goste ou não. As trinta mil pessoas não sabem, mas eles vão se surpreender.
O set que a Herod Layne toca é o mesmo do Rio de Janeiro. Entretanto, o grupo se deu conta de que as ambiências arrastam demais a apresentação pra aquelas pessoas que não estão acostumadas com isso. Não é, de fato, uma música fácil, principalmente pra quem pagou mais de trezentos dinheiros pra ver “Friday I’m In Love” e “In Between Days”.
A escolha da banda, então, foi corretíssima: apostaram no noise. É difícil descrever o que isso quer dizer. É preciso ver e ouvir. O vídeo abaixo, das duas últimas canções, “Umbra”, do disco novo que sai em maio de 2013, e “Walking The Valley (Part 2)”, do primeiro EP, e principalmente essa última, deixam boquiabertas aquelas pessoas.
Ao meu lado, enquanto tento filmar aquele espetáculo de ruídos, estão três roadies do The Cure ajeitando as guitarras pra apresentação principal. Ao primeiro sinal de noise, eles param o que estão fazendo – e, acredite, havia muito o que ser feito – e ficam assistindo. Quando Lucas Lippaus encarna o capeta enfurecido, um deles exclama “wow, crazy boy!”. Arrisco uma olhadela (a câmera tremeu, por certo): estão os três sorrindo. A música termina, eles batem palmas entusiasmadamente. A plateia, que no início da apresentação pedia pra banda deixar o palco, dando “tchauzinho”, fica eufórica – ou uma grande parte dela. Ninguém entendeu de cara, mas sabe que aquilo ali é diferente, enérgico, sincero e impressionante.
A banda deixa o palco ofegante, se abraçando, suada. Dessa vez, o guitarrista Sacha Leite fala o nome do grupo e agradece a plateia. Esses tratos se aprendem.
1. Penumbra
2. Silencio
3. Walking The Valley – Part 1
4. Umbra
5. Walking The Valley – Part 2
Veja as duas últimas músicas e noise final, “Umbra” e “Walking The Valley – Part 2”:
Acabou. O papel deles acabou. Agora, era ver a atração principal e curtir a memória se formando por esses dias tão especiais. Mas ainda teria mais – e tão emocionante quanto.
No camarim da Herod Layne, todos se encontram. Vão estourar um champanhe. Lautmusik, equipes, convidados, Herod Layne, familiares, estão todos juntos. É impressionante a aura de alegria que toma conta daquele minúsculo espaço. É empolgante estar ali. Deve até mesmo fazer bem pra saúde mental, imagino. Há umas trinta pessoas ali conversando, euforia, cervejas, vinhos, cachaça – a mesma cachaça que horas antes foi de presente pra Robert Smith, presente dos paulistas.
O que se entende é que ninguém esperava viver aquele momento. Duas semanas atrás, isso não era realidade. Nem sonho, pra ser sincero. Aconteceu e é uma sensação que se deseja pra todo mundo que toca numa banda.
Então, a realidade: show do The Cure, da plateia, do aperto daquela plateia, dos banheiros sujos e das filas que a produção proporcionou ao público final pagante. Dois mundos diferentes. Porém, finalmente, o pessoal da Herod Layne pôde ver o show do The Cure sem pressa. No Rio de Janeiro isso não foi possível. Hora, pois, de relaxar e curtir.
A Lautmusik conta, no seu post no Facebook, o que rolou após o show dos ingleses: “no final da noite as bandas de abertura foram convidadas ao camarim pra beber e conversar – e conversar foi o que fizemos. Deu pra entender que o Cure é uma grande banda porque é formado por grandes pessoas, que se interessam genuinamente por outras pessoas além delas próprias. E o Robert Smith é de uma afabilidade e sensibilidade tais que dá vontade de sentar e jogar conversa fora durante horas, ou de convidar prum churrasco em casa. Em um mundo paralelo isso talvez fosse possível, mas a chance de ter um pequeno insight do indivíduo por detrás da persona do ídolo (se é que existe uma persona) é algo que nunca esqueceremos. Simplesmente felizes”.
Eu deveria terminar esse texto aqui, com tal declaração. Emociona. Mas é preciso contar o que houve ali. Só as bandas entraram no camarim do The Cure pra conversar. Eu e mais alguns convidados ficamos do lado de fora, embaixo das arquibancadas, esperando e conversando. O clima ainda era de satisfação pelos dois dias especiais também pra nós.
Os primeiros a saírem são Sacha Leite e Lucas Lippaus, guitarristas da Herod Layne. Lucas chora nigaramente. Não segurou a emoção de estar como um amigo conversando com Robert Smith. O detalhe é que Lucas é novo demais pra ter vivido na plenitude o auge do The Cure, nos anos 1980. Mas ele entende o que aquela figura de cabelos esganiçados representa.
Depois, cheio de histórias pra contar e com cervejas nas mãos, sai a Lautmusik. Alessandra Lehmen conversou muito com os integrantes do The Cure. Soube como eles foram escolhidos, que os ingleses talvez não façam mais turnês como essa – e que o Brasil pode nunca mais ter um show deles – declarou ter sido influenciada e tudo o mais. Papo de amigos, praticamente. Robert Smith, depois de mais de três horas de show, trocou seu descanso pra receber seus convidados.
Não sei se vale chover no molhado, mas afinal que ídolo da música, com mais de trinta anos de carreira de sucesso, faria isso?
Essa experiência toda fez do The Cure, pra mim, uma banda mais especial do que já era, pra além da música. Há ali, em Robert Smith, uma figura exótica, tímida, especial, humana (ultrapassando o clichê). Ele parece seguir um ritual daquilo que acha correto. Deve fazer tal demonstração de respeito em todos os países por onde passa.
Assim, ele continua construindo seu respeitável adorno de ídolo de gerações. Porém, mais do que isso: segue ensinando como diferenças tão grandes como a da banda dele e de seus convidados desaparecem quando estão dois músicos frente a frente, se admirando.
Nessas horas, dá pra acreditar que a arte é pra todos.
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Fotos: Arquivo particular das bandas, Marcela Erdebrok Motta e Fernando Lopes
quem assistiu assistiu, quem ñ assistiu, talvez, ñ assista mais…
só lamento aquela ridícula area vip, que desrespeitou essa gde figura de cabelos bagunçados e sua incrivel banda…
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